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Os espaços de São Paulo e a condição socioeconômica: antagonismo/confronto de

No documento O VERNÁCULO BRASILEIRO NA CONTEMPORANEIDADE (páginas 115-117)

CAPÍTULO 4 – PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO E ATUALIZAÇÃO

4.2. O plano narrativo: a discursivização do espaço da narrativa e a

4.2.2. Os espaços de São Paulo e a condição socioeconômica: antagonismo/confronto de

Depois da visão metonímica de São Paulo, o segundo gesto de análise do plano narrativo trata da continuidade espacial a partir da discursivização da megalópole pelo viés da condição socioeconômica. Isso é assinalado repetidamente por meio, sobretudo, do tamanho dos lares. Por exemplo, no fragmento 4 (A caminho), em meio ao misto de impessoalidade e pessoalidade, é instaurado um lugar de referência do sujeito: “um apartamento enorme em moema um por andar três suítes contratei um desses veados dinheiro não é problema ele montou o circo o mulherio estranha aí eu falo a decoração é do fulano elas têm orgasmo” (RUFFATO, 2011, p.15, grifo do autor). Se não há uma marca explícita do “aqui”, a marca desinencial nos verbos em primeira pessoa do singular revela o sujeito que se enuncia, do que se deduz sua inscrição espacial “aqui”. Esse sujeito é anunciado pelo narrador e tem sua expressão evidenciada pelo recurso tipográfico em itálico.

O fragmento 8 (Era um garoto) contrapõe a casa do pai rico – ele, lá – ao lar da ex- mulher e do filho – eu, aqui, a impessoalidade se alterna com a pessoalidade, presentificando, por vezes, impressões e sentimentos do sujeito (grifos sublinhados foram feitos para indicar marcas enunciativas do “aqui”, ou seja, desinências de primeira pessoa) :

separou-se e juntou-se com uma menina uns vinte e poucos anos muita celulite não não vi mas imagino hoje são todas assim até as modelos não vê

está construindo uma mansão em alphaville está morando numa mansão em alphaville

e ela passando por dificuldades para quitar as prestações do apartamentinho em jabaquara (RUFFATTO, 2001, p.19)

Nesse trecho há um jogo enunciativo no qual o “eu” fala de si e do outro. A terceira pessoa, nesse caso, não é uma camuflagem, mas apenas uma referência a alguém que não está participando do diálogo. É assunto, não interlocutor. O fragmento inicia com impessoalidade e há uma passagem para que o “eu” se enuncie, e, por um instante, flagra-se um sujeito presentificado. Isso traz implicações discursivas semelhantes a do fragmento 39 (cf. seção 4.2.1). A predominância da impessoalidade não permite interlocução aos sujeitos, mas, por momentos, um deles ganha voz para que se enuncie (no caso, a ex-esposa), proporcionando que um “aqui” seja estabelecido e, como consequência, também um “lá”. O sujeito representado (o ex-marido) tem seu discurso subordinado ao do “eu” e ao do narrador camuflado na impessoalidade.

O próximo recorte desta categoria, 15 (Fran), discursiviza a importância socioeconômica de cada espaço da megalópole, uma vez que o sujeito do trecho, uma subcelebridade decadente, já mora há um ano em um “apartamentinho” no Jardim Jussara, mas “quando pedem o endereço diz Morumbi”, ou seja, a faceta rica do bairro. Esse é mais um caso em que, em relação ao espaço, o eu se exime de discursivizar, sendo enunciado pela não pessoa. A implicação discursiva dos valores representados pela impessoalidade indica, pela confluência da voz do narrador e do sujeito, um lugar ideológico que estima valores de ordem econômica, bem como se submete a eles. Sendo mencionado, o sujeito não é do discurso, mas sujeito ao discurso que o enuncia. Com isso, a não pessoa que se discursiviza e subordina o sujeito, recusando-lhe a condição de interlocutor. Fran é referida e não pode tomar a palavra

De maneira semelhante, nos fragmentos 44 (Trabalho) e 47 (O “Crânio”), o ponto de vista cria um juízo de valor que considera o poder do capital e da classe social. Isso é demonstrado através de adjetivos, advérbios e substantivos como os grifados: “a pé, porque nem trocado pra passagem de ônibus tem”; “suador diário”, “perua escolar clandestina”, “o bacana na mansão do Morumbi”, “filhos estudando no estrangeiro”. O sujeito que acumula cursos para tentar uma vida melhor e tem “oito horas de suador diário”, no segmento 44 (Trabalho), empilha-se com a família na casa do sogro, “num quartículo, cama de casal, penteadeira, guarda-roupa, bercinho, sufoco danado” (RUFFATO, 2011, p. 99). Como o sujeito é majoritariamente representado, pelo efeito de sentido criado a partir da impessoalidade, o “aqui” é instaurado pela ideologia refletida em palavras como “sufoco” e “quartículo”, que indicam também valores socioeconômicos e espaciais.

No fragmento 62, (Da última vez), o sujeito abandona sua vida familiar classe média baixa, cansado do trabalho exaustivo, “mas sempre no vermelho no banco” (Ibid, p.133). Esse segmento tem como marca a pessoalidade, acarretando o efeito de sentido da presentificação, vê-se o próprio sujeito desabafar sua frustração, conforme as marcas enunciativas destacadas abaixo:

Eu nem lembro mais porque nos desentendemos na última vez, mas eu peguei minhas coisas (...).

E enfiei-me num táxi, Quando avistei o primeiro hotel mais ou menos decente – e mais ou menos barato – (...).

E deitei, mas não era alívio que sentia,

nem remorso, era não sei o quê, saudade, talvez, (...).

as crianças presas no apartamento ridiculamente pequeno em que morávamos nos fins de semana o sol explodindo na tela da televisão ligada e nós culpando a vida estressante que se leva em São Paulo a nossa incompetência para viver num regime de concorrência (RUFFATO, 2001, p.127, grifo meu.)

Tal construção traz um juízo de insatisfação e frustração do sujeito em relação a si e à classe a qual pertence. O narrador se camufla na voz desse “eu”, e assim é organizado todo o fragmento, conferindo-lhe um tom pessoal.

Como se pode perceber, esta subseção de análise do espaço dos fragmentos trata do espaço interior, dos lares como determinantes para cada discursivização a seu respeito. Deste modo, resolve-se a tensão discursiva entre os diferentes espaços interiores. Assim, os próximos gestos de análise abrangem segmentos que discursivizam o espaço em relação ao binômio dentro/fora. Cada minienredo aqui analisado tem como ponto em comum (ou como ponto de contato) São Paulo. Entretanto, não se trata da cidade em si, mas de um sentido coletivo, um discurso “Cidade de São Paulo”.

No documento O VERNÁCULO BRASILEIRO NA CONTEMPORANEIDADE (páginas 115-117)