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O dialogismo no vernáculo brasileiro: tensão de discursos

CAPÍTULO 2 – BRASIL: HISTÓRIA, LÍNGUA E VERNACULISMO

2.1. O caso brasileiro: o vernáculo na tensão entre discursos

2.1.2. O dialogismo no vernáculo brasileiro: tensão de discursos

A legitimidade de uma só posição a que o Brasil é submetido por conta de reflexões e refrações europeias perpassa a língua nacional, e um dos modos de pensar sobre isso é tratar dos discursos que atuam como forças centrípetas, costurando o múltiplo e variado em unidade. A língua nacional aparece como um discurso que faz parte da caracterização do que é ser brasileiro. Portanto, pode-se pensar o nacionalismo também como resultado de uma fase de identificação, de conhecimento de uma coletividade, o que se dá, primordialmente, por uma língua pela qual todos se significam. A ideia do todo brasileiro resulta do empreendimento lusitano. A língua, pretensamente nacional, que administra essas relações, representa antes um movimento político e ideológico, no qual há uma língua que assume essa condição de nacional por ser politicamente dominante. Ao assumir tal condição, esta assume também papel basilar no vernaculismo brasileiro, já que ela significa, projeta sentido ao todo.

O fato de a questão vernacular do Brasil já ser um relevante tema antes mesmo dos desafios ocidentais contemporâneos indica que, sendo inicialmente a língua oficial a portuguesa, e não a brasileira, o vernaculismo do Brasil constrói-se posteriormente à organização política do país. Os discursos e ideias que compõem o senso de brasilidade resultam de um processo mais complexo que a simples transposição do idioma lusitano para terras americanas. É preciso discernir como, a partir da ascensão do senso de vernáculo brasileiro, com a descolonização do país e a apropriação do português como língua do Brasil, é possível ressignificá-lo em meio aos desafios contemporâneos, considerando-se o fato de que tal vernaculismo é resultado do todo de uma ação colonizadora. Há os discursos que atuam em determinada direção – como os que fundamentam a política de língua, planejada e

unificadora; e os que atuam em outra direção – os da política da língua, que, de modo dispersante, refletem a tendência de cada paradigma relacional preponderante.

A discussão arquitetada até aqui mostra que a identidade nacional e a construção de um vernáculo brasileiro são processos discursivos e, neste trabalho, são discutidas as relações dialógicas que se estabelecem entre os discursos (cf. seção 1.3.1). Há, na problemática do vernáculo brasileiro, uma a tensão entre unidade e fragmentação, e esta se dá sempre pela tensão de discursos que atuam como força centrípeta (unificadora) e outros que atuam como forças centrífugas (dispersadora). Esses discursos são decisivos para as políticas linguísticas no Brasil, para a historicização do vernáculo brasileiro, e para a questão de este poder ser atualizado na língua em uso. A tensão entre discursos é tratada, neste trabalho, a partir da teoria das relações dialógicas. Essas relações indicam que não pode haver enunciado isolado, ele sempre pressupõe enunciados que o antecedem e o sucedem. Os discursos – materialidade da língua – são dialógicos, isto é, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro, sendo sempre e inevitavelmente também a palavra do outro. Na construção de um discurso, considera-se o discurso de outrem, que está presente no seu (BAKHTIN, 1934-35/ 1993).

Os enunciados são produtos da inserção do sujeito na língua, quando este se apropria da língua e a usa para a enunciação, ele a transforma em discurso (BENVENISTE). Bakhtin (1970-71/ 2011) aponta que não são as unidades da língua que são dialógicas, mas os enunciados, pois estes são irrepetíveis, uma vez que são acontecimentos únicos, cada vez trazendo acento, apreciação e entonação próprios. Uma vez que o real sempre se apresenta mediado linguisticamente, não se tem acesso direto à realidade, não existe objeto que não apareça “cercado, envolto, embebido em discursos” (BAKHTIN, 2011, p. 319). Toda experiência vivida tem de passar pela fase ideológica interior para ser expressa pelo ser humano, e, consequentemente, esta apresenta uma refração do social (VOLOSHINOV, 1988). É esta experienciação no processo de subjetivação que determina a forma da expressão resultante. Consequentemente, todo discurso que diga respeito a qualquer objeto não está voltado para a realidade, mas para os discursos que a cingem. O dialogismo envolve as relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados.

Com isso, Bakhtin (1959/61; 2011) adentra o problema da inter-relação semântica – a qual envolve também o ideológico – e dialógica dos textos no âmbito de um determinado campo. O autor afirma que um estenograma do pensamento humanístico é sempre o estenograma dialógico de tipo especial, que marca a complexa inter-relação do texto e do contexto emoldurador a ser criado. O enunciado, em sua plenitude, é moldado como tal pelos

elementos extralinguísticos, ou seja, pelo seu caráter dialógico, de estar ligado a outros enunciados. Essa dialogicidade penetra o enunciado, e são as relações de sentido entre os diferentes enunciados, por meio dos juízos, que assumem caráter dialógico, os sentidos se dividem entre diferentes vozes. Em suma, as relações dialógicas são de natureza específica e, quanto aos discursos constitutivos do senso de vernáculo brasileiro na contemporaneidade, não podem ser reduzidas a relações meramente lógicas – seus sentidos históricos e antropológicos –; nem a relações meramente linguísticas – a questão da língua portuguesa no Brasil. Exceder tais relações é importante para dar conta do estudo aqui proposto, uma vez que se atinge a área de legitimação dos discursos nos estudos da linguagem e não se prescinde dos sujeitos e de sua organização histórico-cultural.

Essas relações semânticas se dão entre toda espécie de enunciados, inclusive na dimensão verbo-visual da linguagem, a qual participa ativamente da vida em sociedade e, consequentemente, da constituição dos sujeitos e das identidades. Em determinados textos ou conjuntos de textos, a articulação entre os elementos verbais e visuais forma um todo indissolúvel (BRAIT, 2009). Desse pressuposto, a linguagem verbo-visual é também considerada como um enunciado concreto, articulado por um projeto discursivo do qual participam, com a mesma força e importância, o verbal e o visual. Na comunicação discursiva, não pode haver enunciado isolado, ele sempre pressupõe enunciados que o antecedem e o sucedem.

Bakhtin (1970-71/2011) corrobora que nenhum enunciado pode ser o primeiro ou o último, ele é tão somente o elo na cadeia e, fora dessa cadeia, não pode ser interpretado. Para apreender o sentido de um enunciado, não basta saber o que significa cada uma das unidades da língua que o constituem, é necessário perceber as relações dialógicas que ele mantém com outros enunciados. Todo enunciado constitui-se a partir de outro, é uma réplica a outro enunciado. Portanto, nele ouvem-se sempre, ao menos, duas vozes (BAKHTIN, 1934-35/ 1993). Os enunciados são continuamente o lugar de luta entre vozes sociais, o que significa que são, de maneira inevitável, o lugar da contradição. É esse embate que, neste estudo, marca o lugar social a partir do qual é possível se enunciar como brasileiro.

A realidade é, marcada pelas vozes sociais em circulação, pela política da língua – força centrífuga –, o que significa que oportuniza a constituição de sujeitos distintos, porque não organizados em torno de um centro único. E é de encontro a essa realidade dispersadora que os planejamentos políticos-ideológicos de nação e nacionalidade, da política de língua, costumam ir: ao dialogarem com discursos centrífugos, dão origem a discursos centrípetos. Como resultado, os enunciados construídos pelos sujeitos, sendo constitutivamente

dialógicos, são consecutivamente históricos. A historicidade dos enunciados é apreendida no próprio movimento linguístico de sua constituição, ou seja, é na percepção das relações com o discurso do outro que se compreende a história que perpassa o discurso.

A questão da orientação dialógica aparece, então, como definidora dos fenômenos específicos do discurso, ela é naturalmente própria a todo o discurso. “Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e intensa” (BAKHTIN, 1934- 35/1993, p.88). Tal referência de um discurso para os de outrem, em todos os graus e de diversas maneiras, cria novas e vitais possibilidades para o discurso. Nascido de maneira significativa, em determinado momento social e histórico, o enunciado existente não pode deixar de tocar “os milhares de fios dialógicos efetivos” (idem), articulados pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação; não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. O próprio enunciado surge desse diálogo, como seu prolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele se aproxima desse objeto (BAKHTIN, 1934- 35/1993). A abordagem dialógica de discursos perpassa o efeito de unidade da língua portuguesa no Brasil, criado politicamente, bem como algumas de suas implicações.

Assim, o vernáculo brasileiro se arrola à possibilidade de ser sujeito no Brasil, e essa condição de subjetivação passa pela língua/linguagem, pelos diversos tipos de enunciados, os quais permitem que a questão do vernáculo seja atualizada, contemporaneamente, por meio da língua em uso.