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Na fronteira do sobrenatural

Nas duas obras aqui abordadas podemos perceber, além de temas comuns, um clima, criado pelos autores, que provoca no leitor a mesma sensação de estranheza. Não podemos confirmar aqui a existência de marcas evidentes daquilo que os teóricos denominam fantástico, ao menos não nestas duas obras tomadas como referência para este estudo. Talvez outros romances dos escritores analisados admitam uma abordagem do fantástico e possam filiar-se a esse gênero. De qualquer forma, o que constatamos em Fronteira e em Le voyageur

sur la terre é apenas o que vamos designar ilusão do sobrenatural, ou seja, a idéia de algo estranho acontecendo, desencadeada a partir do cenário desenhado pelos autores. O clima, envolvendo as histórias narradas, fornece nos essa ilusão. Assim, podemos constatar que ambas as obras estacam na fronteira do sobrenatural, não chegando a alcançá-lo explicitamente.

Para criar a ilusão do sobrenatural, um fator de grande importância é a descrição do cenário em que se passará a ação.

Fronteira, por exemplo, tem como pano de fundo a cidade de Itabira, em Minas Gerais. Segundo Carolina Maia Gouvêa (1979), esta região, com seus casarões antigos, as lendas e as montanhas que a circundam, sugere um ambiente propício para um clima sombrio e ambíguo, próprio ao fantástico: "Há um fenômeno estranho que se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo natural e sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois cria o efeito fantástico", afirma Todorov (1975, p. 31).

Nesse romance hesitamos freqüentemente entre admitir o sobrenatural ou optar por uma explicação lógica, natural dos eventos. Para Carolina M. Gouvêa, ao clima sombrio e ambíguo, próprio do fantástico, pode associar-se a idéia de transgressão (social e individual):

Em que coincidem a função social e a função literária do sobrenatural: trata- se nesta como naquela de uma transgressão da lei. Quer seja no interior da vida social ou da narrativa, a intervenção do elemento sobrenatural constitui sempre uma ruptura no sistema de regras preestabelecidas e nela encontra justificação. (GOUVÊA, 1979, p. 174)

Portanto, apesar de ser uma narrativa interiorizada, que privilegia a introspecção e trata de assuntos como a morte e o além, o romance não abandona inteiramente aspectos sociais e históricos que confrontam a lenda e a realidade social.

O narrador de Fronteira revela uma consciência crítica em relação a tudo o que o cerca. Para ele, a descrição do "casarão" mineiro integra o cenário das montanhas, e as personagens que ali habitam integram a lenda.

Era uma casa feita de acordo com o cenário de montanhas que a cercavam de todos os lados, e não feita para servir de quadro e abrigo para os homens que a tinham construído com suas próprias mãos. (PENNA, 1958, p. 17) Casas berrantes de oca, ao lado de paredes alvíssimas, cegas de luz, trepavam em desordem pela rua em forte ladeira, ao encontro do edifício da cadeia, muito grande, espapaçado lá no alto, todo cheio de sinais misteriosos, traçados em suas velhas paredes pelas crianças, pelo tempo e pela umidade. (Ibid., p. 33)

Na obra de Green, o cenário também vai colaborar para criar a estranheza, por meio da descrição do narrador desenha-se uma paisagem propícia para o sobrenatural. Esse tipo de paisagem sugerindo dias sempre fechados, sem sol, vai perdurar no decorrer da narrativa:

A igreja presbiteriana, da qual nossa casa era separada apenas por um quintal e uma ruela, estorvava a vista de minha janela. Parecia-me que ela estava ainda mais perto quando eu a via de minha cama, pois então ela escondia todo o céu. Era construída conforme modelo de uma igreja de Londres. Esta igreja me entristecia e suas pedras negras me pareciam sinistras. Haviam me contado que antigamente ela tinha sido parcialmente destruída por um incêndio durante o qual a torre, gravemente atingida pelas chamas, caiu, finalmente, fumegante, no teto de uma casa vizinha. Por sua vez incendiada, essa casa foi inteiramente queimada no espaço de algumas horas; nós morávamos na casa que foi construída no lugar da casa incendiada. Assim, nunca olhava a nova torre da igreja sem pavor: se ela por sua vez ela caísse, cairia exatamente no meio de meu quarto. No último dia do ano, exatamente à meia-noite, um tumulto fora do comum me acordava de sobressalto. Cantos se elevavam, dominados pelo lamento dos sinos. Eu via então a igreja consumir-se em chamas. Uma luz brilhante a envolvia como uma auréola e fazia com que parecesse toda branca e fantástica. Eu temia que ela pegasse fogo de repente e, com o horror que eu tinha de morrer de morte violenta, eu me atirava de joelhos junto à porta e rezava com fervor para que minha vida fosse poupada. (GREEN, 1997, p. 15-16, Tradução nossa)45

45La vue, de ma fenêtre, était obscurcie par l’église presbytérienne dont notre maison n’était séparée que par

une cour et une ruelle. Il me semblait qu’elle était plus près encore lorsque je la voyais de mon lit, car alors elle me cachait le ciel tout entier. Elle était construite sur le modèle d’une église de Londres. … Cette église m’attristait et les pierres noires m’en paraissaient sinistres.On m’avait raconté qu’autrefois elle avait été en partie détruite par un incendie au cours duquel la flèche, longtemps travaillée par les flammes, s’était abattue enfin, toute fumante, sur le toit d’une maison voisine. Incendiée à son tour, cette maison avait brûlé entièrement en l’espace de quelques heures ; nous habitions celle qu’on avait bâtie à sa place. Aussi ne regardais-je jamais la nouvelle flèche de l’église sans effroi : si elle s’abbattait à son tour, ce serait juste en travers de ma chambre.

Ao escolher as palavras “sinistra” e “fantástica”, o narrador reforça a estranheza do fato narrado. O incêndio se repete, mas desta vez não atinge a casa, queima apenas a Igreja. Esse episódio é narrado de forma confusa despertando, no leitor, dúvidas quanto à realidade do incêndio, já que poderia tratar-se de fantasia decorrente do temor da personagem. Essa confusão desencadeia na narrativa, certo clima sobrenatural.

Em Fronteira e em Le voyageur sur la terre vamos encontrar esse elemento: histórias estranhas cultivadas oralmente. Conteúdos lendários inseridos nos textos possivelmente com o objetivo de intensificar o clima obscuro e representar, assim, as estranhezas ou coincidências vivenciadas por todo ser humano.

A representação dessas situações intensifica-se em determinados trechos do romance. Em Fronteira, o apelo ao estranho ocorre com maior intensidade em alguns capítulos, por exemplo no capítulo XXXIV, no qual o narrador caminha pelo jardim com Maria Santa e sente uma presença misteriosa, que lhe dá calafrios. Ele chega a sentir o respirar de alguém mas não consegue vê-lo, apenas sente o passar de um vulto.

A estranheza do fato sugere a possibilidade de a passagem enquadrar-se às condições de existência do fantástico:

Definição do fantástico: este exige que três condições sejam preenchidas: - é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados;

Le dernier jour de l’année, à minuit juste, un tumulte extraordinaire m’éveillait en sursaut. Des chants s’élevaient, dominés par le grondement des cloches. Je voyais alors l’église flamboyer. Une lumière rayonnante l’enveloppait comme un nimbe et la faisait paraître toute blanche et fantastique. Je tremblais alors qu’elle ne prît feu tout d’un coup et, dans l’horrible crainte où j’étais de mourir de mort violente, je me jetais à genoux près de la porte et priais avec ferveur pour que ma vie fût épargnée.

- esta hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem. O papel do leitor é confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a hesitação encontra-se representada, torna-se um dos temas da obra;

- é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a interpretação "poética". (TODOROV, 1975, p. 39)

Assim, de acordo com a definição de Todorov, Fronteira e Le voyageur sur la

terre apresentam características da literatura fantástica. Essa hesitação, um dos fatores principais para a existência do fantástico, é um dos elementos responsáveis pelo estranhamento nos romances de Penna e Green. Em Fronteira, o narrador se depara com fatos incomuns e, devido a suas reflexões, sabemos que ele duvida o tempo todo da natureza desses acontecimentos. Uma de suas principais dúvidas é se Maria seria realmente "santa" ou apenas uma atriz a encenar o jogo da tia, Dona Emiliana, a "bruxa", o "ente mágico", e se ele estaria, dessa forma, participando de toda a farsa ali armada.

Todorov ainda afirma que:

O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural. (Ibid., p. 31)

Isto se passa a todo o momento nas duas narrativas e inquietantes interrogações predominam nas reflexões dos narradores. Ocorre também a falta de compreensão dos acontecimentos, perturbando o narrador. No entanto, considerando somente as dúvidas e interrogações do narrador, não podemos classificar os romances de Penna e Green como fantásticos, ainda que alguns fatores sugiram a classificação.

Todorov salienta que:

Todo o "suspense" de uma novela repousa no fato de os acontecimentos inexplicáveis serem contados por alguém que é ao mesmo tempo um dos heróis da história e o narrador: trata-se de um homem como os outros, sua palavra é duplamente digna de confiança; em outros termos, os acontecimentos são sobrenaturais, o narrador é natural: excelentes condições para que o fantástico apareça. (Ibid., p. 92)

Em Fronteira, o narrador-personagem não só faz parte da história, como também é o autor do diário, cujo conteúdo "confessional", de intimidade, conquista a confiança do leitor. Em Le voyageur sur la terre não temos um único narrador, mas vários, e todos, inclusive o principal, Daniel, são pessoas comuns. Primeiro, temos o jovem relatando em seu diário seus dias de angústia, em seguida, as cartas de testemunhas, pessoas que conheceram o jovem, relatando o contato tido com ele. E mesmo a tia, já morta, deixa como herança estranhas histórias para povoarem a mente atormentada de Daniel.

Ela me contava frequentemente lendas irlandesas, dentre as quais algumas me afligiam por seu caráter estranho. Misturavam-se nelas muita bruxaria e muita devoção. Eu não me cansava de ouvi-las, mas essas histórias me enchiam de medo e me causavam pesadelos. Uma delas me parecia mais curiosa e mais aterrorizante que as outras. Era a história de Frank Mac Kenna.

Frank Mac Kenna quis de qualquer jeito caçar uma lebre em um domingo de manhã. Seu pai proibiu, mas depois, como persistia em seu intento, seu pai rogou uma praga de uma maneira assustadora : « Queira o Céu que você não volte vivo para casa, se você for à caça no dia do Senhor. » Mas Frank não o escutou e partiu com seus companheiros. Minha tia me explicava então que ele era um “condenado”, isto é, que ele foi levado à morte por algo fatal.

Eu sempre esperava que Frank Mac Kenna se salvasse no final, mas ele sempre morria a mesma morte misteriosa: sempre era encontrado deitado no chão, na montanha, no meio de um círculo que ele tinha traçado com seu bastão. Minha tia acrescentava que seu chapéu estava abaixado sobre seus olhos e seu livro de missa aberto e colocado sobre sua boca. Ele foi

levado para casa dele em uma mortalha. De fato, as palavras do pai tinham sido ouvidas. (GREEN, 1997, p. 20-21, Tradução nossa)46

Mais bizarro ainda é notar que a frase pronunciada na história contada pela Tia: “...il était poussé à la mort par quelque chose d’irrésistible”, pode perfeitamente ser repetida em relação a Daniel, como uma espécie de premonição antecipando o futuro do rapaz. Vemos, então, duas histórias estranhas se fundindo, com seus protagonistas levados do mundo de forma inexplicável.

Como em Le voyageur sur la terre, também Fronteira contém histórias bizarras contadas por outros ao narrador, histórias populares transmitidas oralmente e que acabaram tomando forma de lenda. Penna busca neste tipo de oralidade um reforço para a configuração do clima de obscuridade de suas obras, logrando obter efeitos de grande intensidade, atraindo o leitor pelo efeito de estranheza e, ao mesmo tempo, prendendo-o pelo suspense.

É interessante observar como, também no epílogo, o autor brinca com o leitor, tentando livrar-se de qualquer responsabilidade, e ao mesmo tempo sugerindo a "veracidade" do diário, a "veracidade" da existência de Maria Santa, que ele próprio não havia conhecido. E, mais uma vez, a oralidade é realçada: a história de Maria Santa teria chegado ao autor

46 Elle me racontait souvent des légendes irlandaises dont quelques-unes me frappaient par leur caractère

étrange. Il s’y mêlait beaucoup de sorcellerie et beaucoup de piété et je ne me fatiguais pas de les entendre, mais elles me remplissaient de crainte et me donnaient de mauvais rêves. L’une d’elles me paraissait plus curieuse et plus terrifiante que les autres. C’était l’histoire de Frank Mac Kenna.

Frank Mac Kenna voulut à toute force chasser le lièvre un dimanche matin. Son père le lui défendit, puis, comme il persistait dans son dessein, il le maudit d’une manière effroyable : "Fasse le Ciel que tu ne reviennes pas en vie chez nous, si tu vas à la chasse le jour du Seigneur." Mais Frank ne l'écouta pas et il partit avec ses compagnons. Ma tante m'expliquait alors qu'il était fey, c'est-à-dire qu'il était poussé à la mort par quelque chose d'irrésistible ....

J'espérais toujours que Frank Mac kenna serait sauvé à la fin, mais il mourait toujours de la même mort mystérieuse et on le retrouvait toujours couché par terre dans la montagne, au milieu d'un cercle qu'il avait tracé avec son bâton. Et ma tante ajoutait qu'il avait son chapeau rabattu sur les yeux et son livre de messe ouvert et posé sur sa bouche. On le rapporta chez lui sur une civière. Ainsi les paroles du père avaient été entendues.

apenas por meio de uma velha parenta, a qual também a teria ouvido de sua mucama, que era a mesma de Maria Santa.

Para configurar esse clima de estranheza o autor usa, com freqüência, comparações com entes “mágicos”.

Eu a via agora, com seus gestos regulares, para lá e para ca, a enrolar o fio em torno da figura sagrada.

Lembrava-me vagamente de minhas leituras antigas, onde passavam bruxas e feiticeiras de terras longínquas. (PENNA, 1958, p. 47)

Tal tipo de comparação surge também em meio as descrições que faz quando imagina a forma como Tia Emiliana dorme.

— Tia Emiliana vai para a gaveta – disse eu, repetindo um velho gracejo, porque me parecia que a pobre senhora não se deitava em sua cama, à noite, como toda gente, mas era guardada por qualquer fada má, no gavetão da cômoda ventruda de seu quarto, com saquinhos de alcanfor e de ervas em torno. (Ibid., p. 49)

Neste mundo de bruxas, feiticeiras, fadas, não poderia faltar a presença de espíritos que apenas são sentidos sem que ninguém os veja:

Nessa mesma noite, muito mais tarde, ao passear no jardim silencioso e devastado, senti uma presença misteriosa, e a escuridão parecia viver, palpitando lentamente e fazendo perceber o seu respirar surdo.

[ . . . ]

Calou-se subitamente, porque justo nesse momento a presença invisível passou por nós, e o mesmo arrepio que me fez estremecer, sacudiu as espáduas de Maria em um choque brusco.

[ . . . ]

Talvez até mesmo eu me fora, também, e ali ficara somente o meu fantasma, entre os outros fantasmas que pareciam rondar furtivamente o jardim.

Senti, depois uma mão trêmula agarrar-me o braço, e unhas em garra enterraram-se na minha carne. Um bafo quente chegou-me até a boca, adocicado e morno, e senti que todo o meu corpo se encostava a outro corpo, em um êxtase doloroso e longo, inacabado e insatisfeito ...

Quando voltei a mim, procurei afastar com violência o monstro que viera das trevas, mas estava só de novo, e voltei para casa, sem procurar explicar o que me sucedera, e, já no meu quarto, lavei a boca, o rosto e as mãos, como o fazem os criminosos, para apagar os vestígios de seu crime. (Ibid., p. 64)

Os dois sentem nesse momento uma presença estranha, mas a palavra “crime” no fim da citação remete-nos a uma interpretação sensual. Talvez o autor estaria aqui sugerindo a tentação a que ambos estavam cedendo, pois para a “Santa” qualquer tipo de relacionamento é um crime e, para aquele que se envolve com ela, uma profanação. É como se um espírito maligno os empurasse um ao encontro do outro.

Os medos e dúvidas do narrador vão perdurar até o final da narrativa e, apesar de libertar-se da tentação com a morte de Maria, ele não se livra de suas dúvidas. Também os mistérios não terminam no final das páginas do diário. O autor ainda insere palavras suas ao romance, o que mantém o suspense e o clima sobrenatural:

Tendo conversado muitas vezes com a mucama, não pude dar um passo atrás no seu passado e no daqueles que tinha conhecido e assistido em sua vida íntima, mas tive a compreensão bem clara de que achara em sua fé total e tranqüila um abrigo, um refúgio de amor e de proteção muito forte, que me defenderia do medo que sentia prolongar-se em mim, inexplicado, quando vi que juntos com o diário, estavam os papéis deixados pelo Juiz. Como tinham vindo parar ali? Não sei explicar, e não quero saber o segredo que guardam, presos por uma fita e pelo alfinete que a velha mucama me deu ... (Ibid, p. 166-167)

Podemos constatar em todas as passagens que o sobrenatural, em nenhum momento, é explícito, permanecemos sempre na margem do estranho, e de um estranho de caráter apenas ilusório.