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NA TERRA DOS BÚFALOS: CONFLITOS E MOBILIZAÇÕES NA BAIXADA MARANHENSE

3 O MUNDO RURAL E OS CONFLITOS AGRÁRIOS NO MARANHÃO: ENTRE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS

3.4 NA TERRA DOS BÚFALOS: CONFLITOS E MOBILIZAÇÕES NA BAIXADA MARANHENSE

Na Baixada Ocidental Maranhense251, que inclui boa parte dos municípios com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)252 do estado, a área de ocorrência de

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Compreende os municípios de Anajatuba, Arari, Bela Vista do Maranhão, Cajari, Conceição do Lago-Açu, Igarapé do Meio, Matinha, Monção, Olinda Nova do Maranhão, Palmeirândia, Pedro do Rosário, Penalva, Peri-

babaçuais é de cerca de 1.873.500 hectares. Esta localidade é caracterizada pela predominância de campos naturais com áreas de alagadiços. Ao longo de anos a reprodução das famílias camponesas tem se dado através da conciliação entre o trabalho extrativista do babaçu, mas também daexploração do açaí,na região conhecido como juçara, e do buriti, da atividade agrícola e da pesca.

Como descreveu Correia de Andrade (2011, p. 236), áreas de ocupação mais antigas no Maranhão, como é o caso da Baixada, tem apresentado, com variações locais, um mesmo modelo básico de exploração do trabalho camponês no que concerne à produção agrícola, à pecuária, à coleta do babaçu e a comercialização desses produtos. Foi comum a implantação de pequenos entrepostos para abastecer a população camponesa com os produtos de origem urbana. Desse modo, historicamente, desenvolveram-se relações de produção nas quais o campesinato se encontrava na situação de mão-de-obra imobilizada pelo latifúndio, produzindo enquanto unidades familiares submetidas ao aforamento e ao controle da comercialização pelo grande proprietário. Essa alternativa teria sido dada como solução à crise com que se defrontou o latifúndio após a libertação dos escravizados, na ausência de condições para sustentar novas relações de produção baseadas num mercado de trabalho livre (CORREIA DE ANDRADE, 2011, p. 157-158).

A Baixada foi uma das regiões que ficou à margem do processo de fluxo migratório ocorrido em outras partes do estado. Nessa região, a política de regulamentação da propriedade fundiária teve um impacto mais abrangente sobre a reorganização do mercado de terras, gerando a preocupação dos grandes proprietários quanto às possibilidades reais ou potenciais de regulamentação da propriedade jurídica (ALMEIDA; MOURÃO, 1976, p. 15).

Um dos principais problemas enfrentados pelos trabalhadores da região a partir de meados do século XX foi a privatização dos campos naturais para o investimento na pecuária bovina e bubalina, o que acarretou a devastação, em larga escala, dos babaçuais, juçarais e buritizais. Nessa região de ocupação antiga, os investimentos se voltaram principalmente para a bubalinocultura. A criação de búfalofoi introduzida no Maranhão na década de 1930, mas os incentivos estaduais e federais para essa atividade só se iniciaram a partir dos anos 1960, quando ela passou a ter importância econômica para o Estado.

Na década de 1960,

Mirim, Pinheiro, Presidente Sarney, Santa Helena, São Bento, São João Batista, São Vicente Férrer, Viana, e Vitória do Mearim. (ver Anexo B)

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Indicador usado internacionalmente pela Organização das Nações Unidas (ONU) para medir o desenvolvimento e que engloba três aspectos – educação, renda e longevidade.

Alguns segmentos do Governo, começam a apresentar a bubalinocultura como a tábua de Salvação da Baixada, cuja economia estava sendo considerada como estagnada. Dali em diante, segundo os planejadores, a região poderia se tornar uma grande bacia leiteira, bem como poder-se-ia incrementar a pecuária de corte, tendo em vista ser aquele animal reconhecido tecnicamente como grande reprodutor de carne e leite superando o gado bovino (SMDH, 1992, p. 60).

Anos depois, algumas instituições de caráter social e ambiental constataram que a implantação dessa atividade não significou nenhum desenvolvimento social para a Baixada Maranhense. Ao contrário, o investimento na pecuária gerou uma série de problemas, pois a inserção do búfalo ocasionou um desequilíbrio ecológico e social para pequenos produtores rurais, pescadores e quebradeiras de coco da região, impulsionando violentos conflitos. Além disso, nunca se conseguiu inserir o leite e a carne bovina na cultura alimentar local.

Cabe lembrar que o avanço da pecuária no estado se deu principalmente a partir de 1975 e teve altos índices de desenvolvimento até mais ou menos o final dos anos 1980. A intensificação dos conflitos envolvendo, de um lado, a roça e, do outro, o gado provocou casos de violência física que acabaram por revelar um tipo de resistência camponesa aos antagonistas e um reforço a suas condições materiais de existência.

A formação de áreas privativas para a pecuária nos campos da Baixada caracteriza o processo de transição das relações de produção ocorridas no Maranhão do período. Foram ocupadas áreas que tradicionalmente estavam disponíveis para a utilização livre por toda a população e cuja incorporação progressiva ao patrimônio particular dos grandes proprietários ameaçou atividades básicas de manutenção da unidade familiar camponesa (ALMEIDA; MOURÃO, 1976, p. 16).

No decorrer da segunda metade do século XX, a criação bubalina veio a beneficiar grandes fazendeiros que tiveram investimentos públicos para o desenvolvimento de seus projetos e, consequentemente, a oportunidade de aumentar seus patrimônios. Além disso, esses criadores não precisariam montar pastos nem infraestrutura já que os animais eram criados soltos, ocupando os campos naturais, o que podia comprometer a saúde e a vida dos camponeses. A pecuária extensiva foi também responsável pela maior parte da devastação dos babaçuais existentes no estado, sob a alegação de que os gados bovino e bubalino necessitavam de espaço para se desenvolverem e de que as palmeiras prejudicavam a atividade, pois as cascas do coco podiam ferir os animais. Os fazendeiros costumavam também proibir a fabricação do carvão pelos trabalhadores, alegando que os animais adoeciam ao caírem nos buracos das caieiras.

Essas situações geraram muitos conflitos, fazendo com que as quebradeiras de coco fossem impedidas de coletar o coco nas pastagens artificiais e também de fazer caieiras para a produção do carvão da casca de babaçu. Muitas vezes, a saída encontrada por elas foi pagar uma diária para algum trabalhador que fizesse o transporte do babaçu das soltas até os povoadosa fim de que, assim, pudessem realizar a quebra do coco em seu local de moradia.

Em Carta das Quebradeiras de Coco Babaçu, divulgada durante o V EIQCB, denunciava-se que, em alguns casos, os fazendeiros da região insistiam na prática ilegal de exigir das quebradeiras a obrigatoriedade de entrega das amêndoas nos seus estabelecimentos comerciais (bodegas, barracas e quitandas) e nos seus “barracões”, forçando-as a usar “carteirinhas” em áreas de babaçuais por eles ilegitimamente controladas. Fazendeiros e “atravessadores” passaram a se beneficiar do comércio de amêndoas, fixando condições arbitrárias de apropriação da produção a exemplo da “quebra do coco de meia” e entrega compulsória da casca do coco e da metade da produção de carvão (MONTEIRO et al., 2005, p. 37).

Em Penalva, foram noticiadas ações violentas para impedir o acesso de mulheres às áreas de coleta do babaçu, tais como castigos corporais e o confisco do coco, empregados por encarregados da terra. Disparos eram comumente efetuados a fim de amedrontar quebradeiras de coco que se encontravam realizando o extrativismo (MARTINS, 2001, p. 153).

Conflitos envolvendo búfalos na microrregião foram sendo registrados a partir desse período. Uma das consequências desse tipo de pecuária, segundo especialistas no assunto, tem sido também a diminuição dos peixes dos lagos e o desaparecimento de algumas espécies devido ao pisoteamento do solo por esses animais (ANDRADE, 1999, p. 166).

No início da década de 1980, em Turiaçu, município próximo à Baixada, houve conflitos envolvendo a criação de búfalos na região. Alguns trabalhadores foram presos acusados de matar os animais. Em 1989, houve ações organizadas de trabalhadores rurais dos municípios de Anajatuba, Santa Rita, Rosário e Vitória do Mearim253 que, insatisfeitos com a criação extensiva de búfalos, mataram alguns desses animais. Os trabalhadores justificaram suas práticas alegando que os búfalos destruíam seus roçados, atacavam pessoas (algumas das quais haviam sido mortas), destruíam os seus materiais de trabalho, contaminavam a água, e até comiam e estragavam suas vestimentas (SMDH, 1992, p. 61).

Ora, nas situações em que o gado do proprietário invade a roça e consome ou destrói a plantação, ocorre também uma apropriação do produto do trabalho camponês que se revela

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Santa Rita e Rosário não são municípios da microrregião, mas devido à proximidade geográfica e de condições de conflito, os trabalhadores dessas localidades estavam passando por problemas semelhantes.

indevida principalmente porque a pecuária implica em relações de produção distintas que não dependem diretamente do controle da terra (ALMEIDA; MOURÃO, 1976, p. 16).

A partir da década de 1980, houve um crescente número de prisões de camponeses, decorrente de uma campanha abertamente deflagrada que acusavaalguns trabalhadores de furtarem gado de fazendeiros. Essas prisões vinham sempre acompanhadas de outros tipos de violência, como invasões domiciliares, apropriação de armas de caça e munição, e destruição de utensílios domésticos dos camponeses (SMDH, 1992, p. 61). De fato, situações de violência patrimonial, quando o agressor causa dano, perda, destruição, retenção de objetos, bens, instrumentos de trabalhos ou documentos pessoais, foram bastante recorrentes na Baixada Maranhense.

Em 1990, um laudo do IBAMA constatou que um número significativo de búfalos em um único espaço causaria desequilíbrioao meio ambiente. Antes disso, em outubro de 1989, um artigo da Constituição Estadual estabelecia que, num prazo máximo de dois anos, os criadores de búfalos deveriam retirar seus rebanhos dos campos naturais da Baixada Maranhense. Por aquele artigo da Constituição, os búfalos deveriam ser retirados da região até 5 de outubro de 1989, todavia, até o prazo final firmado os criadores não haviam cumprido com a determinação. Por essa razão, um novo prazo de mais dois anos foi votado, o que desagradou os camponeses, que viam nessa prorrogação uma possibilidade dada aos criadorespara manobrarem o estabelecido e continuarem com seus rebanhos nos campos públicos da região, bem como a possibilidade de exigir a prisão dos trabalhadores que saíssem em defesa de seus roçados e de suas áreas de pesca (SMDH, 1992, p. 62-63).

Em 1991, outra medida foi tomada em favor da retirada dos animais, através do artigo 241 da Constituição Estadual, mas o problema não foi resolvido (CPT, 1991, p. 25). Para trabalhadores e membros da Igreja Católica, “o Governo Lobão é o principal responsável por esta situação ao descumprir frontalmente a Constituição do Estado. Da mesma forma, os deputados e os juízes, que acobertaram essa situação, são também responsáveis pelos conflitos e a violência na Baixada Maranhense” (TEMPOS NOVOS, 1992c, p. 8.).

Pelos registros das situações conflitivas na área, pode-se inferir que os búfalos representavam grande ameaça aos agricultores e quebradeiras de coco de muitos municípios maranhenses, tanto que, em setembro de 1991, durante os festejos da Padroeira de Cajapió, Nossa Senhora das Mercês, houve orações com pedidos insistentes a Deus pela retirada dos búfalos da Baixada e municípios vizinhos. Esses pedidos foram feitos por trabalhadores rurais dos municípios de Anajatuba, Cajapió, Rosário e Santa Rita (CPT, 1991, p. 25).

A Coordenadoria de Conflitos Agrários do MIRAD (1985-1989) e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher fizeram um relatório sobre a violência no campo maranhense entre os anos de 1985 e 1986 e divulgaram a ocorrência de duas mortes dentro de um babaçual em Cajari num conflito gerado pelo pretenso proprietário ao proibir a entrada de extrativistas na área de coleta do coco babaçu (TEMPOS NOVOS, 1990b, p. 7).

No início dos anos 1990, em Peri-Mirim, dois proprietários começaram a cercar os campos naturais e a derrubar os babaçuais no povoado de Malhada dos Pretos. Com esse episódio, logo os camponeses se organizaram e colheram assinaturas em um abaixo-assinado que foi entregue às autoridades estaduais e federais via STR. No mesmo documento, os trabalhadores cobravam o cumprimento da Constituição no que se referia à questão dos búfalos (TEMPOS NOVOS, 1991, p.10). Em 1993, também houve uma mobilização de trabalhadores dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs) de Santa Helena, Pinheiro, Vitória do Mearim, Bequimão, Palmeirândia, Santa Rita, São Bento, Viana, Alcântara, Peri- Mirim, Cajari e Rosário254 para discutir quais medidas tomarem diante da situação já que os búfalos continuavam soltos nos campos naturais da Baixada e de microrregiões vizinhas (TEMPOS NOVOS, 1993, p. 10).

No final do século XX, muitos camponeses foram perdendo suas terras, sendo forçados pelas contingências a mudarem-separa periferias de pequenas cidades em razão do processo de privatização maciça de terras na microrregião. Por outro lado, alguns deles, foram conquistando títulos de propriedade e formando um campesinato médio especialmente por terem se dedicado ao comércio ambulante (transportando produtos camponeses para a capital) ou virado “negociantes de boi” (ALMEIDA; MOURÃO, 1976, p. 20).

Almeida e Mourão (1976, p. 21) identificaram, em estudos feitos na década de 1970, que uma grande parte dos novos proprietários camponeses, ao contrário dos grandes fazendeiros investidores na pecuária extensiva, almejava desenvolver uma pecuária mais intensiva, utilizando o sistema de “soltas” (gado preso em cercado de pastos artificiais), combinado a uma cultura de subsistência e à extração do babaçu.

Alguns projetos de assentamento foram desenvolvidos na microrregião, destacando- se o próprio reconhecimento oficial de algumas comunidades como remanescente de quilombos. Mas, como apontaram as quebradeiras de coco da região, já nos anos 2000, os projetos de assentamento careciam de medidas que viabilizassema recuperação das áreas

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Os municípios de Bequimão, Santa Rita, Alcântara e Rosário não pertencem à microrregião da Baixada Maranhense, embora sejam geograficamente muito próximos dos demais municípios citados. Contudo, na mesma época, estavam enfrentando problemas similares aos da Baixada no que concerne à invasão da pecuária.

degradadas com uma política de reflorestamento de espécies nativas. Por outro lado, os campos naturais da Baixada permaneceram devastados pelos rebanhos de búfalos, o que também inviabilizaas atividades extrativas da beira campo, tornando insustentáveisas condições de vida das populações locais e, sobretudo, das quebradeiras de coco babaçu (MONTEIRO et al., 2005, p. 37).

3.5 GRILAGEM, DISPUTAS E RESISTÊNCIA NA MICRORREGIÃO DE IMPERATRIZ  

As ocorrências de violência nas áreas de babaçuais na microrregião de Imperatriz255 também foram expressivas. Após a criação da estrada Belém-Brasília, construída entre 1956 e 1964 com o objetivo de ligar o Norte ao Centro e ao Sul do país, a situação de conflito se alargou. Já nesse período que corresponde à implantação da rodovia iniciaram-se as primeiras grilagens na região, e ao mesmo tempo os movimentos migratórios vindos dessa abertura começaram a ocorrer em direção ao Nordeste do estado (ASSELIN, 2009, p. 33).

Por volta de 1960, já começavam a chegar à região de Imperatriz migrantes de segunda geração expulsos do Médio Mearim pela crescente dificuldade de terras e pela ação dos grileiros. Nesse momento, unificavam-se as correntes nordestina e maranhense propriamente dita, formando um único fluxo (ALMEIDA; MOURÃO, 1976, p. 13). As disputas foram aumentando entre grupos políticos locais e os ditos “forasteiros”. Outros migrantes foram chegando à microrregião de Imperatriz e se somando à população local. Eram, em geral, contingentes compostos de lavradores mineiros, baianos e capixabas que aos poucos foram formando uma espécie de classe média rural e se estabeleceram às margens da BR-010.

Mais uma vez, o desenvolvimento do sistema rodoviário atuou como fator de atração de grupos de fazendeiros e grileiros, já que facilitaria o escoamento do arroz e do gado para os grandes centros consumidores. A estrada atuou, assim, tanto como fator de divulgação da ocorrência de terras livres para outros grupos sociais não camponeses interessados na terra, como também introduziu novos personagens ao nível da comercialização, como o “caminhoneiro” que rompe, em alguns casos, com a cadeia de intermediação anterior, canalizando a produção do arroz para centros consumidores extraestaduais (ALMEIDA; MOURÃO, 1976, p. 13). Vários territórios da região foram sendo ocupados por funcionários

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É composta por dezesseis munícipios, quais sejam: Açailândia, Amarante do Maranhão, Buritirana, Cidelândia, Davinópolis, Governador Edison Lobão, Imperatriz, Itinga do Maranhão, João Lisboa, Lajeado Novo, Montes Altos, Ribamar Fiquene, São Francisco do Brejão, São Pedro da Água Branca, Senador La Roque, e Vila Nova dos Martírios. (ver Anexo B)