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Nadir da Mussuca: um documentário etnográfico – resgate da imagem em

No documento Corpo negro : território, memória e cinema (páginas 112-115)

4.3 NADIR DA MUSSUCA (2015)

4.3.5 Nadir da Mussuca: um documentário etnográfico – resgate da imagem em

Atualmente, o documentário está imbricado em diversos modos conceituais de produção. Entretanto, desde sua história:

O documentário definiu-se em relação à vida, que lhe permite afirmar sua diferença; em relação à ficção, tentando aproveitar sua sombra gigantesca; em relação à técnica, ora colocada na frente, ora relegada ao fundo pela questão essencial da autenticidade. Dessas aproximações ou rejeições, nasceram denominações diversificadas: basta repertoriá-las, as mais duráveis como as mais efêmeras, para apreciar as ciladas do percurso. (GAUTHIER, 2011, p. 204)

A partir desse ponto de vista, sobretudo, cotejado pelos hibridismos dos recursos tecnológicos associados às linguagens estéticas, concluímos que, no campo movediço do documentário, o filme de Alexandra Gouvêa Dumas, Nadir da Mussuca (2015), transita e dialoga utilizando vários modos do fazer. Contudo, pelo viés do objeto de estudo e pesquisa de Alexandra Dumas – a guardiã do saber, Dona Nadir –, as sutilezas e peculiaridades do documentário etnográfico saltam em primeiro plano.

Nesse sentido, as histórias que compõem a vida de Dona Nadir estão intrinsecamente ligadas às suas memórias e às formas cognitivas de construção da sua relação corpórea, espiritual e telúrica a comunidade Mussuca, e com o Samba de Pareia, como canta em uma estrofe do samba:

Na Mussuca eu nasci Na Mussuca eu me criei Com o Samba de Pareia Na Mussuca eu morrerei Cadê o samba?

Ói ele aqui.

A música, o samba, no filme, deixa claro que Dona Nadir é corpo-linguagem, marcado de significados. Sua performance cênica dentro do Samba de Pareia e a forma como entoa os cantos estabelece uma comunicação com as pessoas que remete uma ressignificação simbólica da memória ancestral e cria uma forma particular de se religar às suas origens. Em relação a essas origens, ao corpo negro atribui-se a mesma importância que à memória:

O corpo é também pontuado de significados. É o corpo que ocupa os espaços e deles se apropria. Um lugar ou uma manifestação de maioria negra é ‘um lugar de negros’ ou ‘uma festa de negros’. Não constituem apenas encontros corporais. Trata-se de reencontros de uma imagem com outras imagens no espelho: com negros, com brancos, com pessoas de outras cores e compleições físicas e com outras histórias. (RATTS, 2007, p. 68)

Voltemos ao documentário: ele traz um dos momentos importantes da antropologia e do registro etnográfico em Sergipe – produção realizada pela professora Beatriz Góis Dantas no ano de 1976. Ela filmou a Dança do São Gonçalo da comunidade Mussuca, e o pai de Dona Nadir, o mestre e “patrão” José Paulino, estava em atividade.

Pois bem, em uma sequência de cenas, Dona Nadir está junto às suas irmãs Zelita e Pepeu, falando dos seus pais. O plano é emblemático: elas mostram uma foto dos pais – José Paulino e Maria Pureza. Em outra cena, sentada no degrau da escada do oitão (lateral da casa dela), Dona Nadir explica como o pai fazia com os filhos, explicando a Dança do São Gonçalo:

Ele me ensina dessa forma: quando não tinha uma promessa, ele assentava com os filhos todos, fazia aquela roda ali de filho. Que eram dez filhos e ele pegava a cantar com a gente aprendendo ali, ele cantava com a gente. Ói essa música é essa, essa música é essa, essa é essa. Vocês têm que cantar nesse ritmo, entendeu? (Nadir, NADIR DA MUSSUCA, 2015)

Figuras 29: Sequência de fotos – Dança do São Gonçalo da Mussuca

Em seguida, entram as imagens do filme em super8112. A primeira imagem é um close na Mariposa113, depois vai-se afastando e surge a figura do patrão José Paulino, com um pequeno tambor (caixa). Eles caminham no terreiro da casa. No plano seguinte, vê-se o ensaio geral do grupo, mestre Paulino tocando enquanto os homens dançam em frente à imagem de São Gonçalo. Entra o letreiro, trecho do filme: A DANÇA DO SÃO GONÇALO (1976) – Beatriz Góis Dantas. Em outro plano, mostra a refeição coletiva (banquete ritual) dos dançadores do São Gonçalo. O mestre Paulino aparece na cabeceira onde está servido o banquete sobre uma esteira. Em seguida, mais distante, aparece o patrão Paulino, agora vestido com a indumentária de marinheiro. Close no rosto. Vemos detalhes do chapéu: quepe de marinheiro amarrado com fita branca descendo da orelha e fazendo o nó embaixo do queixo.

A inserção do trecho do documentário A dança do São Gonçalo no outro documentário, Nadir da Mussuca, é um fator de metalinguagem. Os discursos narrativos se confluem quando Dona Nadir fala de seus pais e narra como aprendeu os detalhes da Dança do São Gonçalo junto com seus irmãos. Em paralelo, na montagem do filme, resgatam-se as imagens em movimento do “patrão” José Paulino, pai de Dona Nadir. Esse encontro é marcado por uma forma de ampliar as memórias, agora, não só pelo aspecto desse cinema narrativo que objetiva conhecer as situações reais da oralidade da personagem central do documentário, mas também por outro recurso que se agrega à fonte audiovisual etnográfica, dentro de outra fonte audiovisual.

Nesse contexto, o documentário Nadir da Mussuca, pelo conjunto nele empregado, mostra um aperfeiçoamento da linguem no envolver do que “são objeto e sujeito nas condições do cinema. Por convenção, objetivo é o que a câmera ‘vê’; e subjetivo, o que a personagem ‘vê’” (DELEUZE, 2007, p. 179-180). Decerto, o que a câmera de Alexandra Dumas compartilha conosco é uma personagem real, de “carne e sangue”, que responde perguntas que foram elaboradas a partir de uma convivência constituída no jogo de princípios regulados pela ética afetiva. Com isso, Alexandra Dumas e Dona Nadir, antes da filmagem do documentário, estabeleceram uma mútua confiança que, claramente, permite à “cineasta- câmera vê a personagem e o que a personagem vê”. Com isso, em alguns momentos, a distinção e a identidade caminharam juntas, frutificando primoroso documentário etnográfico do cinema sergipano.

112 Ver também DANTAS, Beatriz Góis. Mensageiros do lúdico – mestres de brincadeiras em laranjeiras. Aracaju: SE. Criação, 2013, p. 35-42; e Devotos dançantes – estudos etnográficos e folclore. Aracaju: SE. Criação, 2015, p. 69-84.

No documento Corpo negro : território, memória e cinema (páginas 112-115)