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O NEGRO NO TEATRO POPULAR

A propósito disso, como fonte primária para acercar-se ao corpo negro no cinema, nesta pesquisa, o primeiro ato foi conhecer / descobrir os primeiros percursos e evidências da presença do negro no teatro popular, por meio das manifestações dramáticas dos folguedos

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Do quimbundo: festa, festejo (LOPES, 2012, p. 219).

12 No filme A negação do Brasil, de Joel Zito Araújo, 2000: “Tabus, preconceitos e estereótipos raciais são discutidos a partir da história das lutas dos atores negros pelo reconhecimento de sua importância na história da telenovela – produto de maior audiência no horário nobre da TV brasileira. O diretor, baseado em suas memórias e em pesquisas, analisa as influências das telenovelas nos processos de identidade étnica dos afro-brasileiros”– Central de Acesso ao Cinema Brasileiro – Programadora Brasil.

populares, em especial, no estado de Sergipe, onde, em 1915, em seu manuscrito Anuário Christovense, num exercício de preservação da memória e de registro de notícias, de forma sucinta, Serafim Santiago descreve costumes e práticas sociais e religiosas da cidade de São Cristóvão13.

São os folguedos: reisados, taeiras, cheganças14, cacumbis e, bem depois, a incorporação do São Gonçalo – cujas apresentações estão associadas às celebrações do ciclo religioso, durante a dramatização da missa e da Procissão dos Penitentes (destacamos a festa de São Benedito e a de Nossa Senhora do Rosário), no dia 6 de janeiro (conhecido como Dia de Reis) e em datas comemorativas (DANTAS, 2013).

Dentro dos grupos de folguedo, a maioria dos participantes são trabalhadores rurais e prestadores de serviço dos mais variados ofícios na localidade onde moram. Esses participantes, quando estão na brincadeira do folguedo, distinguem-se nessa atividade como brincantes.

Nos folguedos e nas celebrações, os negros terão sua primeira participação com a autorização dos poderes vigentes, entre eles, a igreja, levando-se em conta a relação prática, corpórea, e simbólica, espiritual, num jogo de ressignificações das coisas e das funções relacionadas ao mundo em que vivem, considerando que a relação de poder da estrutura social, durante algumas brincadeiras, toma novas formas e contornos, sopesando que, quando reis, rainhas e princesas negros são coroados nos interstícios de festas e celebrações, a visualidade de seus trajes e adereços normatizam uma coreografia dramática que se atribui aos participantes – os brincantes –, na condição de atores populares, que sempre são prestigiados e reconhecidos pela população do local onde acontece a brincadeira.

Segundo Joel Rufino dos Santos, em A História do negro no teatro brasileiro (2014), “Dessas atividades dramáticas indistintas, os reisados atravessaram o tempo, representados, até hoje, no Nordeste, com a mesma feição do tempo de Anchieta e Nóbrega.” (SANTOS, 2014, p. 73)

Entrementes ao teatro popular com as manifestações artísticas dos folguedos junto às celebrações religiosas, os negros também iniciam sua participação na cena teatral, no circo e no variado segmento do teatro. Observemos:

13 Disponível em http://itamarfo.blogspot.com.br/2010/12/as-historias-de-santiago-e-do-seu.html. Acesso em 02/12/2017. Consultar também SANTIAGO, Serafim. Annuario Christovense ou Cidade de São Cristóvão. São Cristóvão: UFS, 2009.

14 Ver, mais detalhadamente, em BARRETO, Luiz Antônio. Um novo entendimento do folclore e outras abordagens culturais. Aracaju: SE. Sociedade Editorial de Sergipe, 1994, p. 184-188.

[...] a personagem negra deixará, aos poucos, de ser um objeto, ou um animal que compõe o cenário. Ele será promovido, digamos, à personagem humana. Estereotipada, diabolizada, bode expiatório dos pecados da sociedade, por um lado e por outro, o irresponsável, o idiota, o inconfiável, o animalesco (SANTOS, 2014, p. 112)

Pela condição histórica do negro no Brasil, o país saindo do regime escravocrata, o negro fará parte do drama teatral, enriquecendo as histórias e as narrativas, todavia sua participação será estereotipada como um “símbolo do mal”. Assim ele é visto na “sociedade escravista”. Em contraponto, embora esteja no drama, o negro está distante de fazer parte do teatro, de frequentar o local e de ocupar um lugar (assento) e de fazer parte em seu habitus15 como quem possui civilização e posse em meio à sua classe social (SANTOS, 2014).

Essa ideia de teatro sobreviverá até hoje em nossa civilização: uma diversão de seletos. Os de baixo não frequentam, especialmente em sociedades de longo passado colonial e marcadas pela desigualdade social brasileira. A igreja e suas festas, o circo, a praça de esportes, a rua, a praia são, em certa medida, espaços socialmente partilhados. É nesse sentido que se diz ter o cinema democratizado o espetáculo, mantendo, porém, o luxo burguês das salas de exibição. Quanto mais o cinema se popularizou, mais o teatro se elitizou no Brasil. O cinema não teve, porém, a virtude do rádio, cuja era se inicia com a Grande Guerra: criar a nossa primeira comunidade nacional. O teatro era de pouquíssimos, o cinema de muitos, o rádio de todos. A cena brasileira continuou falando em português de Portugal até o século 20, o cinema em língua americana, e o rádio em brasileiro. (SANTOS, 2014, p. 56).

Nesse sentido, percebemos que a arte do negro e seu corpo como vetor semântico capaz de produzir poéticas artísticas e dramáticas apenas vão ganhar dimensão na sociedade brasileira a partir do surgimento de experiências que irão valorizar e visibilizar o corpo negro e suas relações com memórias, ancestralidades, oralidades e consciência político-ideológica de uma classe.

15 Embora Joel Rufino dos Santos não faça referência de onde tomou o termo habitus, empreendo convergências: “[...] Aparecem encruzilhadas em que as pessoas têm de fazer escolhas, e de suas escolhas, conforme sua posição social, pode depender seu destino pessoal imediato, ou o de uma família inteira, ou ainda, em certas situações, de nações inteiras ou grupos dentro delas...” (ELIAS, 1994, p. 48); assim como “[...] o habitus seria um conjunto de esquemas implantados desde a primeira educação familiar, e constantemente repostos e reatualizados ao longo da trajetória social restante, que demarcam os limites à consciência possível de ser mobilizada pelos grupos e/ou classes, sendo assim responsáveis, em última instância, pelo campo de sentido em que operam as relações de força. Para além da ‘comunicação das consciências’, os grupos e/ou as classes compartilham das inúmeras competências que perfazem seu capital, como uma espécie de princípio que rege as trajetórias possíveis e potenciais das práticas...” (BOURDIEU, 2007, p. XLII). Ver também o comentador da obra de Pierre Bourdieu, Loïc WACQUANT, quando escreve sobre o verbete habitus: “[...] mas é no trabalho de Pierre Bourdieu, que estava profundamente envolvido nesses debates filosóficos, que encontramos a mais completa renovação sociológica do conceito delineado para transcender a oposição entre objetivismo e subjetivismo: o habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade de senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar ‘a interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade’, ou seja, o modo como a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e solicitações do seu meio social existente...” (CATANI, et al., 2017, p. 214).