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Burton intitulou o seu relato da peregrinação de Personal Narrative of a Pilgrimage to

Al-Madinah and Meccah, e justificou o título porque “„é o pessoal que interessa à

humanidade‟”, após garantir que “trabalhou para corresponder à natureza desse nome”. Não se desculpava pela “aparência ególatra da narrativa”, pois alguns leitores poderiam ficar curiosos em saber que medidas tomou para o seu “repentino” surgimento como “um Oriental no palco da vida Oriental”, esperando que esse “recital” pudesse ser de alguma “utilidade para futuros aventureiros”152

. Assim, Burton apresentava-se ao leitor como se participasse de uma peça teatral, o que ia ao encontro do gosto inglês pelo teatro, cujo aspecto dramático da “trama”, ambientada em um cenário tido como “exótico”, seria a ameaça recorrente de se descobrir a identidade europeia de Burton.

É possível que o explorador tenha exagerado um pouco sobre os perigos que teria enfrentado caso sua identidade europeia fosse descoberta, apesar de Lovell (1998) acreditar que ele estivesse realmente convencido de que poderia morrer, dado ao que aprendeu sobre o

hajj e diante de vários incidentes em que não muçulmanos foram mortos ao serem detectados

em lugares sagrados. Já para Philip Williams (2012), o explorador teria exagerado na perspectiva da violência que sofreria caso fosse descoberto, ao trazer o exemplo do diplomata francês Léon Roches (1809-1900) que, em meio aos rituais do hajj em 1841, foi descoberto no monte Arafat, onde foi preso, amordaçado e levado para Jiddah sem ter sido ferido.

Burton comentou em nota que o único europeu que visitou Meca sem “se tornar um apóstata” era M. Bertolucci, cônsul sueco no Cairo: “Esse cavalheiro persuadiu os beduínos que o acompanhavam até Taif a apresentá-lo disfarçado – ele afirmou ingenuamente que o seu medo de ser descoberto impediu-o de fazer qualquer anotação”. Enquanto o finlandês George

152 BURTON, R., 2014, v. 1, p. 4-5: “I have laboured to make its nature correspond with its name, simply because „it is the personal that interests mankind‟. [...] but some perchance will be curious to see what measures I adopted, in order to appear suddenly as an Eastern upon the stage of Oriental life; and as the recital may be found useful by future adventurers, I make no apology for the egotistical semblance of the narrative.”

90 A. Wallin fez a peregrinação em 1845, mas a sua “„posição perigosa e a companhia suja dos persas‟” foram obstáculos para que tomasse notas153

.

Mesmo assim, o risco de ser descoberto era parte integrante da “trama” criada por ele para seu leitor. É o caso de quando fez a sua segunda visita à Caaba, em que afirmou se sentir “preso como um rato em uma armadilha” ao olhar pelas paredes sem janelas do templo e ver os oficiais na porta e a multidão de “fanáticos excitados”154

. Em seguida, há uma nota, em que declarou que “não importa o quanto um cristão esteja seguro em Meca, nada poderia preservá- lo das facas dos fanáticos enraivecidos se detectados na Casa. Essa ideia é uma poluição para o muçulmano”155

. No entanto, esse temor não o impediu de fazer um rascunho da planta do templo com um lápis dentro do seu ihram156. Essa passagem mostra que, mesmo se o perigo não fosse real, essa tensão era um importante recurso retórico a fim de “ambientar” a sua história. E, claramente, tudo correu bem na viagem, ou Burton não teria narrado o que aconteceu e o livro não existiria.

Ben Grant (2009, p. 72) observou que o relato possui um segundo título: Narrativa

Pessoal da minha Viagem de Verão pelo Al-Hejaz (BURTON, R., 2014, v. 1, p. 4) ou Narrativa Pessoal da minha Viagem pelo Al-Hejaz (ibid., v. 2, p. 276), sendo que o primeiro

abre o livro, enquanto o último encerra-o. Para o autor (GRANT, 2009, p. 72), esse título inscreve Burton tanto como um aventureiro em uma viagem de “férias de verão”, quanto como um explorador pela região geográfica do Hejaz. “Ao renomear sua obra, Burton chama a atenção ao mesmo tempo que oculta o título que se encontra na capa [do livro]” e, justapondo esses dois títulos (Narrativa Pessoal de uma Peregrinação para Medina e Meca e

Narrativa Pessoal da minha Viagem pelo Al-Hejaz), Burton escreve um sobre o outro,

“dando-nos o compulsivo motivo recorrente desse fragmento estendido de autobiografia: o

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Ibid.: “The only European I have met with who visited Meccah without apostatising, is M. Bertolucci, Swedish Consul at Cairo. This gentleman persuaded the Badawin camel men who were accompanying him to Taif to introduce him in disguise: he naively owns that his terror of discovery prevented his making any observations. Dr. George A. Wallin, of Finland, performed the Hajj in 1845; but his „somewhat perilous position, and the filthy company of Persians,‟ were effectual obstacles to his taking notes.”

154 Ibid., v. 2, p. 207: “I will not deny that, looking at the windowless walls, the officials at the door, and the crowd of excited fanatics below [...] my feelings were of the trapped-rat description [...]”

155 Ibid.: “However safe a Christian might be at Meccah, nothing could preserve him from the ready knives of enraged fanatics if detected in the House. The very idea is pollution to a Moslem.”

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O ihram é a veste usada pelos muçulmanos durante o hajj e outras peregrinações, consistindo em dois pedaços de tecido branco que devem ser colocados de um modo a deixar um dos ombros descoberto. Ihram também é o estado mental e espiritual em que o peregrino deve se encontrar para poder adentrar o local sagrado. De acordo com Sardar (2014, p. XXVIII), “é um estado contínuo de oração e meditação, em harmonia com o seu entorno, respeitando o ambiente e sua vida natural, enquanto se abstém dos desejos terrenos”.

91 ator, disfarçado, escreve sobre, procura apagar o outro, aquele que faz a autêntica peregrinação para Medina e Meca, o bom muçulmano” (ibid.).

Grant escreveu que surge uma outra voz para finalizar o relato, dessa vez na forma de uma citação de um outro “irmão viajante”, o chinês Faxian (337-422 d.C.), um monge budista que viajou pela China e Índia: “„Fui exposto a perigos e escapei deles; atravessei o mar e não sucumbi às fadigas mais severas; e meu coração se comove com emoções de gratidão, pois eu pude causar algum efeito sobre os objetos que eu tive sob a minha visão”157

. Assim Burton escolheu terminar a sua narrativa pessoal, com as palavras de outro viajante.

Grant (2009, p. 72) comentou que essa citação final seria a voz do agente imperial dizendo que “„apesar de todas as tentações que passei nesse lugar que eu fui pelo seu bem [do império britânico], voltei para você, cumpri a minha missão. Perdoe as minhas pequenas rebeliões”. Mas, no final, Burton não retornou à Inglaterra, nem experimentou a fama que o sucesso do seu livro havia lhe proporcionado, pois voltou para a Índia e, logo em seguida, deu início a uma nova viagem disfarçado, dessa vez para a cidade de Harar (hoje na Etiópia). Para Lovell (1998), ele não foi à Inglaterra por algumas razões, entre as quais o fato de estar sofrendo de disenteria, o que dificultaria deslocamentos mais distantes; era provável que os termos da sua licença o impedissem de retornar para a Inglaterra; e que, pelos padrões de Burton, a sua missão não fosse vista como bem-sucedida, já que o plano original era cruzar toda a Arábia e não só fazer a peregrinação. Enquanto Brodie (1967, p. 107) especulou que a “euforia de ter penetrado Medina e Meca foi temporária, ilusória e substitutiva. Talvez [...] Meca fosse „o lugar errado‟”. Ou, então, talvez Burton estivesse em busca de um outro espaço para que Abdullah pudesse circular novamente, ostentando, dessa vez, o título de haji, comprovando que completou a peregrinação; malogradamente, seu disfarce foi revelado em Harar, e sua relação com Abdullah, possivelmente, desde então, não foi mais a mesma.

157 BURTON, R., 2014, v. 2, p. 276: “„I have been exposed to perils, and I have escaped from them; I have traversed the sea, and have not succumbed under the severest fatigues; and my heart is moved with emotions of gratitude, that I have been permitted to effect the objects I had in view.‟”

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Capítulo 2

O caminho para Meca: os significados da peregrinação

De repente, o dervixe olhou-o nos olhos. O tornear prosseguiu dentro dele. Acomode-se, disseram os olhos, fique um pouco. Somos todos convidados. Somos todos peregrinos. Seja um de nós.

Ilija Trojanow158

Chegar a Meca. Esse era o principal objetivo de Burton em Pilgrimage, pois é a culminância tanto do seu relato pessoal quanto dos muçulmanos que embarcam nessa jornada. Ainda que a peregrinação não seja o principal objeto de estudo desta dissertação, é importante refletir sobre os seus significados diante da sua relevância para a narrativa do explorador e para o mundo islâmico como um todo. Por isso, este capítulo debruça-se sobre a estadia de Burton em Meca, não abordando com o mesmo destaque o período em que passou em Medina. Para tanto, em um primeiro momento, são apresentadas as origens do hajj e os ritos que o compõem, entremeando-os à descrição da peregrinação feita pelo explorador, para, em seguida, refletir sobre o significado religioso do hajj para os muçulmanos, assim como a sua estrutura política, e, na sequência, tentar pensar sobre a sua importância para Burton e, consequentemente, para Abdullah.