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Burton, exercitando o discurso de autoridade que lhe era característico, declarou que sempre “desejou” visitar Meca durante a temporada da peregrinação, uma vez que, a seu ver, apesar de existirem várias descrições dos ritos do hajj em várias línguas, inclusive de autores europeus que realizaram a peregrinação e que são mencionados ao longo do seu relato, nenhuma delas “satisfazia” a sua curiosidade, já que “praticamente nenhuma parecia saber nada sobre o assunto”254

. Por isso, em meio a uma licença médica conseguida por ter sido acometido por uma “oftalmopatia” quando estava de serviço na Índia, parece ter dedicado todo seu “tempo e energia” para realizar tal empreitada255

. Essas passagens parecem mostrar que Burton queria “viver a experiência” de participar do hajj por si mesmo e não apenas ler sobre o tema ou ouvir histórias de outras pessoas.

Pode-se pensar que para um muçulmano (e o seguidor de qualquer fé) a “sabedoria” da tradição da communitas é adquirida não pelo “pensamento abstrato solitário, mas pela participação imediata ou vicária por meio de gêneros de performance em dramas

254 Essa declaração não é exatamente verdadeira, uma vez que o próprio Burton valeu-se de descrições de outros viajantes para compor sua obra, como, por exemplo, a descrição de Meca por parte de Burckhardt, e o desenho da planta da Grande Mesquita de autoria de Ali Bei. Inclusive, colocou três apêndices no livro com trechos das viagens de Ludovico de Varthema, Joseph Pitts e Giovanni Finati. Sobre seu relato e o de seus antecessores ver Capítulo 1.

255 BURTON, I., 1893, v. 1, p. 150: “It was always my desire to visit Meccah during the pilgrimage season; written descriptions by hearsay of its rites and ceremonies were common enough in all languages, European as well as native, but none satisfied me, because none seemed practically to know anything about the matter. So to this preparation I devoted all my time and energy.”

135 socioculturais”, como os rituais religiosos, segundo o filósofo Wilhelm Dilthey (apud TURNER, 1979, p. 76). Nesse sentido, o próprio Burton, ao querer ter uma “experiência pessoal” direta desse ritual, buscou também adquirir essa “sabedoria” ao adentrar a sociabilidade da ummah em meio ao hajj. Assim, a partir das ideias de Victor Turner (1979, p. 64), cujos estudos sobre as peregrinações cristãs podem ser transpostos para esse mesmo tipo de prática dentro do islã, o hajj, como um ritual, pode ser considerado, como “a performance de uma sequência complexa de atos simbólicos”, sendo que o ritual constitui uma “performance transformativa que revela importantes classificações, categorias e contradições de processos culturais”.

Para Narinder K. Hollands (2003, p. 57), Burton via essa peregrinação não como um exercício perigoso e exigente fisicamente, mas como um desafio e a culminância de todo seu trabalho na Índia, onde começou a se disfarçar de “oriental”. Contudo, para Godsall (2008, p. 2.725 a 2.784), Burton não poderia saber das circunstâncias futuras que o levariam à peregrinação e que essa visão foi inserida na sua biografia para dar a impressão de que

Pilgrimage era “o resultado natural de algo” para o qual “há anos ele estava se preparando”.

De qualquer forma, Burton teve que aprender a dominar os códigos exteriores da religião islâmica e das cerimônias do hajj, uma vez que se propôs a realizar a peregrinação.

Segundo o explorador, entremeando seus estudos de sindi sob o munshi Nandii, ele se aprimorou na língua árabe com o “pequeno” Shaykh Hashim, de ascendência beduína, “importado” de Bombaim, mas originário de Muscat. Sob sua supervisão, Burton começou “um estudo sistemático” das práticas da religião muçulmana, decorou “um quarto do Alcorão”, e tornou-se “proficiente nas orações”; decidiu também voltar-se para o sufismo, o “gnosticismo do islã”, que o “ergueria acima da classificação de simples muçulmano”, passando por 40 dias de jejum e outras práticas que “provaram estimular em demasia o cérebro”, chegando a se tornar “mestre sufi”. Para “acalmar os nervos”, segundo ele próprio, estudava a religião e os escritos do sikhismo e, como já havia sido introduzido no hinduísmo, sua “experiência em religiões orientais tornou-se fenomenal”256

.

256 BURTON, I., 1893, v. 1, p. 150: “Under him also I began the systematic study of practical Moslem divinity, learned about a quarter of the Koran by heart, and became a proficient at prayer. [...] So to this preparation I devoted all my time and energy; not forgetting a sympathetic study of Sufism, the Gnosticism of Al-Islam, which would raise me high above the rank of a mere Moslem. I conscientiously went through the chill, or quarantine of fasting and other exercises, which, by-the-by, proved rather over-exciting to the brain. At times, when overstrung, I relieved my nerves with a course of Sikh religion and literature [...]. As I had already been duly invested by a strict Hindu with ihefaneo, or „Brahminical thread‟, my experience of Eastern faiths became phenomenal, and I became a Master-Sufi.”

136 Em Pilgrimage, Burton afirmou que foi iniciado na ordem sufi qadiriyah por um “reverendo, cujo nome não revelarei”, sob a alcunha de Bismillah-Shah (que significa “rei em nome de Allah”). “Após um período de provação, ele graciosamente elevou-me à orgulhosa posição de Murshid ou Mestre nessa prática mística”, podendo a partir de então admitir aprendizes na ordem; assim, estava “suficientemente familiarizado com os princípios e práticas desses maçons orientais”257

. Para provar que havia se tornado um murshid, publicou em apêndice de Pilgrimage uma versão traduzida para o inglês do seu “diploma” – em nota, com o intuito de mostrar sua superioridade no conhecimento das religiões “orientais”, explicou que publicava essa tradução já que a sua forma deveria ser uma “novidade para muitos orientalistas europeus”258.

A natureza desse documento foi questionada por John Spencer Trimingham (apud GODSALL, 2008, p 2.725 a 2.784), especialista em islã na África, que afirmou que o “diploma” era, na verdade, uma ijiza259, ou uma “licença”, que permitia que Burton pudesse

proclamar “com autoridade” a Unicidade de Deus (“Não há deus além de Deus”) 165 vezes após cada farida (a prece ritual obrigatória) e em “qualquer outra ocasião de acordo com sua habilidade”260

. De qualquer forma, Burton parece realmente ter se iniciado no sufismo enquanto esteve em Baroda, no Gujarat indiano, e, a partir daí, passou a estudá-lo com afinco. O sufismo, conforme apontado por vários autores (ASLAN, 2006; BERKEY, 2003; PINTO, 2014; HOURANI, 2006), é de difícil definição diante da sua diversidade. Até mesmo a origem do termo é um tanto obscura: “sufismo” teria sido derivado de tasawwuf, que não tem um significado específico, referindo-se provavelmente às túnicas de lã (suf, em árabe) que os primeiro sufis vestiam como um símbolo da sua pobreza e seu desligamento do mundo – para Hourani (2006, p. 107), seria o equivalente árabe de “misticismo” ainda que ligado ao sunismo, enquanto para Aslan (2006, p. 198), seria a tradução literal de “o estado de ser um sufi”. Como um termo descritivo, “sufi” é “praticamente intercambiável com as palavras

257 Burton, no “Prefácio à Terceira Edição” (2014, v. 1, p. XXIII), também usou o termo “maçons orientais” para se referir aos dervixes. BURTON, R., 2014, v. 1, p. 14: “A reverend man, whose name I do not care to quote, some time ago initiated me into his order, the Kadiriyah, under the high-sounding name of Bismillah-Shah – „King-in-the-name-of-Allah‟ [...] – and, after a due period of probation, he graciously elevated me to the proud position of Murshid, or Master in the mystic craft. I was therefore sufficiently well acquainted with the tenets and practices of these Oriental Freemasons.”

258 Ibid., p. 14: “As the form of the diploma conferred upon this occasion may new to many European Orientalists, I have translated it in Appendix I.”

259

Em Hourani (2006, p. 267), esse termo aparece com a grafia ijaza, significando um atestado de transmissão autêntica de um livro que era ditado a escribas por seu autor ou um sábio famoso, diante da difusão da fabricação e do uso do papel no império islâmico a partir no século IX.

260

Realmente, a leitura desse documento presente no Apêndice III da edição comemorativa de 1893 diz exatamente isso, e não afirma que o seu detentor poderia receber aprendizes.

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darvish e faqir, que significam „mendicante‟ ou „pobre‟” – não só no sentido de carência

material, mas também no de ser alguém “digno de pena”.

Como movimento religioso, o sufismo é caracterizado por uma mistura de tendências filosóficas e religiosas divergentes, contendo princípios do monasticismo cristão e do ascetismo hindu, com pensamento budista e tântrico, gnosticismo islâmico e neoplatonismo, além de alguns elementos do xiismo, do maniqueísmo e do xamanismo da Ásia central (ibid.). Mesmo assim, o sufismo extraiu sua inspiração do Alcorão: um fiel meditando sobre o significado do Livro “pode ter sido invadido por um senso de esmagadora transcendência de Deus e da total dependência de todas as criaturas para com Ele” (HOURANI, 2006, p. 107).

Para Aslan (2006), o sufismo foi um movimento de reação ao islã imperial das dinastias muçulmanas e ao formalismo rígido da ortodoxia islâmica dos ulemás, sendo empregado o ta‟wil261 para desvelar o significado escondido do Alcorão, concentrando suas atividades espirituais na devoção ao Profeta e desenvolvendo cultos de personalidade em torno de personagens santos – da mesma forma que o xiismo. Mas, ao contrário dos xiitas, os seguidores dos sufismo dedicam-se ao esoterismo e ao devocionalismo, caminhando para o ascetismo e o desligamento dos bens materiais com o intuito de levar uma vida baseada na simplicidade.

Algumas linhas do sufismo, ainda segundo Aslan (ibid.), também não aceitavam os preceitos da lei islâmica (a sharia), porque, na sua visão, o verdadeiro conhecimento de Deus só poderia ser atingido pela percepção intuitiva da realidade, e não pela razão humana. Essa posição não agradou às autoridades religiosas islâmicas. Ao mesmo tempo, o fato de os sufis pregarem o distanciamento da comunidade muçulmana dava a impressão de que poderiam formar a sua própria ummah, em que os seus santos substituiriam os ulemás. Estes também se incomodavam com a influência de outras religiões no sufismo, já que o poder social e a identidade intelectual desse grupo originavam-se a partir de uma determinada visão da revelação islâmica e de suas tradições (BERKEY, 2003). Não por acaso, o sufismo era visto com desconfiança por alguns grupos muçulmanos, inclusive sendo considerado em

261 Segundo Aslan (2006, p. 161), existem dois modos de se interpretar o Alcorão. O primeiro é o tafsir, preocupado em elucidar o significado literal do texto; e o ta‟wil, que busca o significado escondido e esotérico do Alcorão. “Tafsir responde as perguntas de contexto e cronologia, fornecendo um molde facilmente compreensível para os muçulmanos levarem uma vida correta. O ta‟wil volta-se para a mensagem escondida no texto que, devido à sua natureza mística, é compreensível para alguns poucos. Ainda que as abordagens de ambos sejam consideradas igualmente válidas, a tensão entre os dois faz parte das consequências inevitáveis de tentar interpretar uma escritura eterna e sem autoria que é, apesar de tudo, calcada firmemente em um contexto histórico específico.”

138 determinados momentos históricos como uma heresia e apostasia, tornando-se, assim, alvo de perseguição religiosa262.

Devido a esse caráter mais aberto, o sufismo absorveu diversas formas de crenças e costumes locais, e tornou-se bastante popular em áreas do império islâmico que não eram dominadas pela maioria árabe. Na Índia, “o sufismo disseminou-se como fogo uma vez que sincretizava de maneira entusiástica valores anticasta muçulmanos com práticas tradicionais indianas como o controle da respiração, a postura do corpo quando sentado, e a meditação” (ASLAN, 2006, p. 202). Na Ásia central, sufis persas desenvolveram um novo cânone escrito caracterizado por poesias, canções e literatura redigidas em língua vernácula, que foi facilmente difundida pelo império.

No que tange aos seus rituais e às suas práticas, os sufis procuram a aniquilação do ego e, mesmo que esse seja o objetivo de vários movimentos monásticos, há diferenças entre o monasticismo e o sufismo. Primeiro, o islã é marcado por um antimonasticismo que permeia todos os aspectos da vida do muçulmano, rejeitando todo individualismo radical e recluso, uma vez que é uma religião comunal, baseada na ideia da ummah (ibid.). Conforme Hourani (2006, p. 108), a história do islã foi marcada por dois processos estreitamente interligados: “um movimento de religiosidade, de prece visando a pureza de intenção e renúncia a motivos egoístas e prazeres mundanos, e um outro de meditação sobre o sentido do Alcorão”, ambos aconteceram com mais intensidade na Síria e no Iraque. Esses convertidos haviam trazido para o islã práticas herdadas de um mundo que ainda era mais cristão e judeu que muçulmano. Mesmo que Muhammad tenha condenado o monasticismo,

a influência dos monges cristãos parece ter sido generalizada: sua ideia de um mundo secreto de virtude, além do da obediência à lei, e a crença de que o abandono do mundo, a mortificação da carne e a repetição do nome de Deus na prece poderiam, com a ajuda de Deus, purificar o coração e libertá- lo de todas as preocupações mundanas, passando a um conhecimento superior intuitivo de Deus. (Ibid.)

O sufismo opõe-se ao celibato, ao contrário de várias outras tradições místicas, pois seria contra o comando divino de “crescei e multiplai-vos”. Mesmo que tenha existido alguns sufis que escolheram o celibato (como Rabia de Basra, que recusou todos os avanços de seus pretendentes para se entregar completamente a Deus), a prática nunca foi realmente difundida

262 Ibn „Abd al-Wahhab, considerado o fundador do wahhabismo em meados do século XVIII, foi bastante intolerante com práticas associadas ao sufismo, pois considerava os sufis politeístas por aspirarem à união mística com o Criador (ROGAN, 2009).

139 no sufismo. Mas talvez a principal diferença seja que, enquanto muitos movimentos místicos tenham mantido a ligação à sua matriz religiosa, o sufismo trata o islã como uma “casca que deve ser retirada para se ter a experiência do contato direto com Deus”, conforme a explicação de Aslan (2006, p. 200): “a religião formal do islã é o prelúdio do sufismo, mais do que o seu motivo proeminente. O islã, como todas as religiões, pode apenas dizer que

aponta a humanidade para Deus, enquanto que o sufismo procura lançar a humanidade na

direção de Deus.”

Apesar disso, Aslan (ibid., p. 201) observou que isso não significa que o sufismo rejeite o islã, pelo contrário. Os sufis são muçulmanos, eles rezam como muçulmanos, e usam símbolos da religião e seguem crenças e rituais islâmicos – embora alguns grupos considerem toda ortodoxia (inclusive os cinco pilares do islã, incluindo o hajj) “inadequada” para atingir o verdadeiro conhecimento de Deus. Ainda que tenha declarado que a espiritualidade sufi seja “de fato, inseparável do sunismo e constitui seu coração”, Abdur Rahman Ibrahim Doi (1990, p. 117) lamentou que “infelizmente alguns discípulos sufis mostraram, algumas vezes, desconsideração para com as formas estabelecidas de expressão da verdadeira fé, através da realização de salat (prece), sawm (jejum) ou hajj (peregrinação)” e, por isso, “mereceram a ira e a inimizade da comunidade sunita ortodoxa, mas a grande maioria deles é de sunitas ortodoxos.”

Portanto, a ortodoxia pode, inclusive, fazer parte das etapas do caminho que o fiel deve seguir para atingir o objetivo final da completa aniquilação do ego para se unir ao Divino, e isso só é alcançado pela “virtude suprema” que é o “amor” (ASLAN, 2006, p. 202). Segundo Hourani (2006, p. 108), os primeiros místicos, já no século VII, acreditavam que

o senso de distância e proximidade de Deus é expresso em linguagem de amor: Deus é o único objeto adequado de amor humano, a ser amado por Si só; a vida do verdadeiro fiel deve ser um caminho que leve ao conhecimento d‟Ele, e à medida que o homem se aproximar de Deus, Ele se aproximará do homem, e se tornará “sua visão, sua audição, sua mão e sua língua”.

No século VIII, a investigação do caminho para se aproximar de Deus e a especulação sobre o fim desse trajeto foram mais desenvolvidas com o surgimento do

ritual distinto da repetição coletiva do nome de Deus (dhikr), acompanhado de vários movimentos do corpo, exercícios respiratórios ou música, não como coisas que induziriam automaticamente ao êxtase de ver a face de Deus, mas como meios de libertar a alma das distrações do mundo. (Ibid., p. 109)

140 Os conhecimentos dos primeiros mestres sufis foram conservados oralmente, e depois na forma escrita, por aqueles que tentavam aprender o caminho. Assim, surgiu uma “linguagem coletiva”, segundo Hourani (ibid., p. 110), da natureza da preparação e da experiência mística do sufismo, além de uma identidade comum entre os sufis. Foi mais ou menos no século IX que o caminho para o conhecimento de Deus foi sistematizado. No fim desse trajeto, o fiel “verdadeiro e sincero” poderia ver-se diante de Deus de forma que os atributos de Deus substituíssem os seus, e sua existência individual desapareceria, mas apenas por um momento. Em seguida, ele voltaria à sua própria existência e ao mundo, mas trazendo consigo a lembrança daquele momento, da proximidade de Deus, e também de Sua transcendência.

“A sensação de ser invadido pela presença de Deus, mesmo que só por um momento”, era “inebriante”, e alguns sufis, de acordo com Hourani (ibid.), tentaram “expressar o inexprimível em linguagem exaltada e colorida, que podia provocar oposição”. O sufi persa Abu Yazid al-Bustani (m.c. 875), ao tentar descrever o momento do êxtase, quando se é despido de sua existência para ser invadido por Deus, compreendeu que “nesta vida isso é uma ilusão, que a vida humana na melhor das hipóteses é preenchida pela alternância da presença e ausência de Deus” (apud HOURANI, 2006, p. 110). O pregador sufi Husayn ibn Mansur al-Hallaj (c. 857-922) foi executado em Bagdá por fazer declarações tidas como blasfemas, como “Eu sou a Verdade”, que significaria “Eu sou Deus”. Ele também enfureceu as autoridades religiosas ao afirmar que o hajj era uma peregrinação interna que a “pessoa de coração puro poderia realizar em qualquer lugar” (apud ASLAN, 2006, p. 205). A declaração de que a “verdadeira peregrinação não era a Meca, mas a jornada espiritual que o místico realiza em seu próprio quarto” poderia ser interpretada como querendo dizer que o “cumprimento literal das obrigações religiosas não era importante” (HOURANI, 2006, p. 111).

Ainda que não seja possível saber precisamente quais foram os significados da peregrinação para Burton, pois ele não deixou nada explícito em seus escritos sobre o assunto, algumas reflexões podem ser elaboradas a partir da ideia da peregrinação interna do sufismo. Para Brodie (1967, p. 75), muitos biógrafos se equivocaram ao escrever que Burton “preferia o islã ao cristianismo”, uma vez que era “igualmente duro com o que acreditava ser o lado supersticioso e banal das duas religiões”. Em Pilgrimage, Burton não deixou de criticar as duas crenças. Ao escrever sobre os tipos de árvores de Medina, Burton narrou a lenda de uma

141 palmeira que, diante de Muhammad, curvou-se perante ele quando este foi comer um de seus frutos. Chamada de sayhani (“aquela que chora”, em árabe), a árvore, de acordo com o explorador, ganhou esse nome porque “quando o fundador do islã, segurando a mão de Ali, passou por debaixo dela, ela caiu no choro: „Este é Muhammad, Príncipe dos Profetas, e este é Ali, o Príncipe dos Piedosos, e o Progenitor dos Imãs Imaculados”‟263

.

Em tom irônico, Burton comentou que, por causa disso, “claro” que os descendentes de “vegetal tão inteligente” possuíam um posto elevado no “reino das palmeiras”, e os “vulgares tinham o hábito de comer da Sayhani e de jogar pedras no haram”264

. Segue-se uma nota em que explicou que um crucifixo havia supostamente falado com São Tomás de Aquino, em 1272, tendo por intuito mostrar um paralelo entre as “superstições” de caráter religioso tanto do cristianismo quanto do islã, salientando o que tinham em comum. Afinal, “superstições não têm idade nem país”, arrematou265

. Nesse caso vê-se que Burton não poupava nenhuma das duas religiões.

Ainda para Brodie (1967, p. 75), mesmo que o explorador tenha se voltado para o sufismo, “ele nunca se perdeu em seu misticismo”. Pelo contrário, ao assistir com “uma vívida curiosidade” a um grupo de sufis se autoproclamarem Deus – possivelmente seguindo a posição de al-Hallaj –, concluiu que havia uma “afinidade entre misticismo extremo e insanidade”. Lovell (1998, p. 1.768 a 1.808) também seguiu essa interpretação: Burton teria “abraçado” o sufismo como parte da sua “pesquisa” sobre religiões, e deleitava-se “nos rituais complexos que abrangiam essa fraternidade de companheiros crentes”. Mas era mais “um meio para se atingir um fim do que uma declaração de fé”. Tanto que Burton via o sufismo como um “parente oriental” da maçonaria, organização esta da qual ele e grande parte de seus colegas oficiais britânicos fizeram parte – no prefácio à terceira edição de Pilgrimage, Burton