• Nenhum resultado encontrado

Capítulo I – A Hipótese e os problemas

2. Narrativas breves de Saramago: questionar, questionar sempre

[…] Que coisas me foram prometidas e negadas, ou dadas e perdidas? Que vem fazer aqui este belo demónio azul, esta vertigem, esta tentação de renúncia, ou apenas a rápida consciência de uma dimensão poética que o mundo não aguenta, ou não aguento eu vivendo nele? […]45.

José Saramago

Estudamos Saramago e percebemos essa imensa interrogação que é o seu texto, uma longa interrogação ao mundo e ao homem.

A vertigem, a renúncia, a arte, ou um autor que, perante a inevitabilidade de interrogar, não pode deixar de sentir o abismal de tal estado e a imperiosidade do não que lhe exige a interrogação, o virar-se para com um estado poético, o único que lhe dá a morada e abre a porta dessa busca incessante pelo conhecimento. A interrogação sobre o real e a resposta sob a forma poética. O mesmo será afirmar a possibilidade da interrupção. Na citação acima, é como se Saramago se surpreendesse no confronto com a sua própria linguagem, com a sua própria escrita, como se ela, de algum modo, lhe escapasse, ou nunca lhe pertencesse.

Entre o prometido e o negado, o dado e o perdido, o autor parece anunciar um trabalho sobre o tempo e sobre a (sua) experiência do tempo. “[…] Le temps se cherche et s’éprouve dans la dignité de la question […].”46, diz-nos Blanchot. Tempo e

interrogação, o tempo no mais fundo de cada questão, o tempo que, para Saramago, “[…] não é sucessão diacrónica, em que um acontecimento vem atrás do outro. O que acontece projecta-se numa imensa tela e tudo fica ao lado de tudo. Como se o homem de Cromagnon estivesse colocado nessa tela ao lado do David de Miguel Ângelo […].”47.

Nesta imensa tela que Saramago pretende apresentar-nos, quantas interrogações cabem? Todas as que lhe foi permitido fazer ao longo do tempo que foi o seu. Mas a tela, como Saramago há-de alertar no Manual de Pintura e Caligrafia, não aceita uma pincelada a mais depois de concluído o retrato. A escrita sim, abre possibilidades infinitas na finitude que é o tempo de uma vida.

45 José Saramago, Deste Mundo e do Outro, pp. 44-45. 46 Maurice Blanchot, L’Entretien Infini, op.cit., p. 12. 47 José Saramago, A Estátua e a Pedra, p. 47.

Falamos de interrogação, de busca ininterrupta de respostas; falamos pois de diálogo, o que pressupõe pausa, ou seja, interrupção, o entre frases. Blanchot vê na pausa um enigma da linguagem, aquilo que permite constituir a palavra como diálogo (entretien) e mesmo como palavra, se pensarmos, como ele nos previne, que se encontrarmos alguém que fale ininterruptamente, teremos tendência a mandá-lo internar. A palavra solitária evoca, para Blanchot, os terríveis monólogos dos inúmeros ditadores da História, impondo aos outros a sua palavra “superior e suprema”, violenta. Ensina-nos então Blanchot que, mesmo quando o discurso é coerente, ele deve fragmentar-se, mudando/alternando de protagonista. De um para outro, o discurso interrompe-se, a interrupção permitindo a troca, diz Blanchot48 e, acrescentamos nós, instituindo a democracia. A pausa, o silêncio, a interrupção do discurso, não serão senão a palavra diferida, a que virá depois, o devir do texto.

Interessa-nos perceber de que modo, ou modos, nas crónicas de Saramago, se manifesta esta pausa, este silêncio, este entre que é condição privilegiada para a continuidade do discurso, para a entrada do outro. Não fora assim e correria Saramago o perigo de se tornar num narrador-ditador, já que a crónica é sempre um discurso na primeira pessoa. Recorra-se a um exemplo do livro A Bagagem do Viajante: na crónica

Não sabia que era preciso, a “história” apenas tem início após dois parágrafos iniciais,

48 Maurice Blanchot, op. cit., pp. 106-107. Blanchot, cuja obra é, assim o entendemos, fundamental à

compreensão do problema da interrupção em literatura, intitula um capítulo da sua obra L’Entretien Infini, de «L’interruption: Comme sur une surface de Riemann». E vale a pena determo-nos um pouco mais na sua reflexão: «La définition, je veux dire la description la plus simple de la conversation la plus simple pourrait être la suivante: quand deux hommes parlent ensemble, ils ne parlent pas ensemble, mais tour à tour; l’un dit qualquer chose, puis s’arrête, l’autre autre chose (ou la même chose), puis s’arrête. Le discours cohérent qu’ils portent est composé de séquences qui, lorqu’elles changent de partenaire, s’interrompent, même si elles s’ajustent pour se correspondre. Le fait que la parole a besoin de passer de l’un à l’autre, soit pour se confirmer, soit pour se contredire ou se développer, montre la nécessité de líntervalle. Le pouvoir de parler s’interrompt, et cette interruption joue un rôle qui semble subalterne, celui, précisément, d’une alternance subordonnée; rôle cependant si énigmatique qu’il peut s’interpréter comme portant l’énigme même du langage: pause entre les phases, pause d’un interlocuteur à l’autre et pause attentive, celle de l’entente qui double la puissance de locution.

Je me demande si l’on a suffisament réfléchi sur les diverses significations de cette pause, laquelle cependant permet seule de constituer la parole comme entretien et même comme parole. Quelqu’un qui parle sans arrêt, on finit par l’enfermer. (Rappelons-nous les terribles monologues de Hitler, et tout chef d’État, s’il jouit d’être seul à parler et, jouissant da sa haute parole solitaire, límpose aux autres, sans gêne, comme une parole supérieure et suprême, participe à la même violence du dictare, la répétition du monologue impérieux.) Donnons-nous la conversation la plus suivie, la mieux soustraite au caprice aléatoire; même si le discours est cohérent, toujours il doit se fragmenter en changeant de protagoniste; de l’un à l’autre, il s’interrompt: l’interruption permet l’échange. S’interrompre pour s’entendre, s’entendre pour parler. […] Et même quand le mutisme est un refus [algo de semelhante acontece na crónica Não sabia que era preciso], il est rarement abrupt, il prend part au discours, il l’enfléchit par ses nuances, il coopère à l’espoir ou au désespoir d’une concorde finale. Il n’est encore qu’une parole diférée, ou bien il porte la signification d’une différence obstinément maintenue.».

introdutórios, após os quais, é lançada uma frase como se o autor, a partir daí, nos oferecesse a crónica. Mas não é assim que acontece. A frase ali fica, suspensa, “pausada”, para logo se abrir “um parênteses” que é todo um novo parágrafo, “parêntese” provocador, mudo grito anunciador do que está por vir, intervalo, suspensão, e modo de escancarar a entrada do Outro.

Ao contrário do que afirmam os ingénuos (todos o somos uma vez por outra) não basta dizer a verdade […]

Esta introdução […] É apenas um modo […] de esquivar acusações, pois, desde já o anuncio, a verdade que hoje trago não é crível. Ora vejamos se isto é história para acreditar.

O caso passa-se num sanatório. Abro um parênteses: […] Mas vamos à história […].49

Nos cinco parágrafos seguintes, o autor consegue condensar uma forte representação da condição humana, daquilo que, não parecendo crível o pode ser, ou seja, o jogo ficção-real. Um passo pequeno, assim nos avisa (eis o diálogo na crónica) nesta história, nos separa do animal, ou melhor, da “degradação”. Por ignorância ou por desleixo. Tão só. Se atentarmos ao facto da crónica ser composta por oito parágrafos, três dos quais classificados pelo autor de “parênteses”, é possível perceber a estética e a complexidade deste fragmento, desta história de um pormenor, que desvela o enigma do ser e onde encontramos já múltiplas faces da interrupção, aqui introduzida por um suposto “parênteses” (dizemos suposto porque o autor o usa em sentido figurado, imagético se quisermos), que traz a pausa, a descontinuidade, a interrupção necessária à continuidade, o entre que prepara para o surpreendente, o novo, o inimaginável. Prepara também a entrada do outro, do sem-parte, do estrangeiro à normalidade e o confronto com a possibilidade que o outro abre: a do sujeito se (pre)ver a si mesmo na situação (o acontecimento, a experiência) que lhe é testemunhada. O estranhamento que a situação provoca em cada um de nós será disso prova: o exemplo dado poderá ser, num primeiro momento, lido como impossível de acontecer a qualquer um que se considere “informado”; mas tão logo nos

será possível imaginar outras situações nas quais diríamos com toda a inocência, como diz aquele homem na crónica: “não sabia que era preciso”.

O poder da interrupção está aqui: ela provoca, convoca uma acção, o pensamento, a busca da compreensão de si e do outro: “S’interrompre pour s’entendre. S’entendre pour parler. Finalement, ne parlant que pour s’interrompre et rendre possible l’impossible interruption.”50 E se, no romance, o autor se vê forçado a imprimir continuidade à trama

que desenvolve, é na narrativa breve, no fragmento que é a crónica, que a interrupção joga toda a sua força, impulsiona a acção: aqui, o acontecimento é disparado numas poucas linhas e ganha estatuto de evento. Aqui, a interrupção é continuidade, ou melhor, a ficção da continuidade revela-se algo não plausível, porque na crónica se dão os saltos do pensamento. Por isso, um dos traços fortes que assinala a interrupção no espaço da crónica, é-nos dado pela associação de ideias. Em Saramago encontramos tal traço com particular frequência. É comum o autor iniciar um texto com uma reflexão qualquer que, a determinado instante, se interrompe e gera um outro texto que configura a crónica e que, por seu turno, o leva a uma outra reflexão, a um outro tempo, a uma outra história, a uma outra reflexão, num jogo de interrupções que são, afinal, um jogo de continuidades e intermitências e desembocam num comum. É assim, por exemplo, com “O fala-só”51:

Hoje, apesar do céu descoberto e do sol quente, não me sinto para festas. Há dias assim. E um homem não tem obrigação nenhuma de mostrar aqui um sorriso de boas-vindas quando sabe que ninguém está para chegar. Mais vale aceitar (ou assumir, como é inteligente dizer-se agora) as boas e as más horas do espírito, porque atrás de umas vêm outras, e nada está seguro, etc., etc. Desta fatalidade poderia até tirar matéria para a crónica, se mesmo agora não me tivesse passado na lembrança um homem mal enroupado que eu conheci, tonto de seu juízo, o qual homem levava o triste dia a andar para baixo e para cima na rua principal lá da aldeia […].

[…] O que me impressionava então e hoje recordo era aquela cisma que o Tonho tinha de falar durante todo o santo dia, ora em altas vozes […] ora em estranhos murmúrios […] ora quase suspirando […] o Tonho era o Fala-Só […].

[…] Passaram prodigamente os anos […].

[…] Depois de eu ter crescido, soube que também aos poetas davam o nome de fala- só, porque se achava que a poesia era uma forma de loucura […].

[…] Num mundo assim organizado todos tinham o seu lugar: loucos, poetas e sãos de espírito […]. Ninguém se misturava. Mas decerto não era assim […]. Um delgado fio é a fronteira, e parte-se, e gasta-se, e é logo outro mundo.

Quero eu dizer na minha que estas crónicas são também os dizeres de um fala-só. Que esta continuada comunicação tem qualquer coisa de insensato, porque é uma voz cega

50 Maurice Blanchot, op. cit., p. 112.

lançada para um espaço imenso onde outras vozes monologam, e tudo é abafado por um silêncio espesso e mole que nos rodeia e faz de cada um de nós uma ilha de angústia. E isto é tão verdade, que o leitor vai interromper aqui mesmo a leitura, baixa o livro, levanta os olhos vagos e profere as palavras da sua dor ou da sua alegria, di- las em voz alta, a ver se o mundo o ouve […].

[…] De modo que fala-sós somos todos: os loucos, que começaram, os poetas […] e os outros, todos os outros, por causa desta comum solidão que nenhuma palavra é capaz de remediar e que tantas vezes agrava.

Repare-se como, logo no primeiro parágrafo, um “mesmo agora” interrompe o presente e transporta o autor para um passado pessoal, que por sua vez se interrompe para abrir lugar a um passado colectivo – “Num mundo assim” – e que, por fim, o traz de volta ao espaço-crónica, esse espaço ilusório de uma “continuada comunicação”, o espaço de um “fala-só” portanto, de “uma voz cega” que é “uma ilha de angústia”, como o é cada homem, são, louco, poeta, “falas-sós somos todos”, condenados a uma comum e ininterrupta solidão, que a palavra interrompe para criar a ilusão de estado – o real? – ou para ficcionar o dia.

A relação, ou melhor, a associação de ideias, será, assim, uma das marcas mais profundas da interrupção, aquela que possibilita o resto, o excesso, o outro e a criação.