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Nascido em Maceió em 1901, Félix Lima Júnior foi membro do IHGAL, da Comissão

Alagoana de Folclore, da Associação Alagoana de Imprensa e de outras instituições literárias e culturais. Contador e historiador, publicou mais de 10 títulos que trazem a cultura e a história de Alagoas como tema.

Este segundo negativo, obtido no mesmo dia e lugar que o primeiro, nos mostra também Lavenère vestido de forma muito à vontade. Talvez, esses dois objetos tenham sido os primeiros auto-retratos que ele fizera num ambiente mais íntimo, testando as possibilidades de explorar esse modo de captura. Ao primeiro olhar, nada parece dizer do sujeito letrado que sabemos que ele era, pois ele aparece como que desnudado de todo e qualquer aparato que pressuponha algo nesse sentido. No entanto, basta se demorar mais um pouco para ler algo diferente disso nas entrelinhas de seus gestos.

Nesta imagem ele ainda me olha com aquele ar “zombeteiro” do negativo anterior, e com o braço apoiado na cadeira, ele segura um cachimbo. O desenho do queixo e de toda parte do rosto que fica próxima à boca junto com a cabeça levemente inclinada para cima, indica um possível sopro, e também chega a mim como uma pose que remete a um quê de superioridade.

Há uma faísca de inquietude que me atinge ao estar diante desta imagem. Seriam os olhos brancos, apontados meio para longe, para cima, sem um ponto fixo de atenção? Olho um pouco mais para a foto e, reparando bem, percebo que é o próprio gesto de segurar o cachimbo o que me incomoda. Parece que Lavenère não o está fazendo de maneira à vontade... Estaria ele atuando? Porque, por mais que ele estivesse, nas duas imagens, na primeira ele consegue me transmitir certa espontaneidade, o que não acontece com esta. Sua pose me parece dura, rígida demais. Os dedos estão perfeitamente esticados, cada um segurando um pedaço da haste do cachimbo, e ainda assim, consegue-se ver todo o objeto.

Ele aparece nesta fotografia com a mesma roupa da primeira. Agora, isso me atinge de forma muito mais direta, porque é como um paradoxo para os dias atuais. Ainda que ele se mostre com a camisa amarrotada e desabotoada, com a barba por fazer, deixando a fumaça tomar conta do ambiente provavelmente fechado em que se encontra sentado olhando para a lente da câmera, vejo que o ato de fumar cachimbo me leva a pensar que Lavenère circulava entre as figuras importantes e de classe alta da cidade. Isso porque ocorre uma adaptação de um momento de ócio, prazer e descontração em ações de destreza e atenção quando se fuma cachimbo.

O ato em si é difícil e requer mais conhecimento do que fumar charuto ou cigarro. É necessario encher o fornilho, acender e manter um ritmo para que ele permaneça aceso, limpar as cinzas que formam no topo, enfim, existe todo um aparato envolvido no fumar cachimbo que o caracteriza como um ritual, a se realizar quando não se faz mais nada. É preciso dedicar um tempo só para isso. Daí o fato de ser, mais comumente, um costume de pessoas que poderiam despender seu tempo para se dedicar a esse hábito, considerado por muitos praticantes quase que artístico.

A postura de Lavenère é muito reta. Pernas cruzadas, mão e braços apoiados, fronte em direção ao alto... É como se a carcaça tentasse revestir um intelectual em seus gestos. Teria Lavenère, nesse momento da vida, sentido a necessidade de se mostrar como uma figura desse tipo? Talvez esta foto tenha sido feita na intenção de polemizar sua própria imagem, pois, ao mesmo tempo em que ele era um homem sério, intelectual e estudioso de várias áreas do conhecimento como está refletido em seus textos, sua escrita era simples, fluida.

Cercado de estantes e móveis cheios de livros, canetas e jornais, Lavenère posa para a foto. Esta parece engajada em construir a imagem de um homem estudioso e dedicado à leitura e à escrita. O cenário claro ao fundo mostra um espelho que parece duplicar a quantidade de estantes e livros na sala. A imagem chama meu olhar para fixar-se na sua feição compenetrada diante da escrivaninha, dando destaque às sombrancelhas grossas e brancas, assim como ao bigode. Mas o contraste com a pele do rosto e as roupas escuras, junto com os papéis dispostos sobre a mesa, são o que mais chamam atenção para o centro da imagem. Por Lavenère estar empunhando uma espécie de caneta, a fotografia nos dá a entender que ele está fazendo algo importante, escrevendo uma matéria, por exemplo. Ou estaria ele cumprindo seu dever extraclasse de professor corrigindo provas ou preparando uma aula? Ou estaria escrevendo uma carta? Ou ainda, construindo um artigo sobre algum fato recém acontecido ou sobre um aspecto novo de Maceió? Será que no momento do clique da máquina ele estava estudando uma nova língua? Ou estaria como um escritor pleno no desenvolver de seus versos que viriam a conformar um livro? A fotografia parece-me ter sido toda arquitetada para parecer despretenciosa. No entanto possui um teor mais sério, como se quisesse mostrar uma face produtiva dele no cotidiano. Seria ela um auto-retrato? Ou é possível ter sido outro o fotógrafo de Lavenère?

Os modelos de câmeras usados nas primeiras décadas do século XX ainda eram os de grande formato, nos quais o botão de disparo é conectado à lente através de um cordão, uma espécie de fio que conduz a mão do fotógrafo ao clique enquanto ele ajusta o olhar por trás da lente (como ilustrado na nota de rodapé número 11). Assim, ele poderia ter se posicionado em frente à câmera já ajustada e apertado o botão, ao mesmo tempo em que posava para a foto. Por conta deste fato, portanto, é possível que esta foto que retrata Lavenère, assim como as anteriores, seja um auto-retrato.

No entanto, a profundidade da imagem pressupõe uma distância considerável entre a câmera e o fotografado. Além disso, a escrivaninha se coloca como um obstáculo que impediria a manobra, a menos que o botão de sua câmera fosse conectado à lente por um cordão de comprimento muito superior ao normal, passado por baixo da escrivaninha até chegar à mão dele para não ser percebido. Teria sido isso possível? Talvez. Porém, as duas mãos de Lavenère me parecem estar ocupadas nesta imagem. Portanto, é mais provável que uma outra pessoa o tenha fotografado.

Para além das possibilidades de captura da imagem, o que não consigo deixar de aferir é que esta foto foi pensada para representar um sujeito comprometido com seu trabalho. Um homem sério, que usa óculos e escreve com a mão esquerda. Bem diferente daquele da primeira foto, que aparece espontâneo diante da lente da câmera, apontando para ela e olhando para nós, ou olhando para a câmera e apontando para nós. Ele poderia, de fato, estar desenvolvendo qualquer uma das atividades mencionadas, pois foi uma figura atuante, cheia de atribuições, conforme posso constatar a partir dos seus próprios escritos, junto com alguns trechos de textos de outros autores da época, a exemplo de Moacir Sant’Anna, Félix Lima Júnior e Pedro Nolasco Maciel. “Um homem das sete artes”, conforme o descreveu Guiomar Castro em seu discurso de posse da cadeira do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas que havia sido ocupada por ele, de 1885 até 1966. O cenário desta foto pode ter sido, inclusive, o espaço do próprio IHGAL, que possui ainda hoje, estantes deste modelo, tomando conta da maioria das paredes, cheias de escritos que contam as histórias da cidade. Mas não só por isso. É que o professor Lavenère, como era conhecido graças a um dos seus primeiros ofícios, foi também Secretário Perpétuo16 dessa instituição, sucedendo João Craveiro Costa,17 de 1932 até 1944. Por isso, talvez essa fotografia pode ter sido feita para uma publicação do IHGAL que mostrasse seus membros em uma posição formal de trabalho.