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2. LITERATURA E A HISTÓRIA DO BRASIL

2.3 NATIVISMO COMO EMBRIÃO DA IMPULSÃO TEMÁTICA PARA UMA

Ainda outro argumento a favor da literariedade da História do Brasil diz respeito a um consenso entre alguns críticos da literatura brasileira do século XX ao que intitulam de nativismo, ou seja, o impulso embrionário dos escritos produzidos nos séculos XVI e XVII no Brasil.

O nativismo pode ser considerado como um “espírito de nacionalidade”, originário, enquanto temática e enquanto atitude, nos escritores do Brasil-Colônia. Este espírito viria a fomentar, futuramente, o desejo dos críticos e autores de literatura brasileira a implementar um projeto literário caracteristicamente nacional, autônomo da metrópole portuguesa. Em última instância, o nativismo traduz-se no amor ao Brasil e impulso a um projeto de maior independência desta colônia, que perpassaria, enquanto sentimento e desejo, ao campo literário. Este reflexo de amor e valorização do Brasil, materializa-se no sentido de pertença a esta terra e na exaltação dos seus elementos distintivos, além da evidenciação da grandiosidade de tudo o que pertence ao território brasileiro comparando-o ao reino. Este espírito foi se desenvolvendo gradualmente, iniciando-se nos escritos coloniais e tomando vulto e consistência a partir do Romantismo, no final século XIX.

Neste sentido, em termos políticos, todo o projeto de escrita da História, por parte de Frei Vicente do Salvador, aponta para a restauração de Portugal, porém com sua sede e centralidade administrativa em solo brasileiro. Segundo Maria Lêda de Oliveira:

Retorne-se ao problema da leitura nacionalista, feita por muitos intelectuais brasileiros dos séculos XIX e XX, em relação à Historia do Brazil. Verdade seja dita, a obra de Frei Vicente do Salvador concede ao Brasil um papel central e quase autônomo, daí ter permitido uma continuidade de longa duração das idéias anti- coloniais e, conseqüentemente, de cariz nacionalistas em redor da obra. Esta quase autonomia do Brasil aparece devido ao seu projeto político para a construção de um novo Império português. No fundo ele oferece à História de Portugal uma chamada de Brazil. Será naquele cantinho novo que Portugal se restituirá, voltando a ser a cabeça da Cristandade, aquela que conduzirá a Orbe em direção à consumação dos tempos. O lugar do renascimento da dignidade do Império português é, para Frei Vicente do Salvador, o Brasil, ou como ele preferia, a Terra da Santa Cruz. (OLIVEIRA, 2008, p. 199).

Esse aspecto político, contudo, não fica restrito à produção histórica. Ele alcança e perpassa também a construção estilística e textual da obra e, num sentido mais amplo, contribui para a literatura nacional ao fixar as raízes do nativismo.

Para José Aderaldo Castello, de uma maneira geral, os escritos da colônia brasileira, por ressaltarem questões de ordem prática do cotidiano, expressam o nativismo, fazendo com que evolua compassadamente até desembocar na efetiva autonomia literária nacional. O autor reconhece Frei Vicente como um precursor literário de expressão para a construção desta temática, como podemos perceber:

[...] Por tudo isto, voltando ao problema pôsto em relêvo, admitimos que o início da atividade literária do Brasil-Colônia, como expressão do sentimento nativista e de atitudes outras que nos levam à conceituação de autor brasileiro do período colonial

em confronto com o autor português do momento correspondente, deve ser considerado a partir de Bento Teixeira e Frei Vicente do Salvador, quando de fato já podemos reconhecer a integração do homem colonial no seu meio. (CASTELLO, 1981, p. 21).

Mais especificamente em relação à História do Brasil, Castello (1981) indica as advertências de José Veríssimo de que Frei Vicente, como nosso primeiro prosador, assume radical importância para a identidade literária nacional, face aos elementos nativistas que articula em sua obra:

[...] Razão tiveram José Veríssimo e Oliveira Lima em procurar reconhecer o desenvolvimento do sentimento nativista, ainda que tenham incorrido na deformação da visão histórica do conjunto por fôrça da preponderância quase unilateralizadora, que lhe atribuíram. Por causa dêle é que José Veríssimo, que só sumàriamente aprecia o século XVI, aponta como primeiro prosador da literatura brasileira, no período colonial, a Frei Vicente do Salvador (História do Brasil, escrita em 1627) [...].” (CASTELLO, 1981, p. 19).

Nesse sentido, Ronald de Carvalho (1984) aponta para um espírito nacionalista que começa a se materializar a partir do século XVII e que foi absorvido pela textualidade da época, auxiliando em uma mentalidade que já demonstrava uma distinção entre os ambientes da colônia e da metrópole e o sentimento de pertença aos dois mundos. Frei Vicente do Salvador reconhece-se como parte desta nova terra, contudo, vai além ao propor o Brasil como o lugar-sede do Reino, o espaço de restauração das grandezas de Portugal (OLIVEIRA, 2008). O amor de Frei Vicente ao Brasil é apontado por Antonio Candido como a grande marca do nativismo presente na História do Brasil, pois nela o frade baiano evidencia “[...] o sentimento de amor à terra, a crítica objetiva à política colonizadora de Portugal, a informação precisa e direta, numa atitude significativa de identificação do homem com a paisagem, preocupando-se de fato com o seu destino.” (CANDIDO, 2005, p. 31).

Portanto, a História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador, ajuda lançar as raízes do nativismo, esta chave de leitura que desembocará em um projeto nacionalista para a literatura brasileira, em uma literatura não somente independente, mas também genuína em relação à produção portuguesa. Há várias narrativas na obra de Frei Vicente que apontam para o nativismo, comentários mais simples ou textos mais longos e complexos. Referenciado por vários críticos da literatura brasileira quando falam da História e da centralidade que o Brasil assumiria para o horizonte de grandeza de Portugal22, além da paradoxal falta de interesse

22 Para conferir a referenciação e repetição deste excerto na bibliografia tratada neste tópico consultar os seguintes críticos e historiadores da literatura brasileira, conforme suas obras que constam ao final desta dissertação, nas referências: Capistrano de Abreu, Antonio Candido, José Aderaldo Castello e Arthur Motta.

exploratório pelo reino, segue o jocoso excerto que compara os conquistadores portugueses a caranguejos, citado no capítulo 3, do LIVRO I:

Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse por negligências dos portuguêses, que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de aas andar arranhando ao longo do mar como caranguejos. (SALVADOR, 1965, p. 61).

Em um diálogo teórico com autores da metrópole que, para menosprezar o Brasil, afirmavam que uma terra só era digna de se constituir como nação independente se fosse apta a produzir trigo e vinho, símbolos do corpo e do sangue de Cristo (OLIVEIRA, 2008), Frei Vicente argumenta que a colônia, embora não produza o vinho da uva e o pão do trigo, oferece produtos que se lhes equiparam, além de outros de grandeza superior aos de Portugal, conforme excerto do LIVRO I, capítulo 11:

Senão pergunto eu: de Portugal lhe vem farinha de trigo? a da terra basta. Vinho? de açúcar se faz mui suave e, para quem o quer rijo, como deixar ferver dois dias embebeda como de uvas. Azeite? faz-se de côcos de palmeiras. Pano? faz-se de algodão com menos trabalho do que lá se faz o de linho e de lã, porque debaixo do algodoeiro o pode a fiandeira estar colhendo e fiando, nem faltam tintas com que muitas minas com que se tinja. Sal? cá se faz artificial e natural, como agora dissemos. Ferro? muitas minas há dêle, e em São Vicente está um engenho onde se lavra finíssimo. Especiaria? há muitas espécies de pimenta e gengivre. Amêndoas? também se escusam com a castanha de caju, et sic de ceteris.

[…] E com isto está que tem os portos abertos e grandes barras e baías, por onde cada dia lhe entram navios carregados de trigo, vinho e outras ricas mercadorias, que deixam a trôco das da terra. (SALVADOR, 1965, p. 83).

Citamos, aqui, mais um excerto, entre uma grande diversidade que há na História, enfatizando a grandeza do Brasil e o menosprezo a Portugal. Refere-se à comparação entre o Brasil e a Índia e a análise de qual terra seria mais proveitosa ao reino. Frei Vicente conclui que é o Brasil que precisa assumir o protagonismo de fornecer elementos para a retomada da grandiosidade portuguesa frente às outras nações mundiais. Este trecho foi retirado do LIVRO III, capítulo 1:

A Índia, ainda que é grande, é tão longe e a navegação tão perigosa que era perder a esperança de poder tornar e recuperar o reino.

Porém o Brasil, com ser grande, fica em tal distância e tão fácil à navegação, que com muita facilidade podem cá vir e tornar quando quiserem ou ficar-se de morada, pois a gente que cabe em menos de cem léguas da terra que tem todo Portugal bem caberá em mais de mil que tem o Brasil, e seria êste um grande reino, tendo gente, porque adonde há as abelhas há o mel, e mais quando não só das flôres, mas das ervas e canas se colhe mel e açúcar, que de outros reinos estranhos viriam cá buscar com a mesma facilidade a trôco das suas mercadorias, que cá não há. (SALVADOR, 1965, p. 162, grifo do autor).

Por fim, destacamos a importância da História do Brasil enquanto importante fonte historiográfica e literária do que foi escrito no Brasil nos séculos XVI e XVII, pela importância conferida a autores da literatura brasileira que revisitaram esta obra, referenciando-a seja explicitamente ou de forma indireta. Segundo Maria Lêda de Oliveira, já nos anos posteriores à sua elaboração,

A Historia do Brazil de Frei Vicente do Salvador teve impacto entre seus utilizadores, até porque desde muito cedo iniciou um percurso que demonstra a sua

grande difusão entre os letrados, tanto entre os escritores que viviam na colônia,

quanto entre a camada culta do Reino. (OLIVEIRA, 2008, p. 12, grifo do autor).

Portanto, diferentemente do que se imaginava, e do que aponta o próprio Capistrano de Abreu (SALVADOR, 1965, notas preliminares), a História do Brasil não ficou esquecida, pelo contrário, foi relida, reproduzida e copiada, produzindo efeitos práticos na sociedade brasileira que se desenvolvia e, igualmente, consequências textuais, como já fora demonstrado nesta pesquisa.

No próximo tópico, tentaremos demonstrar as consequências citadas com as quais a

História do Brasil contribuiu para o desenvolvimento literário brasileiro, mais

especificamente a partir do século XIX.

2.4 O MOVIMENTO DE “VOLTA ÀS FONTES” DA TEXTUALIDADE LITERÁRIA