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A “natureza híbrida” da terapia gênica (tratamento experimental), e o consentimento informado “reforçado”

CAPÍTULO IV: DOS BENS JURÍDICOS PROTEGIDOS (A VIDA, A INTEGRIDADE FÍSICA E PSÍQUICA, A

4.1. A “natureza híbrida” da terapia gênica (tratamento experimental), e o consentimento informado “reforçado”

Ao longo deste estudo, temos procurado demonstrar a necessidade ou não de regras expressas e específicas sobre a terapia gênica, uma vez que se constitui um tratamento diferenciado, muito mais invasivo e arriscado para o ser humano, e ainda distante da tão sonhada precisão e certezas científicas e médicas. Observamos, ainda, que as normativas nacionais e internacionais são cautelosas e, quase sempre, remetem a questão para a consulta e autorização de comitês especializados, no intuito de garantir a proteção do indivíduo, mas não inviabilizar os avanços da biomedicina.

Nesse sentido, o consentimento informado parece ser, no âmbito da terapia de genes, um instrumento bastante útil de proteção do paciente, na proporção em que for exigida uma informação clara, detalhada e exaustiva sobre: os meios e os fins do tratamento, os efeitos principais e secundários, os riscos e benefícios, as alternativas terapêuticas e efeitos secundários, a possibilidade e consequências da renúncia ao tratamento, os riscos novos observados durante o tratamento, a permanência do tratamento, caso necessário, após o período de experiências, dentre outros. É, em síntese, o consentimento informado reforçado, na feliz expressão do professor André Dias Pereira, que impõe acentuar o dever de esclarecimento, quando de terapêuticas arriscadas e ainda não consagradas pelos standards internacionais.

No caso do Brasil, as experiências com seres humanos, além de observar as diretrizes internacionais e das normas constitucionais de proteção do ser humano, três Resoluções do Conselho Nacional de Saúde – órgão integrante do Ministério da Saúde – são relevantes: i) a Resolução n° 196/96, que estabelece as diretrizes e normas regulamentadoras que envolvam seres

humanos, especialmente os itens III.1, III.3, “g” e IV (dispõem sobre a necessidade do consentimento livre e esclarecido dos indíviduos-alvo) e III.2 (considera como pesquisa todo procedimento, de qualquer natureza, que envolva o ser humano, cuja aceitação não esteja consagrada na literatura científica); ii) Resolução n° 251/97, estabelece as normas de pesquisa que envolvem seres humanos para a área temática de pesquisa com novos fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos, item I.4 (impõe que, em qualquer ensaio clínico e particularmente nos conflitos de interesses envolvidos nas pesquisas com novos produtos, a dignidade e o bem estar do sujeito incluído na pesquisa devem prevalecer sobre outros interesses, sejam econômicos, da ciência ou da comunidade); e iii) Resolução n° 340/04, que aprovou as diretrizes para análise ética e tramitação dos projetos na área de genética humana, em especial, os itens II.1, “e”, II.2 (definem a terapia gênica como pesquisa), III.16 (permite a intervenção no genoma somente em células somáticas) e V (disciplina o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE).

As decisões judiciais brasileiras, por outro lado, são numerosas no que se refere ao consentimento informado, mas escassas quanto à pesquisa e experimentação com seres humanos, cuja problemática é, quase sempre, dirimida no âmbito de comitês especializados. Há, contudo, uma decisão recente, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS, Agravo de Instrumento n° 70018752733, 7a Câmara Cível, de 25.04.2007, Des. Ricardo Raupp Ruschel), que nos parece importante, ainda que não trate diretamente do consentimento informado (mas sim de um ensaio clínico envolvendo um de menor e idade), pois revela a fragilidade do ser humano frente aos interesses políticos e econômicos da indústria farmacêutica, assim como demonstra que as normas postas podem sim, quando devidamente aplicadas, proteger a dignidade humana (e aqui, já demonstro a minha inicial tendência em acreditar que há normas jurídicas, no Brasil, suficientes para regulamentar os tratamentos em termos de genes).

Então vejamos: o laboratório X recorreu da decisão judicial de 1° grau, em virtude desta ter acolhido o pedido, efetivado por ente estatal, de chamamento do mesmo ao processo, a fim de que responda solidariamente, na acão em que o menor Y, representado por sua genitora, intenta manter o fornecimento de medicação (em face do seu custo elevadíssimo), após o período de experiências científicas (realizadas, em conjunto, pelo laboratório e por um hospital universitário).

De fato, trata-se de uma criança de 4 anos de idade, portadora de enfermidade genética rara e progressiva, cuja medicação sob teste é indicada como terapia de reposição enzimática, atuando aparentemente de forma eficaz no tratamento e controle da doença. A adesão ao programa de pesquisa foi voluntária e o resultado do estudo promoveu o registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), sendo o estudo posteriormente encerrado.

Com o término do estudo, o menor foi inscrito no Programa Caritativo de Tratamento, para continuar a receber o medicamento, mas que também foi extinto, ficando a criança, portanto, sem condições de manter o seu tratamento e, conseguintemente, sua condição de saúde e, quem sabe, de vida.

Acertadamente, e com base na Resolução n° 196/96, item III, “m”, “n” e “p”, que garante aos pacientes participantes de pesquisa acompanhamento, manutenção dos benefícios e acesso ao produto oriundo do estudo, independentemente da subscrição a qualquer protocolo, o Juízo de 2° grau acatou o pedido do Estado, sob o fundamento principal de que o menor é quem deve ser protegido.

Ora, o laboratório, com o registro do medicamento, e o hospital universitário – que concluiu estudo relevante – foram perfeitamente

beneficiados, na medida em que atingiram seus objetivos. O paciente, entretanto, foi, na verdade, um instrumento útil, para que ambas as instituições conseguissem os seus fins, uma vez que não teve assegurada a continuidade de seu tratamento, sendo posta em risco a sua própria condição de ser vivente (para não falarmos, ou imaginarmos, o efeito psicológico e emocional que tal fato deve ter provocado nessa criança e em seus familiares).

Estamos, pois, diante de um relevante precedente na jurisprudência brasileira, que resguardou a dignidade, a saúde e a vida de um ser humano, em detrimento da poderosa e, frequentemente, voraz indústria farmacêutica. Assim, por agora, pensamos que, de modo semelhante, as terapias inovadoras e de caráter experimental, como a terapia gênica, encontram, mesmo que sem regras específicas, amparo na legislação que disciplina as pesquisas em seres humanos. É o que restou acima demonstrado neste caso específico.