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A vinculação dos particulares a direitos fundamentais no direito brasileiro e no direito português

CAPÍTULO IV: DOS BENS JURÍDICOS PROTEGIDOS (A VIDA, A INTEGRIDADE FÍSICA E PSÍQUICA, A

4.2. A relação médico-doente e o regime jurídico aplicável

4.2.2. A atividade médica fundamentada no direito à integridade física e psíquica do paciente

4.2.2.2. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais no direito brasileiro e no direito português

Até então, levamos em consideração apenas os aspectos doutrinários da eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares. A partir de agora, porém, nossa análise será sobre a positivação desse assunto nas ordens jurídicas constitucionais do Brasil e de Portugal. Para esse intento, abordaremos, em primeiro lugar, o modo como as Leis Fundamentais desses dois países acolheram o tema da vinculação dos particulares a direitos fundamentais, bem como as razões que as justificaram. Em segundo lugar, observaremos as teorias que prevalecem em ambos os Ordenamentos Jurídico-constitucionais. Por fim, examinaremos os posicionamentos jurisprudenciais.

a) Positivação e fundamentação jurídico-constitucional da vinculação dos particulares a direitos fundamentais

Na Ordem Jurídica brasileira inexiste, até o momento, disposição constitucional expressa sobre a vinculação dos particulares a direitos fundamentais, porém os seus defensores a fundamentam conjugando a norma constitucional da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, artigo 5°, § 1°, da Constituição Federal de 1988 (“As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”) com os princípios jurídico- constitucionais da supremacia da Constituição, da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da unidade material do Ordenamento Jurídico. Utilizam, outrossim, argumentos outros de natureza ética, histórica e sociológica para fundamentar o acolhimento da eficácia jurídica dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas na ordem jurídica constitucional115.

No que se refere ao desenvolvimento doutrinário do tema no Brasil, há, ainda, poucos estudos aprofundados, mas, dentre os autores que trataram da matéria, observamos que a maioria tende a admitir a eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas, com alguns posicionamentos mais amplos e outros tendendo para as posições moderadas ou diferenciadas, com a ponderação dos interesses e a observância dos valores consagrados pela Constituição116.

115

Wilson Antônio Steinmetz, A Vinculação dos Particulares (...), p. 97 e ss.

116

Daniel Sarmento, Direitos Fundamentais e (...,) p. 277 e ss., Wilson Antônio Steinmetz, A

Vinculação dos Particulares (...), p. 295/296 e ss., SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2004, p. 370, Jane Reis

Gonçalves Pereira, Apontamentos sobre a Aplicação das Normas de Direito Fundamental nas

Relações Jurídicas entre Particulares, in A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, Luís Roberto Barroso (organizador), 2a ed. revista e atualizada, Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 181 e ss.

Já o direito português possui dispositivo constitucional expresso sobre a vinculação dos particulares a direitos fundamentais, artigo 18°, n. ° 1, da Constituição da República Portuguesa (“Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”). Tal fato, a princípio, poderia entender-se como um caso de eficácia jurídica imediata ou direta dos particulares a direitos fundamentais, mas não é o que se verifica nos estudos teóricos e na prática judiciária.

Em verdade, a doutrina portuguesa possui um maior desenvolvimento doutrinário sobre o tema, mas, ainda sem consenso entre os seus autores, que, em sua maioria, parecem não aderir plenamente à tese da eficácia imediata dos direitos fundamentais frente aos particulares117. Outras vezes, parecem tender para as soluções diferenciadoras118, ou assumem a teoria dos deveres de proteção estatal119. Adicione-se a isso, o fato de que os autores discutem as questões práticas e suas consequências jurídicas, mas desconsideram, ou não dão tanta relevância, aos fundamentos sociais, políticos, ideológicos e filosóficos que o assunto comporta.

117

Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional Tomo IV: Direitos Fundamentais, 3a edição, Coimbra, Coimbra, 2000, p. 320-327, Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito

Civil, 4a ed. Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 71 e ss., José Carlos Vieira de Andrade, Os

Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2a ed., Coimbra, Almedina, 2001, p. 237-273.

118

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed. Coimbra, Almedina, 2003, p. 1289 e seguintes, Paulo Mota Pinto, O Direito ao Livre Desenvolvimento da

Personalidade in Portugal-Brasil ano 2000, Coimbra, 1997, p. 227 e ss., José João Nunes

Abrantes, A Vinculação das Entidades Privadas aos Direitos Fundamentais. Lisboa, AAFDL, 1990, pp. 111-113, Benedita Ferreira da Silva Mac Crorie, A Vinculação dos Particulares aos

Direitos Fundamentais, Coimbra, Almedina, 2005, p. 107 e ss.

119

Jorge Reis Novais, Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre Particulares, texto não publicado até o presente momento e distribuído durante as aulas ministradas na disciplina Direitos Fundamentais B, do Mestrado em Direito da Faculdade de Direito de Lisboa, ano 2005/2006.

b) Teorias prevalentes: forma e extensão da vinculação a direitos fundamentais nas relações entre particulares

Como acima já referido, no Brasil, a teoria da eficácia jurídica imediata matizada (graduada ou atenuada) por estruturas de ponderação (especialmente com fulcro no princípio da proporcionalidade) e que, diante do caso concreto, considera os direitos fundamentais em colisão e as circunstâncias relevantes do caso, tende a ter uma maior adesão por parte dos juristas e dos aplicadores do direito. Deste modo, diante do caso concreto, em existindo legislação específica, suficiente e conforme à Constituição Federal e aos direitos fundamentais, o Poder Judiciário, em atendimento ao princípio democrático e ao princípio da separação dos poderes, deve manter-se dentro dos padrões legislativos previstos. Se, contudo, inexista previsão legislativa, deverá aplicar diretamente os preceitos constitucionais. Expande, pois, as funções judiciais e amplia os efeitos das normas constitucionais sobre a esfera de relações privadas.

Nas terras lusas, de outra maneira, o que se percebe é uma forte (ou predominante) tendência para as teorias que admitem a aplicação, primeiramente, das regras de direito privado e, posteriormente, os dispositivos constitucionais, sem contudo haver uma maior ampliação dos poderes dos magistrados. Parece existir, ademais, uma maior eficácia e eficiência das normas de direito privado na regulação da vida societária120, o que, talvez, possa ser explicado pelo seu melhor desempenho nas tarefas legislativas.

E nós pensamos – e é o que este trabalho busca demonstrar – que essas diferenças de posicionamentos entre os juristas brasileiros e

120

Neste sentido, Vieira de Andrade afirma que, por vezes, a legislação de direito privado e do direito do trabalho acompanha mais de perto a evolução social e reflete, de modo mais intenso, os valores constitucionais do que a jurisprudência.

portugueses se dão em razão das diferenças económicas, sociais, políticas e ideológicas, bem como da diferente formação jurídica existente entre os operadores do direito de Brasil e Portugal. Em outras palavras, acreditamos que a forma de construir, interpretar e aplicar o direito estão intrinsecamente relacionadas com os fatores sociais, econômicos, políticos e ideológicos que permeiam a sociedade de ambos os países.

c) Posicionamento jurisprudencial

De certa forma, em consonância com a doutrina nacional, os juízes e tribunais brasileiros, sejam os Tribunais Estaduais ou os Tribunais Superiores (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Superior do Trabalho), vêm demonstrando, em suas decisões, uma certa adesão à teoria da eficácia jurídica imediata dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares, ainda que não se perceba uma construção teórica sistematizada nesse sentido. O Supremo Tribunal Federal, p. ex., não formulou nenhum posicionamento específico sobre o tema e os demais tribunais, principalmente o Tribunal Superior do Trabalho, tendem, fortemente, a aplicar diretamente os dispositivos constitucionais dos direitos fundamentais nas questões envolvendo particulares121.

A República Portuguesa, por outro lado, também não possui jurisprudência firmada sobre o assunto. Nessa perspectiva, o Tribunal Constitucional apresenta, até o momento, poucas decisões sobre a eficácia jurídica dos direitos fundamentais nas relações entre particulares – o que,

121

Wilson Antônio Steinmetz, A Vinculação dos Particulares (...), p. 289-293. Com o mesmo entendimento, Daniel Sarmento, Direitos Fundamentais e (...), p. 292-297 e Jane Reis Gonçalves Pereira, Apontamentos sobre a Aplicação (...,), p. 178-180.

certamente, se dá em razão da impossibilidade de recurso direto para esta Corte122 – não se tendo, ainda, manifestado definitivamente sobre a forma e a extensão da vinculação dos particulares a direitos fundamentais.

Já os Tribunais ordinários tendem a admitir, à primeira vista, uma eficácia jurídica imediata, mas não absoluta, com adoção de soluções diferenciadas e resultantes da estrutura normativa e da natureza principiológica dos direitos fundamentais.

Em breves linhas, são esses os aspectos de positivação e de fundamentação que consideramos relevantes sobre a vinculação dos particulares a direitos fundamentais.