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A natureza jurídica da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais

A tributação é a forma a partir da qual o Estado transforma o capital privado em capital público, revertendo-o em usos e benefícios para toda a sociedade (OTTO, 2001). No caso da política tributária mineral brasileira, são impostos ao empreendedor alguns daqueles tributos tipicamente cobrados de outros setores produtivos46, entretanto, para além desses, foi instituída também a obrigatoriedade do pagamento de royalties que tipicamente possuem a função de compensar o titular de determinado bem ambiental não renovável em razão de seu uso (OTTO, 2001).

Esses royalties, que no Brasil recebem o nome de CFEM, encontram previsão constitucional47 e não possuem natureza jurídica de tributo, representando uma mera

“contraprestação que o particular deve pagar pela obtenção de um direito de extrair um recurso natural não renovável” (ENRÍQUEZ, 2007, p. 332). A titularidade do recurso mineral, todavia, é questão delicada.

Ao mesmo tempo que é expresso no texto constitucional que eles pertencem à União48, eles possuem simultaneamente, conforme defendido anteriormente, natureza de bem ambiental. Os bens ambientais, entretanto, segundo consta da CR/1988, são de uso comum do povo49 – e, portanto, possuem caráter difuso, pertencendo a uma coletividade indeterminada de pessoas, que dele dependem para garantia de seu bem-estar e qualidade de vida.

A fim de explicar essa dicotomia, aparentemente irreconciliável, Coelho (2012) ressalta que é necessário observar o bem ambiental a partir de duas perspectivas: uma macro e outra micro. O “macrobem” meio ambiente seria, assim, público – no sentido de que não pode ser objeto de apropriação privada – e imaterial, fruto do interesse difuso que o circunda, recebendo tratamento jurídico especial e diferenciado. O “microbem”, por sua vez, é passível de ser submetido à titularidade estatal ou privada, e a normatização da proteção sobre eles,

46 Em relação aos impostos, a CR/1988, a partir de seu artigo 155, § 3º, limita a competência para sua instituição sobre a mineração, ao conferir imunidade dessas exações sobre minerais, com exceção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS), do Imposto de Importação (II) e do Imposto de Exportação (IE).

47 “Art. 20. São bens da União: [...] IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo; [...] § 1º É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração [...]” (BRASIL, 1988).

48 “Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra [...]” (BRASIL, 1988).

49 Ver art. 225, “caput”, CR/1988.

segundo o autor, vai depender da conjugação de três elementos: o bem em si considerado, o valor a ele atribuído e o interesse de que se reveste.

Nessa seara, os bens públicos seriam aqueles “microbens” ambientais que, em sua materialidade, permanecem dotados de importância socioambiental ímpar e carecem, pois, de especial proteção por parte do Estado. Assim, ao atribuir sua titularidade a um ente estatal, o constituinte reconhece a necessidade de protegê-los, incumbindo ao poder público a função de fixar diretrizes voltadas à exploração sustentável desses recursos (COELHO, 2012).

É nessa categoria que se enquadra o recurso mineral. Responsável pela geração de inúmeras riquezas, advindas de uma exploração profundamente degradante de um bem finito, a CR/1988 atribui sua titularidade à União50. Entretanto, por força da determinação contida no artigo 173 da CR/198851, a exploração não é realizada por ela, mas sim cedida mediante concessão ou autorização a um particular.

Essa titularidade, portanto, não se reveste do mesmo caráter da propriedade para o Direito Civil52, não podendo a União, ainda que como detentora, deles gozar e dispor livremente. É em razão dessas peculiaridades que Ataíde (2019) defende tratar-se, na realidade, de um regime de propriedade distinto, similar àquele adotado na Argentina, denominado

“domínio eminente”. Por meio deste, o Estado, em uso de sua soberania, possui a incumbência de regular e reger o exercício da fruição do bem pelo particular, representando essa propriedade, na realidade, como mera forma de representação dos interesses de todo o povo brasileiro.

É, pois, justamente em razão da exploração desse bem finito, pertencente à União – como ente representativo de toda a sociedade –, que, a partir de sua retirada pelo particular, deixa definitivamente o patrimônio público, sendo transformado pelo empreendedor de recurso em produto – gerando lucro –, que se justifica a cobrança da CFEM.

Conforme mencionado e já pacificado por meio da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em julgamento do Recurso Extraordinário (REX) 228.800/DF, a CFEM não possui natureza tributária. Isso porque, segundo lecionam Castro Júnior e Silva (2018), trata-se de receita originária – que decorre da exploração de patrimônio estatal –, e, em análise do conceito implícito de tributo inscrito no texto constitucional, este possui natureza, obrigatoriamente, de receita derivada. Também não é preço público, posto que é decorrente de

50 Conforme art. 176, “caput” e Art. 20, IX, CR/1988.

51 “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei” (BRASIL, 1988).

52 “Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha [...]” (BRASIL, 2002).

imposição legal, ou seja, a partir do Estado em uso de seu poder de império (CASTRO JÚNIOR;

SILVA, 2018), nem mesmo indenização.

Ora, o empreendedor minerário, antes de obter os seus direitos de pesquisa e exploração, deve se submeter a um processo de licenciamento ambiental, procedimento por meio do qual o poder público identificará os possíveis impactos da atividade e imporá condicionantes cuja finalidade é justamente prevenir, mitigar ou compensar as perturbações negativas detectadas. Assim, tratando-se de atividade chancelada pelo próprio Estado, ela não poderá, caso cumpridas as determinações legais, se revestir de ilicitude deflagradora de obrigação indenizatória (CASTRO JÚNIOR; SILVA, 2018).

Por fim, apesar de seu nome, sua natureza também não é compensatória. Isso porque o legislador infraconstitucional, ao instituí-la, estabeleceu que suas alíquotas são incidentes não sobre o valor calculado do possível dano medido, mas sim sobre, inicialmente, “o valor do faturamento líquido resultante da venda do produto mineral”53 (BRASIL, 1989c). Atualmente, após a reforma realizada pela Lei n. 13.540/2017, as alíquotas passaram a ser incidentes sobre as “receitas brutas” auferidas a partir da venda dos bens minerais54.

Assim, na realidade, a CFEM se reveste de caráter de verdadeira “participação nos resultados da exploração”. Esse entendimento é, inclusive, o chancelado pelo STF que, a partir do voto do ministro Sepúlveda Pertence, defendeu:

EMENTA: Bens da União: (recursos minerais e potenciais hídricos de energia elétrica): participação dos entes federados no produto ou compensação financeira por sua exploração (CF, art. 20, e § 1º): natureza jurídica: constitucionalidade da legislação de regência (L. 7.990/1989, arts. 1º e 6º e L. 8.001/1990). 1. O tratar-se de prestação pecuniária compulsória instituída por lei não faz necessariamente um tributo da participação nos resultados ou da compensação financeira previstas no art. 20, § 1º, CF, que configuram receita patrimonial. 2. A obrigação instituída na L.

7.990/1989, sob o título de "compensação financeira pela exploração de recursos minerais" (CFEM) não corresponde ao modelo constitucional respectivo, que não comportaria, como tal, a sua incidência sobre o faturamento da empresa; não obstante, é constitucional, por amoldar-se à alternativa de "participação no produto da exploração" dos aludidos recursos minerais, igualmente prevista no art. 20, § 1º, da

53 Conforme art. 6º, Lei n. 7.790/1989 – redação original.

54 “Art. 2º As alíquotas da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) serão aquelas constantes do Anexo desta Lei, observado o limite de 4% (quatro por cento), e incidirão: I - na venda, sobre a receita bruta da venda, deduzidos os tributos incidentes sobre sua comercialização; II - no consumo, sobre a receita bruta calculada, considerado o preço corrente do bem mineral, ou de seu similar, no mercado local, regional, nacional ou internacional, conforme o caso, ou o valor de referência, definido a partir do valor do produto final obtido após a conclusão do respectivo processo de beneficiamento; III - nas exportações, sobre a receita calculada, considerada como base de cálculo, no mínimo, o preço parâmetro definido pela Secretaria da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda, com fundamento no art. 19-A da Lei n. 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e na legislação complementar, ou, na hipótese de inexistência do preço parâmetro, será considerado o valor de referência, observado o disposto nos §§ 10 e 14 deste artigo; IV - na hipótese de bem mineral adquirido em hasta pública, sobre o valor de arrematação; ou V - na hipótese de extração sob o regime de permissão de lavra garimpeira, sobre o valor da primeira aquisição do bem mineral” (BRASIL, 1990).

Constituição. [...] Na verdade – na alternativa que lhe conferira a Lei Fundamental – o que a L. 7.990/1989 instituiu, ao estabelecer no art. 6º que ‘a compensação financeira pela exploração de recursos minerais, para fins de aproveitamento econômico, será de até 3% (três por cento) sobre o valor do faturamento líquido resultante da venda do produto mineral’, não foi verdadeira compensação financeira:

foi, sim, genuína ‘participação no resultado da exploração’, entendido o resultado não como o lucro do explorador, mas como aquilo que resulta da exploração [...]. Nada importa que – tendo-a instituído como verdadeira “participação nos resultados da exploração mineral, a lei lhe haja emprestado a denominação de “compensação financeira” pela mesma exploração – outro termo da alternativa posta pelo art. 20, § 1º, da Constituição: cuidando-se de obrigação legal, de fonte constitucional, ainda que não seja tributo, é dado transplantar, mutatis mutandis para identificar a natureza da CFEM, a regra hermenêutica do art. 4º, I, CTN, que adverte da irrelevância da denominação dada à exação. [...] (RE 228800, Relator (a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 25/09/2001, DJ 16-11-2001 PP-00021 EMENT VOL-02052-03 PP-00471). (BRASIL, 2001c).

A partir de um estudo atento do texto constitucional, verifica-se que o constituinte originário conferiu especial atenção às atividades extrativas minerais, tratando-as com mais esmero e precisão do que o fez com outras atividades econômicas. Assim, o art. 225, § 2º da CR/1988, reconhecendo que a mineração é geradora de significativo impacto ambiental, estabelece, expressamente, o dever daquele que a exerce de recuperar o meio ambiente degradado.

Essa incumbência não recai tão somente sobre o minerador, devendo ser imposta a todo e qualquer poluidor, em decorrência direta do princípio do poluidor-pagador. Entretanto, verificando a importância do setor minerário para a economia nacional, bem como seu potencial degradador, optou por estabelecer esse encargo específico constitucionalmente.

No mesmo sentido foi a instituição da CFEM. Consciente das características peculiares de que se revestem, especialmente os grandes empreendimentos minerários, fez-se necessária a instituição de uma contraprestação aos entes federativos atingidos diretamente pelas externalidades negativas geradas pela atividade. Assim, apesar da natureza jurídica a ela atribuída pelo legislador infraconstitucional, ela representa o pagamento pelo uso de um bem da União. No entanto, não se esgota nessa justificativa, pois, caso contrário, a totalidade de seus proventos seriam a ela destinados, quando, na realidade, eles devem ser obrigatoriamente repartidos entre Estados, municípios e Distrito Federal.

A exação é destinada, então, aos afetados pelo exercício da atividade em seu território e deveria ser utilizada, tendo em vista o caráter exaurível do bem explorado e, consequentemente, precário de que se reveste a extração para preparar o local para a retirada do empreendimento, garantindo-lhe a manutenção dos altos níveis de desenvolvimento que geralmente se verificam no local durante o seu efetivo exercício.

Essa múltipla finalidade da contraprestação também foi reconhecida pelo ministro Sepúlveda Pertence em seu voto, por meio do qual definiu a CFEM como sendo um

“mecanismo destinado a recompor uma perda, sendo, pois, essa perda o pressuposto e a medida da obrigação do explorador” (BRASIL, 2001c, p. 483-484) e afirmou:

[...] Não, certamente, à perda dos recursos minerais em favor do explorador, pois, nesse caso, a compensação financeira, para compensá-la efetivamente, haveria de corresponder à totalidade dos recursos minerais explorados – o que inviabilizaria a sua exploração econômica privada [...]. Em todo caso, não seria lógico compensar os Estados, o Distrito Federal e os Municípios pela perda de bens que não lhe pertencem, mas exclusivamente à União. A compensação financeira se vincula, a meu ver, não à exploração em si, mas aos problemas que gera. Com efeito, a exploração de recursos minerais e de potenciais de energia elétrica é atividade potencialmente geradora de um número de problemas para os entes públicos, especialmente para os municípios onde se situam as minas e represas. Problemas ambientais [...], sociais e econômicos, advindos do crescimento da população e da demanda por serviços públicos.

A exação é um instrumento econômico (ARTIGAS, 2011) que se justifica no princípio do usuário-pagador, variação do princípio do poluidor-pagador, o qual visa “impor ao usuário do recurso ambiental contraprestação por sua utilização” (SOUZA, 1995, p. 143).

As leis n. 7.990/1989 e 8.001/1990, recentemente modificadas pela Lei n.

13.540/2017, que instituem e definem os percentuais de distribuição da CFEM, respectivamente, não estabeleceram, contudo, a vinculação das receitas auferidas pelos entes públicos a partir de seu recolhimento a nenhuma finalidade específica. A única vedação constante da lei é a de fazer uso das verbas para pagamento de dívida e quadro permanente de pessoal55. Uma tímida tendência para vinculação dessas receitas foi incluída com o § 6º, do artigo 2º, da Lei n. 8.001/1990 após a reforma promovida pela Lei n. 13.540/2017, entretanto, ela ainda se mostra insuficiente.

Estudos demonstram que já existem municípios, tais como Itabira/MG e Minaçu/GO, que alçaram inúmeras melhorias sociais, bem como, a passos lentos, logram sucesso na diversificação de sua base econômica municipal, a partir do investimento planejado das receitas da CFEM em ampliação e reforma das infraestruturas locais, capacitação de mão de obra, investimento em novos e já existentes setores produtivos (ENRÍQUEZ, 2007). Itabira, inclusive, foi o primeiro município a criar órgãos e legislações destinadas à aplicação da CFEM no desenvolvimento local e é um dos municípios mineiros com maior IDH.

Entretanto, tendo em vista a ausência de vinculação legal das receitas, o instrumento é comumente subutilizado, principalmente em razão do que Enríquez (2007, p. 378) denomina como “maldição do caixa único”, esvaziando a possibilidade de que o recurso seja aplicado na criação de alternativas de longo prazo para a localidade.

55 Ver art. 8º, Lei n. 7.790/1989.

A autora, após analisar diversos municípios mineradores e não mineradores, utilizando-se de índices sociais, econômicos, ambientais e de governança, conclui que:

Os municípios mineradores que apresentam os melhores desempenhos em seus indicadores de desenvolvimento foram aqueles em que as rendas da mineração foram gastas dentro de um padrão de uso sustentado e convertidas em gasto público de qualidade. Assim, os municípios com melhores indicadores na dimensão governança saem em vantagem em relação aos municípios com indicadores ruins nessa dimensão.

(ENRÍQUEZ, 2007, p. 378).

Dessa maneira, assim como verificado em relação às condicionantes sociais do licenciamento, percebe-se que o legislador, em um constante desmerecimento dos impactos socioeconômicos e culturais gerados pelo exercício de atividades produtivas nas comunidades locais, não se utiliza adequadamente de seu poder para garantir que os instrumentos de gestão ambiental sejam efetivamente instrumentos que o logrem o alcance de um exercício sustentável da atividade minerária, principalmente para as localidades em que se instalam.

4.4 O caráter complementar das condicionantes compensatórias do licenciamento