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2.3 A OUTORGA DE DIREITO DE USO DE RECURSOS HÍDRICOS

2.3.3 Natureza jurídica

Importante destacar que a Constituição Federal vigente apresenta três categorias de bens, quais sejam: os privados, os públicos e os difusos. A corrente doutrinária mais moderna assevera que os bens ambientais se enquadram nesta última classificação. Pois, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é classificado, em quase todos os ordenamentos jurídicos, como um direito fundamental de 3ª dimensão, contemplando os direitos difusos.

Ressalte-se que a Lei nº 6.938/81 que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) estabeleceu no seu art. 3º, V, que dentre os bens que compõem os recursos ambientais encontram-se a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora.

Neste aspecto, importante as considerações tecidas por Fiorillo (2013, p.185), que merecem ser reproduzidas:

Na verdade, deve-se frizar que o Texto Constitucional em vigor aponta dispositivos modernos, os quais têm por conteúdo interesse difuso. São exemplos: o princípio de que todos são iguais perante a lei, o direito às cidades, o uso da propriedade adaptado à função social; a higiene e a segurança do trabalho; a educação, o incentivo à pesquisa e ao ensino científico e o amparo à cultura; a saúde; o meio ambiente natural; o consumidor, entre tantos outros. Isto porque tais normas assumem a característica de direito transindividual, de natureza indivisível, de que são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.

Com isso, reitera-se que o art. 225 da Constituição Federal, ao estabelecer a existência jurídica de um bem que se estrutura como de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, configura nova realidade jurídica disciplinando bem que não é público, nem muito menos, particular.

Nessa ordem de ideia, e corroborando com o pensamento acima declinado, cumpre destacar que a água constitui também um bem de uso comum do povo, possuindo natureza jurídica de bem difuso, transindividual, na medida em que ultrapassa o limite da esfera de direitos e obrigações de cunho individual (FIORILLO, 2013).

Essa distinção permite evidenciar, portanto, que a água, por conseguinte, não integra o patrimônio privado do Poder Público, pois se trata de um bem inalienável. A outorga não implica alienação parcial das águas, mas o seu simples direito de uso, conforme disposição do art. 18 da PNRH. Destarte, incumbe ao Poder Público, a atribuição de mero gestor de recursos hídricos.

É digno de nota as considerações trazidas por Silva e Vilas Boas (2013, p. 145), em estudo referente à nova natureza jurídica da água:

Elencamos, neste momento, algumas consequências diante desta nova dimensão jurídica que a CRFB/88 trouxe ao meio ambiente no que tange ao elemento vital água:1) inviabilidade de privatização de mercantilização dos recursos hídricos; 2) a água não pode ser apossada por uma só pessoa, seja física ou jurídica, que resulte na exclusão absoluta aos demais usuários de usufruir de tal direito; 3) cabe a todos o dever de defendê-la e preservá-la para as presentes e futuras gerações, visto que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito intergeracional; 4) repúdio a qualquer forma de poluição ou agressão deste bem natural;5) uso racional dos recursos hídricos, como também devemos utilizá-lo, isso porque não podemos esgotá-lo; 6) qualquer tipo de outorga de uso (concessão ou autorização)da água deve ser rigorosamente motivada e fundamentada pelo gestor público; 7) a água não integra o patrimônio privado do poder público, este é apenas gestor (dominialidade) dos recursos hídricos; dentre outros.”

Conforme exposto em linhas pretéritas, a outorga consubstancia-se mediante ato administrativo do Poder Público competente. É razoável afirmar que o Código de Águas de 1934 utilizou os termos concessão e autorização referindo-se à outorga de direito de uso da água. Pois, no art. 43 fazia-se distinção entre o ato administrativo que possibilitava derivação de parcela de água, indicando que no caso de utilidade pública dever-se-ia proceder a uma concessão administrativa e, no caso de outras finalidades públicas estar-se-ia diante de uma autorização administrativa.

Posteriormente, a Lei nº 9.433/97 numa interpretação literal pertinente aos seus dispositivos legais, pode-se inferir que não houve utilização dos termos acima mencionados, uma vez que apenas faz menção ao “regime de outorga”.

Contudo, em legislação cronologicamente posterior, qual seja a Lei nº 9.984/2000 que instituiu a Agência Nacional de Águas - ANA, precisamente no art. 4º, IV, menciona que a outorga será concedida através de autorização administrativa. Destarte, torna-se digno de nota que houve revogação dos dispositivos pertinentes inseridos no Código de Águas de 1934.

Neste contexto, em que pesem as disposições doutrinárias em sentido contrário, torna- se razoável afirmar, que a outorga de direito de uso da água é ato administrativo de autorização, configurando está, portanto, a sua natureza jurídica.

Assim, importante trazer à baila os ensinamentos de Di Pietro (2011, p. 694) referentes à autorização administrativa, pois para a jurista a “Autorização de uso é o ato administrativo unilateral e discricionário, pelo qual a Administração consente, a título precário que o particular utilize bem público com exclusividade”.

Ressalte-se que dentre os elementos acima, a autora ainda explica que a unilateralidade do ato refere-se ao fato que mesmo sendo provocado pelo interessado é o poder público que o efetiva com sua exclusiva vontade; a discricionariedade se perfaz devido à conveniência e oportunidade pelo qual a administração pode consentir ou negar; a precariedade diz respeito a possibilidade de poder ser revogado a qualquer momento, quando o uso for contrário ao interesse público (DI PIETRO, 2011).

Urge destacar que essa discricionariedade que informa a prática do ato administrativo de outorga, deve ter como parâmetro as prioridades de uso estabelecidas no Plano de Bacia, após aprovação do respectivo Comitê de Bacia, com a participação conjunta entre sociedade e Poder Público na tomada de decisões.

Na mesma linha de raciocínio, deve-se enfatizar que a precariedade também constitui outra característica pertinente ao ato de outorga. Neste sentido, merecem destaque as considerações tecidas por Carolo (2007, p. 56):

A precariedade representa a possibilidade de o órgão outorgante suspender ou revogar a outorga a qualquer momento, mediante motivação, mas sem direito à indenização ao outorgado, por duas razões: pela vigência da outorga estar limitada ao interesse público, mesmo que concedida com fundamentos em interesse particular, e pela inconstância da disponibilidade hídrica não possibilitar o direito adquirido da outorga aos usuários outorgados.

Por fim, essa precariedade inerente ao ato de outorga é bastante criticada doutrinariamente, por encontra-se desprovida de algumas características que devem permear a precariedade na sua essência administrativa. Assim, aduz Granziera (2001, p. 201-202):

Essas disposições levam à reflexão de que a denominação, para as outorgas não é adequada. Tampouco seria a concessão. Na verdade, trata-se de uma figura sui generis do direito administrativo, pelas suas especificidades e diversidade de natureza, em função da finalidade de usos. Mais útil e claro seria denominar o instituto simplesmente como “ outorga de direito de uso

dos recursos hídricos”, sem a preocupação de enquadrá-lo em institutos outros que, de resto, já ensejam uma conceituação tormentosa, como é o caso, por exemplo, da licença ambiental”

Por fim, tal distinção permite evidenciar que independentemente de enquadrar-se numa ou noutra previsão à luz do Direito Administrativo, o que não se discute é que a outorga configura um ato administrativo ambiental. Assim, o ato administrativo ambiental visa, segundo Silva (2011, p. 357) “[...] assegurar uma acesso equitativo aos recursos naturais fundados na justiça socioambiental, considerando o variável espaço e tempo, como também as relações entre direito, ciência e política”.