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NAVEGAR É PRECISO, COMER TAMBÉM É PRECISO POR MAR E POR TERRA, A CIDADE SE ABASTECE.

Salvador Preço de alqueire 131 de farinha e de arroba do açúcar branco 1850 – 1865 (médias anuais em mil réis correntes)

CAPÍTULO 2 NAVEGAR É PRECISO, COMER TAMBÉM É PRECISO POR MAR E POR TERRA, A CIDADE SE ABASTECE.

A palavra “Recôncavo” significa fundo da baía, mas no contexto geográfico baiano, o Recôncavo abrange as terras adjacentes, ilhas e ilhotas, para além das praias, vales, várzeas e planaltos próximos ao mar. O solo massapê constituiu, na verdade, silões que transformaram o plantio de cana dependente das chuvas. E além da cana, destinada à produção de açúcar para exportação, bem como a produção de fumo, no Recôncavo se desenvolveu também, com certo destaque, a produção de farinha de mandioca voltada ao abastecimento da região agrícola exportadora, além de atender à população da capital.

Salvador faz parte do Recôncavo, e até o século XIX, a capital baiana produzia uma parte dos frutos e leguminosas que consumia, afinal, as terras onde a cidade foi edificada eram boas para hortas e pomares. No Século XIX, com a precariedade das vias terrestres e o grande aumento do mercado consumidor, a pequena cabotagem tornou-se um negócio rentável e atraente para este trecho da região.

A ligação entre Salvador, Recôncavo e sertão, ou seja, entre a capital e os centros abastecedores de farinha de mandioca e de carne verde, era feita pelo mar ou por antigos caminhos que partiam de Cachoeira para o norte, via Jacobina, descendo em seguida para Maracás, de Caetité e Rio das Velhas, respectivamente. Eram caminhos trilhados por carros de boi, animais carregados e também boiadas. A primeira estrada pavimentada data de 1851, saída de Santo Amaro, com 330 metros, e a primeira linha ferroviária partiu de Salvador para o Rio Joanes, em 1860. No entanto, Salvador continuou a ligar-se às vilas e arraiais pelas vias marítimas e fluviais.

Em relatório entregue ao Ministro da Marinha em 1883, Antônio Alves Câmara afirmou que a magnífica posição da baía de Todos os Santos na costa brasileira sempre ofereceu enorme proporção na entrada e facilidade em ser demandada por navios de longo curso, seja em relação aos ventos ou em relação às correntes oceânicas. Com 30 léguas de periferia, certamente a maior do Brasil em superfície, e também a maior em massa d’agua, permitindo navegação franca a 15 milhas a rumo, encontrando sempre grandes profundidades que diminuem com aproximação da terra ou ilhas do fundo da baía, ou na embocadura dos rios Paraguaçu e Sergi, devido os depósitos de vasa por eles transportados164. Porém, a imensa

164CAMARA, Antônio Alves. A Bahia de Todos os Santos – com relação ao melhoramento de seu porto. Rio de

77 baía não era o porto de Salvador, este se reduzia a um pequeno golfo natural, frente ao Horst dominando a praia e sobre a qual se levantou o primeiro núcleo da cidade em meados do século XVI165.

A sua entrada possui largura de aproximadamente seis milhas, sentido E-O, das quais apenas três de franca navegação aos navios maiores. Da ponta de Santo Antônio, seguindo até a de Montserrat, cinco milhas que vão se alargando, formando uma superfície de 20 milhas quadradas, com fundo de 12 a 49 metros166. De Montserrat até a ponta da Sapoca, seis milhas navegáveis que se alargam ainda cinco a dez milhas, formando outra superfície de 45 milhas quadradas com fundos de 11 a 47 metros. Da Sapoca tem-se navegação segura até a baía de Aratu, em uma extensão também de seis milhas, e desta, ao lado oposto da baía, no sentido E- O, pode-se avaliar uma distância de 19 milhas, e a superfície aquosa que diminui ao norte na extensão de seis milhas, sendo 14 milhas de distancia em relação ao lado oposto167. Adiante a esta zona diminui a superfície, sendo a área ocupada por ilhas e baixios. A presença de pedras mergulhadas torna a navegação mais difícil e praticada apenas nos canais, pelos vapores da companhia baiana de navegação, navegações de cabotagem e tráfego do porto.

Figura 02. Baía de Todos os Santos.

Fonte: Arquivo Público da Bahia, Seção Colonial Provincial, Maço: 6449 - Secretaria do Governo da Bahia, 24 de maio de 1864

165MATTOSO. Op. Cit. P. 75.

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CAMARA. Op. cit. P. 2.

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78 Também pertence à baía de Todos os Santos a superfície entre a costa ocidental da Itaparica e a terra firme, e a extensa baía de Aratu. As dimensões extremas se podem calcular, sendo 22 milhas da baía de Aratu à foz do Paraguaçu, na direção E-O, e 25 da ponte de Santo Antônio à foz do Rio Sergi, na direção NNO-SSE168.

Apesar de ser considerado um bom porto, Salvador apresentava, para a navegação da época, uma série de dificuldades que eram ainda ampliadas, devido os baixios, os ventos, e o intenso movimento de embarcações. Ao sul da entrada da baía, um banco de areia deveria ser evitado por embarcações de grande calado. Os paquetes a vapor apresentavam maior facilidade nestas manobras, pois não dispensavam da ação dos ventos169.

Na altura do paralelo do Farol de Santo Antônio, o perigo ficava por conta dos recifes Prapatingas que se estendem além da ponta NE de Itaparica, estreitando o canal de entrada por apenas duas milhas de largura. Já ao largo da ponta de Nossa Senhora da Penha, novos bancos de areia e recifes perigosos responsáveis por muitos naufrágios170. Para ancorar no porto era necessário evitar o conjunto de rochas denominado Panellas, banco de recifes de forma circular (com meio milha de diâmetro), cujo centro se acha a três quartos de milha a NO do forte de São Marcelo. Em certos pontos desse banco o mar tem a profundidade de apenas 5 m, no entanto, ao redor deste estavam justamente os melhores ancoradouros, 20 a 24 m de profundidade a Oeste, 15 a 16 m ao Norte, Sul e Leste; entre o banco e o Forte São Marcelo há 12 e 13 m de profundidade, porém existia o perigo da ancora encontrar um solo rochoso171.

Desde a década de 1860 era preciso evitar outra rota: a carcaça do navio France, incendiado em setembro de 1856 a 8m de profundidade, e um banco de areia situado próximo a terra, o banco da Gamboa, que se prolongava da costa do Forte da Gamboa até 600 m de distância de seu fundo. E além das dificuldades naturais, o congestionamento de navios muitas vezes obrigava a embarcação a buscar ancoradouro mais distante do cais, o que prejudicava o desembarque tanto de passageiros, quanto de mercadorias.

O porto comercial era parte da baía, e foi feito em frente, muito próximo a capital, por causa da sua enorme barra, e abertura que apresentava aos ventos de SE a SO, batido no inverno pelos ventos deste quadrante, e algum tanto no verão pelos do NO com trovoadas, e por isso atrasava as condições de movimento de carga e descarga das embarcações de toda espécie e paquetes, comprometendo o desembarque de mercadorias, que muitas vezes

168Ibid. P. 3

169MATTOSO. Op. Cit. P. 75 170 Ibid. P. 77.

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79 demoravam-se dias sobre a água a espera de bom tempo, além do incomodo a passageiros expostos aos perigos ao desembarcar meio a grandes ressacas172.

O carregamento e o descarregamento dos navios cabiam as alvarengas e aos trapiches alinhados na área comercial. Em terra um grande movimento de embarque e desembarque de marujos e oficiais de embarcações nacionais e estrangeiras, que migravam para as ruas da cidade, onde pequenos e grandes comerciantes apressavam-se no meio de vendedores, negros ou mulatos, escravos ou libertos, que sustentavam pesados volumes na cabeça. As entradas da Baía de Todos os Santos sempre apresentaram, para as embarcações que a demandavam, uma larga enseada que por si mesma era um porto, no dizer de alguns navegantes “Poderia abrigar

em teu seio todos os navios do mundo” (Mauricio Lamberg, 1897); “havendo espaço para que possa se arrumar sem confusão todas as esquadras do mundo” (Lindley, 1802); “tão grande que talvez todas os navios a vela do mundo pudessem ancorar com segurança”

(Asschenfeld)173.

Figura 3 - Panorama Fotográfico da Cidade do Salvador. Fonte: Gilberto Ferraz, 1860.

A imagem panorâmica da Salvador em 1860 mostra as alvarengas que descarregavam navios, uma vez que não havia cais acostável, uma sequência de grandes quadras de edifícios, ao melhor estilo pombalino e de igual altura, que é onde ficavam os armazéns e escritórios do comércio baiano. Ainda na parte baixa da cidade, o prédio da alfândega, próximo à Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, com andaimes na fachada, construída com pedras

172CAMARA. Op. cit. P. 29

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Depoimentos de viajantes colhidos Moema Parente Augel. Visitantes estrangeiros na Bahia oitocentista. Salvador, 1975. (Dissertação de Mestrado – UFBA).

80 lavradas que vieram prontas de Lisboa. Um cenário compatível com o lugar de destaque que a Bahia ocupava entre os portos brasileiros.

O seu papel político e administrativo no período colonial, sua privilegiada localização em relação à Europa, a diversidade de produção primária de sua hinterland rural, a função de redistribuidor de mercadorias importadas, e, sobretudo, a facilidade de acesso para abastecimento de navios e seu ancoradouro relativamente abrigado, fizeram de Salvador um lugar de encontro para embarcações de todo tipo. Caravelas, naus, galeotas, fragata, brigues, navios, bergantins, sumacas e até avisos (navios pequenos de grande velocidade que traziam ordens da metrópole e levavam as respostas), vindos de vários pontos da Europa, África e Ásia, e com eles os seus produtos, desembarcavam na Baía de Todos os Santos. Também vinha do território nacional, de portos sul-americanos, e do Recôncavo, o abastecimento de subsistência diária dos citadinos, numa espécie de ligação entre o mundo urbano e o mundo rural de roceiros de mandioca, ou dos produtores de café, açúcar, tabaco e algodão, dentre outros. Esta movimentação intensa trazia para a capital baiana um número bastante elevado de população flutuante, composta pelos marinheiros e tripulantes que aportavam em Salvador.

No Mapa demonstrativo das embarcações nacionais de navegação de longo curso e cabotagem do ano de 1856, traz registro de que naquele ano passaram pelo porto de Salvador 1543 alvarengas com uma tripulação total de 3559 pessoas, 1437 canoas com 3578 pessoas, 274 lanchas com 491 pessoas, 55 barcos com 135 pessoas, 46 iates com 172 pessoas, 32 sumacas com 188 pessoas, 26 pinaças com 193 pessoas, 22 bergantins com 80 pessoas, 03 escunas com 17 pessoas, 03 barcos a vapor com 40 pessoas174. Dentre os tripulantes, em 1856, um quarto dos barqueiros eram escravos175.

O porto era então a porta de entrada não só de mercadorias, de informações e das trocas culturais, mas também de enfermidades, devido à circulação de marinheiros em navios nacionais e estrangeiros. A epidemia de febre amarela assolou no início da década de 1850, e a população considerou os tumbeiros como principais agentes difusores do surto, devido às péssimas condições de higiene que estes apresentavam e também pelo contato destes com o continente africano, visto pelos populares como lugar inóspito e doentio176. Entre os anos de 1855 e 1856, foram as epidemias de cólera que desorganizaram o comércio e agravaram o problema da fome, provocando a escassez, e, consequentemente, o aumento dos preços dos produtos de subsistência.

174 GRAHAM. Op. Cit. P 122. 175 Idem. P. 127.

176

81 Ainda na década de 1850, toda a economia nacional sofreu com a proibição do comércio internacional de escravos, o que levou a uma reorganização dos investimentos, com deslocamento dos capitais antes utilizados nesta atividade, para outras áreas, como por exemplo, o mercado de abastecimento. E quando a Bahia já esboçava uma reação a este impacto econômico gerado pelo fim do tráfico de cativos com a África, acabou sendo surpreendida com os pesados encargos da Guerra do Paraguai. Parte da mão-de-obra da área rural foi recrutada para as fileiras do exército, além disso, houve um esvaziamento dos cofres públicos e dos capitais disponíveis na praça, deslocados para os esforços de guerra. Todo o fluxo comercial baiano foi atingido. O comércio de cabotagem acabou agindo como uma válvula de escape para a incapacidade de colocação dos produtos baianos no mercado internacional, ao passo que a movimentação do comércio de longo curso passou por oscilações mais ou menos frequentes.

A movimentação das transações comerciais que caracterizaram o comércio de exportação baiano também se verificou nos movimentos comerciais de importação, porém, as flutuações são menos abruptas, o que sugere que as demandas de produtos importados, a capacidade de aquisição destes ou mesmo a necessidade premente dos produtos adquiridos pela importação, impunham à Província a manutenção do volume do comércio de importação. É que, apesar dos contratempos, a população da cidade não parava de crescer, atingindo 50.000 habitantes no princípio do século XIX, chegando a 108.138 habitantes em 1872, e 144.959 em 1890.

Ainda que muito limitados, os registros existentes apontam este crescimento constante da população da capital baiana. Realizado em 1759, o primeiro recenseamento registrou em toda a capitania 250.142 habitantes em 28.612 fogos, sem incluir crianças abaixo de sete anos, índios e integrantes das ordens religiosas. Salvador e Recôncavo concentravam então 103.096 almas (41,2% do total) em 15.097 fogos (52,8% do total); Em 1775 um novo recenseamento acusou 221.756 pessoas em toda a capitania, repartidas em 31.844 fogos; em 1779, tinha-se 277.025 almas;

No século XIX, um levantamento eclesiástico em 1805 contou 3,1 milhões de habitantes no Brasil, sendo 535 mil (17,2%) na Bahia177; entre 1814 e 1817, outro recenseamento avaliou a população baiana em 592.908 habitantes; em 1824 Adrin Balbi calculou a população da Bahia, incluindo Sergipe, em 858 mil habitantes, sendo 22,2% destes brancos, 1,4% índios, 15% negros e mulatos livres, 61,4% de negros e mulatos escravos; Em

177 Sobre os censos da Bahia no século XIX ver, MATTOSO, Kátia. Bahia no Século XIX – Uma Província no

82 1845 Millet e Saint Adolphe avaliaram a população da Província em 650 mil habitantes, e durante a guerra do Paraguai (1865-1870), Sebastião Ferreira Soares estimou 1,45 milhões de habitantes, dos quais 1,17 milhões eram livres, 280 mil escravos e 20 mil índios.

O primeiro censo oficial só ocorreu em 1872, e registrou 10.112.000 habitantes no Brasil, sendo 1.379.616 (13,6%) na Bahia. Dos quais 129.109 em Salvador e seu termo (incluindo os arredores), com 39,9% de brancos, 43% mulatos, 23,5% de negros e 2% caboclos.