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Os comércios de carne charqueada, e de carne verde

Parte da carne que abastecia o comércio baiano vinha de importações trazidas do Rio Grande do Sul e da região do rio da Prata, outra parte vinha do sertão são-franciscano. A pesquisadora Cleide Chaves analisou em sua dissertação de Mestrado, intitulada De um porto

a outro: A Bahia e o Prata (1850-1889), o comércio entre estas duas regiões através dos

117 comerciantes envolvidos253. Segundo Chaves, os tratados de comércio liberavam as águas platinas às embarcações brasileiras e beneficiavam a economia do Império, especialmente a Província do Rio Grande, com a isenção de impostos sobre o gado em pé vindos do Uruguai. Nutria-se a esperança de que os charqueadores e comerciantes pudessem suprir as demais Províncias, no entanto, pelo menos até finais do século XIX, o porto da Bahia foi abastecido de carne oriunda da Argentina, do Uruguai e do Rio Grande do Sul254.

Este comércio externo estava estruturado em cotações de câmbio, valor de frete, informes de preços, qualidade e quantidade existentes de produtos, que geralmente eram divulgados pelos periódicos e almanaques que circulavam comumente, além de serem negociados nas próprias casas comerciais. Estruturou-se um sistema organizado principalmente a partir da ingerência do capital inglês, tornando a libra esterlina a moeda principal envolvida nos negócios. No Uruguai havia permissão de circulação de moeda brasileira, além da libra inglesa. E com a criação do banco Mauá no Uruguai, a moeda brasileira passou a circular também nos demais países da bacia do Prata. Os comerciantes baianos encontraram então poucos obstáculos monetários para se instalarem nas casas de comércio e nos pontos de venda da região platina255.

A duração de uma viagem entre Salvador e Buenos Aires era em média 21 dias, sem contar com as paradas nos portos do Rio de Janeiro e do Rio Grande, sendo assim, com a possibilidade de durar até 40 dias. Com a embarcação a vapor, este tempo foi reduzido: de 3 a 20 dias, a depender das escalas256. Da Bahia partiam embarcações carregadas de farinha de mandioca, açúcar, aguardente, tabaco, sal e cacau, e retornavam com carregamento de carne, sebo, e couro, oriundos, principalmente, do Uruguai e da Argentina.

O mercado consumidor da carne de charque era principalmente voltado para os escravos e para a população pobre. A carne importada para o Brasil era desembarcada no Rio de Janeiro, Salvador e Recife, e a partir destes, espalhava-se para uma ampla rede de distribuição por demais províncias e pelo interior. Salvador abastecia boa parte de Aracaju e Maceió, além do seu próprio litoral, até Ilhéus e Caravelas, e também os sertões, através de tropeiros e caixeiros257. Os preços do produto variaram muito na segunda metade do século XIX, sofrendo com fatores internos e com as crises de superprodução. Na década de 1850, a

253

CHAVES. Op. Cit. P. 2001.

254

CHAVES. Op. Cit. P. 52.

255 Idem. P. 55. 256

SHWARTZ. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. 1530-1835. São Paulo: Cia das Letras, 1988. P. 161.

118 epidemia de Cólera Morbos na Argentina quase fechou os portos brasileiros para este comércio, e, evidentemente, colaborou para a elevação dos preços. O Rio Grande do Sul não atendia nem a terça parte do consumo de carne seca do Brasil, que excedia o consumo a mais de um milhão de arrobas por ano. Esta demanda era, portanto, muito dependente da região do Prata258.

Para o comercio com a Bahia, havia uma relação de equilíbrio entre o Rio Grande e os portos do rio da Prata, com uma tendência de preços mais baixos do charque platino, dado o próprio desenvolvimento das charqueadas, e maior domínio das técnicas de produção. Além do charque, o Rio Grande também se constituía em fornecedor de farinha para a Bahia, em períodos de crise.

A duração de viagem dos navios que ligavam Salvador à região do rio da Prata podia durar de 20 a 30 dias, partindo de Montevideo, sendo que nos mapas de entrada e saída das embarcações da Policia do Porto de Salvador, há registros que o Brigue Goa, consignado a Marinho e Cia, com 225 toneladas de carne, levou 54 dias259, e o iate português Novo São Lourenço, consignado a Costa e Filho e Cia, com 118 toneladas do mesmo produto, teria levado 84 dias260. Chama atenção o fato de que estes prazos que extrapolavam a média se deram em períodos que os comerciantes foram acusados de limitar a entrada do alimento, visando o controle dos preços.

Além da carne charqueada que era abastecida pelo comércio de cabotagem, havia a carne verde que era trazida dos sertões, uma vez que o gado foi, ao longo dos anos, e sob as ordens régias, tangido das zonas litorâneas para o interior da colônia, no intuito de evitar prejuízos às lavouras de cana. O gado de cria espalhou-se da Bahia ao estado de Minas Gerais, atravessou o rio São Francisco, chegou até Sergipe, Pernambuco, Piauí, Goiás, Maranhão e Ceará261. O transporte das boiadas que abasteciam a capital baiana era feito por meio de rotas que cortavam ou margeavam o Rio São Francisco, a partir de fazendas e currais, chegando até Feira de Santana.

Era trazido para a capital o gado proveniente do interior, especialmente do noroeste, da cidade de Jacobina e do médio São Francisco, ao norte ao longo do rio Itapicuru e Província de Sergipe, e de lugares mais remotos como as Províncias de Goiás e Piauí. Uma

258

CHAVES. Op. Cit. P. 65.

259 APEB. Mapas de saída e entrada de embarcações – Maço 3194-2, 13/11/1868. 260

APEB. Mapas de saída e entrada de embarcações – Maço 3194-3, 19/01/1876.

261

LOPES, Rodrigo Freitas. Nos currais do Matadouro Público. O abastecimento de carne verde em salvador no Século XIX. (1830 – 1873). Dissertação de Mestrado. FFCH-UFBa: Salvador, 2009. Pg. 19.

119 classificação feita em 1865 definiu as três principais áreas de criação de gados do sertão baiano:

Em cumprimento do que me determina Vossa excelência, em data de 31 de dezembro de 1864, passo a fazer as observações de que me sugerirão e a pratica de muitos anos no comercio de carnes verdes me tem mostrado; as terras productoras desta Província que se pode dividir em tres grandes zonas; são a primeira que chamarei de Sertão Baixo colocada no norte da Província, compreende as comarcas de Feira de Santa Anna, Inhambupe, Itapicuru, Geremoabo, Monte Santo e Jacobina; a segunda que chamarei Sertão Alto ou Vale do São Francisco, compreende as comarcas de Sento Sé, Vila da Barra de São Francisco e Urubu; e a terceira Zona chamarei de Caetité, colocada ao ocidente da Província compreende as comarcas de Rio de Contas e de Caetité262.

A feira da Vila da Barra de São Francisco recebia todo o gado de Goiás destinado a Salvador e ao Recôncavo baiano. A importância deste mercado de gado, bem como a de Morro do Chapéu como importante local de descanso e pastagem levou o governo Provincial a solicitar, em 1858, a construção de uma nova estrada ligando estes dois pontos. A intenção era reunir as grandes áreas de pastagens ao longo dos percursos dos rebanhos, até o registro em Feira de Santana, com todo o gado proveniente de Piauí e Goiás, que depois de registrado, abastecia a cidade da Bahia, bem como Cachoeira, Santo Amaro, Capoame a São João da Mata263. O superintendente da feira tinha a responsabilidade de supervisionar vários empregados, evitar fraudes e estabelecimento de monopólios. Podia inclusive ordenar prisão de quem fugisse as regras.

Os viajantes marchantes e agentes de gado partiam de Feira de Santana e seguiam em direção às vilas de Cachoeira e Santo Amaro, e margeavam a Baía de Todos os Santos até Salvador, pelas planícies de Cabrito e Pirajá, chegando ao Engenho da Conceição (Largo do Tanque), Fortaleza do Barbalho, até o matadouro localizado nas hortas de São Bento. Outro roteiro era por Alagoinhas, parada importante para a carne que vinha de Sergipe Del Rey, atravessando a bacia do Rio Itapicuru. Dependendo das condições de viagem, as boiadas que pastavam nas soltas de Morro do Chapéu encontravam as que desciam de Pernambuco, através das Vilas de Juazeiro e de Santo Antônio das Jacobinas, e tomavam a direção que margeava o rio Jacuípe até Feira de Santana264.

262

APB – Seção Colonial e Provincial. Presidência da Província/ abastecimento - carne / 1865 / maço 4630.

263

LOPES. Op. Cit. P. 24-25.

120 Com a construção da estrada Feira de Santana a Salvador, concluída em 1859, deu-se a infraestrutura necessária para a atividade de corte venda de carne nos talhos municipais, e o estabelecimento dos Currais do Conselho, onde os animais descansavam por oito dias, antes de serem destinados ao matadouro público. Os Currais do Conselho eram localizados nos limites da cidade, em Cabrito e Pirajá265.

No Matadouro, além do administrador e o escrevente, havia os responsáveis pelo trabalho braçal, que eram os curraleiros responsáveis pela condução do gado do pasto, para preparar os animais ao abate, e também pela condução da carne aos açougues, assim como couros e vísceras; os magarefes, que podiam chegar a cem, executavam matança e o corte, um trabalho considerado duro e sujo, geralmente executado por negros, muitos deles, africanos forros, e por sinal, há registros de que muitas vezes estes aproveitavam para roubar a carne oriunda do trabalho que desenvolviam. Trabalhavam sobre direção do capataz, que era indicado pela Câmara266. Assim, o estágio final do comércio da carne era nos açougues.

As dificuldades eram muito grandes nos caminhos terrestres, as viagens que partiam de Jacobina, se feitas sem paradas longas, duravam de nove até 15 dias. E a partir das províncias além do São Francisco até Feira de Santana, o tempo dobrava ou mesmo triplicava, forçando paradas estratégicas mais longas, para descanso dos bois e das tropas267. De acordo com Richard Graham, mesmo com tudo isso, nem todo gado chegava por terra. Em 1830, cerca de 40% do gado da cidade desembarcava na praia, em lotes de 23 a 50 cabeças, e em 1833, o ancoradouro de Água de Meninos foi designado para o desembarque de reses que partiam para o pasto, no entanto, muitas pessoas desobedeciam a isto desembarcando em outros pontos, vendendo a carne clandestinamente para fugir da cobrança de impostos268.

Além do flagelo das secas, também haviam os atoleiros formados durante os períodos das chuvas. Tudo isto remetia para a possibilidade de parte desta carne dar entrada na capital, pela via marítima, desviada por meio dos portos localizados ao longo do Recôncavo. Durante as secas de 1857/1860, a entrada de gado do São Francisco para Salvador deu-se de forma regular. Já as epidemias da década de 1850 são apontadas como causadoras da falta de carne em Salvador. Situação que se agravava ainda mais, pois nestes períodos, aumentou-se a procura pela carne verde, uma vez que os alimentos marinhos eram suspeitos de causarem

265 Idem. P. 43. 266

GRAHAM. Op. Cit. P. 182.

267

Idem, pg. 30.

121 contaminação por cólera269, o que fez com que o preço da carne disparasse, chegando ao consumidor a 3$840 e 4$480 a arroba270.