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Neste capítulo analisarei a ocorrência de negações e/ou desautorizações de formas fixas no corpus constituído pelas práticas discursivas dos Racionais MCs. Serão consideradas formas fixas todas as subclasses analisadas no capítulo 2.

Excluirei deste capítulo a enunciação dos provérbios com forma alterada, não cristalizada, uma vez que essa maneira especial de utilizar os provérbios já foi analisada no capítulo anterior e suas ocorrências constam da tabela elaborada e já analisada. Talvez, em outro funcionamento discursivo, esse tipo de citação proverbial pudesse ser considerado uma desproverbialização – ou uma desautorização de provérbio -, mas não é o caso aqui62.

Há mais de uma maneira, nesse posicionamento discursivo, de desautorizar as formas fixas e, por vezes, essas maneiras são marcas de funcionamentos discursivos diferentes. Nos itens a seguir, proponho uma divisão dos enunciados encontrados em grupos, dentro dos quais eles serão analisados.

Desautorizar provérbios não é, de modo algum, uma novidade ou exclusividade do rap nacional. Podemos encontrar exemplos de provérbios alterados (cf. Gatti 2007; 2008) em textos atuais e de outras épocas. Observando os jornais, revistas, blogs e material publicitário atuais, é possível concluir que há uma forte tendência de uso de provérbios alterados63.

3.2. “Captação” e “subversão” de provérbios

62 Um exemplo seria ―mais vale um na mão do que dois no sutiã‖, da canção ―Vira-vira‖ dos Mamonas

Assassinas, analisado por Gatti (2007, pp. 118-121).

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Grésillon e Maingeneau (1984) falando sobre ―o desvio de provérbios‖64, diferenciam as categorias ―captação‖ e ―subversão‖. Há dois tipos de captação: a captação do gênero proverbial e a captação de um provérbio atestado. Por captação do gênero entendem aqueles enunciados que aspiram à autoridade do provérbio e, por isso, tentam imitar seus traços formais65. Um exemplo desse esforço de captação vem dos slogans publicitários que, segundo os autores, aspirariam se tornar provérbios. Desse modo, ao invés de estarem ligados a um ―JE – Enunciador‖ (uma empresa, um produto, um partido) passariam a estar ligados a um ―ON – Enunciador‖ (uma verdade coletiva, imemorial, etc.)66.

Não discutirei amplamente aqui a afirmação dos autores de que ―ser provérbio (...) é o ideal do slogan‖ (p. 117)67. Apenas considero que tal análise não vale para alguns slogans em que não há o nome do produto explicitado, pois, se esses se ―desgrudarem‖ de seu ―JE-enunciador‖, a língua ganha mais um provérbio, mas a publicidade perde seu sentido. No Brasil, foi o que aconteceu com um slogan do produto Gelol, veiculado pela mídia na década de 1980. A campanha publicitária que originou tal slogan apresentava uma cenografia que comoveu a população na época68. Um pai, dormindo sozinho em uma cama (lembremos, o Brasil convivia com sua primeira geração de ―pais separados‖ – nossa lei do divórcio é de 1977), era acordado insistentemente por seu filho. Na cena seguinte, víamos o menino como jogador de um time de futebol, enquanto o pai se espremia em uma arquibancada com outra filha menor, debaixo de chuva e com outros pais e mães torcedores. Em um dado momento, o menino se machuca e é atendido pelo pai, que entra

64 A expressão em francês é ―Le détournement de proverbes‖ (p. 114). Apesar de eu estar traduzindo como

―desvio‖, isso não significa que haja, na teoria desses autores, uma visão pejorativa sobre essas formas não cristalizadas de enunciação proverbial. São formas ―desviantes‖ por não serem as formas canônicas, no sentido de que desviamos um rio para fazer um lago, por exemplo. Tanto não há nada de pejorativo que esses desvios, produtivos, podem ser ―captações‖ ou ―subversões‖.

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Nesse texto com Grésillon, Maingueneau fala em ―captação do gênero proverbial‖. Conforme expus no capítulo 1, Lysardo-Dias (2001) também postula a existência desse gênero, que só se realizaria dentro de outros. Considero que seja mais produtivo analisar esse material como o que busca exceder e estar fora (acima) de todos os gêneros, como um enunciado aforizado, conforme elaborado posteriormente por Maingueneau (2006b; 2007), e retomado no capítulo 4 desta tese.

66 O uso de ―JE‖ e ―ON‖ vem dos pronomes franceses para ―eu‖ e ―a gente‖, conforme já explicado no

capítulo 1 desta tese.

67 ―Être proverbe (...) c‘est bien l‘idéal du slogan‖ (p. 117) 68

correndo em campo e aplica gelol na contusão. O menino se levanta e faz o gol da vitória. A peça termina com uma voz em off: ―Não basta ser pai, tem que participar. Não basta ser remédio, tem que ser gelol.‖. Tal slogan ganhou o status de provérbio no Brasil, pelo menos no que diz respeito a ser considerado uma enunciação coletiva e não vinculada a um ―JE- enunciador‖, mas apenas sua primeira parte – que, aliás, já é uma estrutura completa, inclusive bipartida. Hoje em dia é comum ouvirmos tanto ―Não basta ser pai, tem que participar‖ quanto ―não basta ser mãe, tem que participar‖. Já a referência ao gelol sumiu. Poder-se-ia ponderar que o slogan foi ―mutilado‖ e que ele aspirava a provérbio uma vez completo. Sem dúvida. Talvez tenha faltado por parte dos publicitários perceber o quanto a primeira parte era aforizante e autônoma! De todo modo, trata-se de um caso a ser analisado.

Outro tipo de slogan que problematiza a afirmação de Gresillon e Maingueneau é bem exemplificado pelo ―bem estar bem‖, da Natura. Esse tipo de slogan não tem nada a ganhar desvinculando-se de sua origem, a empresa Natura, que constrói uma imagem de responsabilidade social e ambiental, procurando agregar um valor moralmente ―superior‖ àqueles que usam seus produtos (alguns enunciados subjacentes ao discurso da empresa, veiculado por esse slogan, poderiam ser, estereotipadamente: ―eu me cuido com Natura porque faz ‗bem estar bem‘. Faz bem para o planeta, porque a Natura é uma empresa bio- sustentável; faz bem para a sociedade, porque a Natura patrocina projetos sociais e busca a qualidade de vida de seus ‗colaboradores‘; faz bem para quem convive comigo, porque ‗só estando bem posso ser um bem para os outros‘‖). A menos que acreditemos que o slogan ―bem estar bem‖ tem por objetivo único ou principal ―construir um mundo melhor‖, esse slogan não aspira a ser provérbio, uma vez que ―desgrudar-se‖ de seu ―JE-enunciador‖ acabaria com sua importância para a empresa.

A captação de um provérbio atestado se dá quando um provérbio é tomado como base para uma enunciação posterior que o modifica formalmente (os autores dizem que quanto menos o modificar, mais bem sucedido será o desvio), mas sem que essa modificação pretenda uma outra orientação semântica ou discursiva, polemizando com a original. Pode ser que essa mudança apenas relegue para segundo plano o sentido do provérbio original, caso para o qual os autores dão como exemplo ―qui dore a bonne mine‖,

que poderia estar em um cartaz com corpos bronzeados em uma praia. Essa captação de um provérbio atestado se vale de uma semelhança formal com o provérbio ―qui dort dîne‖. No nível semântico, o sentido do provérbio original (algo que poderia ser traduzido como ―quem dorme janta‖, que pode ser glosado como ―dormir mata a fome‖) fica em segundo plano, mas não é negado pelo sentido da captação (algo que poderia ser traduzido como ―quem se bronzeia tem boa fisionomia‖).

Também pode ser que essa mudança de significante efetuada na captação de um provérbio atestado sugira uma semelhança de sentido entre o provérbio original e a captação. Para esses casos, os autores dão o exemplo ―Le chiens aboient, les Lee Cooper passent‖, em que o sentido original do provérbio ―os cães ladram e a caravana passa‖ é também requerido por sua captação: os cães podem ladrar à vontade, que quem estiver usando as roupas Lee Cooper vai passar, assim como a ―caravana‖.

O mecanismo de subversão dos provérbios também é dividido por Gresillon e Maingueneau em dois tipos: a subversão das condições genéricas e a subversão dos provérbios atestados. Segundo os autores, haveria duas maneiras de subverter provérbios: a lúdica e a militante. Essa divisão se torna problemática ao longo do desenvolvimento do texto dos próprios autores, pois, ao analisar o livro surrealista de Paul Élouard e Benjamin Péret (1925), dizem primeiramente que a subversão dos provérbios ali é lúdica, uma vez que tende ao absurdo. No entanto, depois consideram, apoiando-se em Greimas (1975[1970]), que se trata de uma recusa da autoridade e da lógica dos provérbios, constituindo-se, portanto, numa militância do surrealismo contra a enunciação de verdades absolutas. Portanto, como já demonstram os próprios autores que a propuseram, a divisão da subversão de provérbios em lúdica e militante não faz sentido, uma vez que não há texto fora do discurso e não há discurso fora das ideologias (se tomarmos como verdadeira a tese do próprio autor (Maingueneau, (2005 [1984]) sobre o ―primado do interdiscurso‖).

Sendo assim, cabe falar em provérbios subvertidos, mas não em subversões lúdicas ou militantes. A subversão das condições genéricas de um provérbio é descrita pelos autores como produzindo o absurdo, tomando um provérbio atestado e o desmontando enquanto gênero (modificando seus elementos formais característicos e também sua sentenciosidade).

Já a subversão de um provérbio atestado se dá por um mecanismo semelhante ao da captação, mas nesse caso a direção semântico-discursiva original do provérbio é contestada. O que Gatti (2007; 2008) chamou de ―provérbios alterados‖ frequentemente se encaixa nessa categoria de Gresillon e Maingueneau. Não por acaso, no corpus analisado por Gatti, por vezes esse tipo de enunciação aparece com o nome de ―provérbios corrigidos‖. São casos como ―gato escaldado morre‖; ―quem dá aos pobres, empresta, adeus‖ ou ―quem dá aos pobres paga o motel‖.