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1.2. REESCREVENDO A VULGATA: UMA DEFINIÇÃO POSITIVA DE PROVÉRBIO

1.2.1. O PROVÉRBIO ENQUANTO FRASE GENÉRICA

As frases genéricas tratam de uma situação ou categoria em termos gerais, não especificando os elementos dêiticos e nem a quem se referem. Não haverá, em uma frase genérica, nomes próprios, termos denominativos de lugares ou tempos específicos em que a frase seria válida. Essas frases representam uma realidade virtual, de natureza gnômica, isto é, preditiva e normativa, ao invés de incidental e contingente. Elas geram unidades textuais

16 Anscombre cita em inglês. Um provérbio equivalente em Português é ―Quem é rei nunca perde a

localmente autônomas, que só podem ser relacionadas indiretamente a uma situação de enunciação ou a um texto mais vasto.

Como frases genéricas, os provérbios autorizam inferências sobre situações encontradas que se ―encaixem‖ no quadro genérico enunciado por cada provérbio. Para Georges Kleiber (1989) as frases genéricas se dividem em três subgrupos: genéricas analíticas, genéricas tipificadoras a priori e genéricas tipificadoras locais.

As frases genéricas analíticas remetem a um grupo de indivíduos de uma classe e não toleram nenhum contra-exemplo. O exemplo de Kleiber para uma frase genérica analítica é ―as baleias são mamíferos‖.

Já as frases genéricas tipificadoras a priori se diferenciam das tipificadoras locais pelo critério da aceitabilidade da ―verdade‖ que a frase contém. As tipificadoras a priori são aquelas que são aceitas como verdadeiras pela comunidade linguística17, fazem parte dos estereótipos estabelecidos pela doxa vigente, como ―os carros têm quatro rodas‖ ou ―os gatos caçam ratos‖. Já as tipificadoras locais expressariam verdades pessoais, individuais, como ―os castores são afetuosos‖ ou ―as HQs são uma forma de cultura‖. Ambas as frases tipificadoras suportam exceções, portanto não são passíveis de deduções lógicas. Perrin (2000) diz que com elas estamos no campo da argumentação pura, pois não há como operar com a demonstração.

Para Perrin, é incontestável que os provérbios são frases tipificadoras e não analíticas, pois um contra-exemplo não invalida o provérbio. A descoberta de uma rosa sem espinhos não invalida o provérbio ―toda rosa tem espinho‖. Saber se são tipificadoras a priori ou locais é uma questão delicada, objeto de controvérsia entre Anscombre e Kleiber, conforme expõe Perrin em seu artigo. Enquanto Anscombre acredita que são tipificadoras a priori, porque associadas a uma verdade geral, a um ―ON-enunciador‖18

, Kleiber acredita que são tipificadoras locais.

Sendo unanimemente percebidos como uma crença consensual, compartilhada por toda uma comunidade linguística, os provérbios parecem, à primeira vista, fazer parte

17 Por ―comunidade linguística‖, estes autores entendem as pessoas que falam a mesma língua.

18 Trata-se do ―on‖ francês. Na teoria desses semanticistas, o sentido de ―ON-enunciador‖ seria o de um

sujeito indetrerminado, um ―SE-enunciador‖. A partir da Análise do Discurso, proponho que o O ON- enunciador seja reinterpretado como um enunciador coletivo.

das frases tipificadoras a priori. Para mostrar isso, Anscombre faz com eles o teste de transformá-los em negação. A negação de uma frase tipificadora local resulta em uma frase tipificadora local, uma negação descritiva: ―Os castores não são afetuosos‖. A negação de uma frase tipificadora a priori resulta em uma negação polêmica, que visa refutar uma evidência: ―Os castores não constroem barragens‖. Assim como os provérbios, as frases tipificadoras a priori não suportam uma negação descritiva (ela é vista como polêmica). Então a negação de um provérbio, como ―devagar se vai ao longe‖ seria ―devagar não se vai ao longe‖, o que não é percebido como uma frase tipificadora local, uma negação descritiva, e sim como uma afronta, uma negação de uma evidência, uma negação polêmica.

Mas os provérbios, diz Perrin seguindo Kleiber, em sua grande maioria, parecem querer afrontar uma crença consensual anterior, o que os aproximaria das frases tipificadoras locais, opiniões pessoais, não consensuais, não expressando a doxa. Ao dizer que ―de boas intenções o inferno está cheio‖, o enunciador do provérbio está negando um enunciador anterior, que associaria, através da lógica, as boas intenções às coisas boas, ao céu19. Associar as boas intenções ao inferno e, assim, desqualificá-las, vai de encontro ao que seria natural e lógico. De modo análogo, ―uma andorinha só não faz verão‖ tem uma estrutura que se contrapõe a uma conclusão que, segundo Perrin, seria lógica e corrente, de que, se a andorinha apareceu, já é verão. Já ―toda rosa tem espinhos‖ se contraporia à idéia de que a beleza é perfeita e se algo é belo não haverá defeitos. Perrin analisa outros provérbios, dentre eles ―Rien ne sert de courir, il faut partir à temps‖20

, que desmentiria uma enunciação anterior que diria que se a pessoa correr ela conseguirá cumprir seus horários.

19

A interpretação da enunciação pressuposta por esse provérbio que apresento aqui é diferente da apresentada por Perrin (2000: 72), que acredita que esse provérbio vai contra a idéia de que o inferno só teria coisas ruins. Embora não seja uma questão que influa na argumentação central, acho relevante assinalar minha diferença de análise: para mim, esse provérbio não desmente algo que seria natural pensar a respeito do inferno, e sim a respeito das boas intenções. Elas é que estão sendo desqualificadas, no sentido de que ―não bastam boas intenções‖, e não o inferno está sendo qualificado. No caso dos outros provérbios analisados no parágrafo, reproduzo aproximadamente as análises de Perrin.

20 A tradução seria aproximadamente ―Não adianta correr, é preciso sair a tempo‖, não conheço provérbio

Vistos por esse lado, os provérbios seriam tipificadores locais, conforme afirma Kleiber e com o que concorda Perrin. Sua força de ―verdade universal‖ viria não por ser uma frase tipificadora a priori, e sim pelo seu caráter de denominação. Para Kleiber (2000), os provérbios estão na confluência de duas categorias: as frases genéricas e as denominações. Portanto, a força de ―verdade universal‖ do provérbio viria de suas inúmeras repetições anteriores, por isso ele parece ser parte dos estereótipos consensuais. A esse respeito, Perrin repete a explicação de Kleiber, que ―os castores constroem barragens‖ é uma frase tipificadora a priori. Sua verdade é baseada na observação dos fatos. Já ―de boas intenções o inferno está cheio‖ é uma frase tipificadora local, sua verdade vem de sua repetição. Nas palavras de Kleiber, ―a adesão à verdade de ‗os castores constroem barragens‘ vem do conhecimento estereotípico de que os castores geralmente constroem barragens, enquanto que a adesão à verdade de um provérbio vem da aceitação de seu estatuto de denominação‖ (Kleiber, 1989: 245, apud Perrin, 2000: 73)21

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Como prova de que os provérbios não são frases tipificadoras a priori, Perrin apresenta casos em que dois provérbios apresentam verdades que vão em direção contrária: ―L‘habit ne fait pas le moine‖ e ―Il n‘y a pas de fumée sans feu‖. Enquanto o primeiro indicaria que devemos desconfiar das aparências, como o provérbio equivalente em português ―O hábito não faz o monge‖, o segundo iria na direção de não duvidar das evidências, como o nosso ―onde há fumaça, há fogo‖.

Ora, tudo nessa análise de Anscombre, Kleiber e Perrin a respeito das frases tipificadoras é estranho para o analista do discurso. Partindo de um olhar sobre a linguagem que vê os sentidos como produzidos historicamente, frutos de dissensos, disputas e polêmicas, não haveria como aceitar que o provérbio exprime ―a‖ verdade, ou ―o‖ consenso de uma ―comunidade linguística‖, se entendermos ―comunidade linguística‖, seguindo estes autores, como totalidade dos falantes de uma língua. Nada mais esperado para um analista do discurso que os choques entre os provérbios, como no caso analisado por Perrin, entre ―o hábito não faz o monge‖ e ―onde há fumaça, há fogo‖. Dois discursos contrários em jogo, um que ressalta o valor das aparências, do ser e parecer que é, e outro que ressalta o

21 ―L'adhésion à la vérité de 'Les castors construisent des barrages' provient de la connaissance stéréotypique

que les castors construisent généralement des barrages, alors que l'adhésion à la vérité d'un proverbe provient de l'acceptation de son statut de dénomination‖.

valor da essência, do que parece mas não é, ou não parece e é. Em nenhum dos dois está ―a verdade‖, verificável em alguma instância extra-linguística. Os dois têm sentido e se justificam em discursos, historicamente analisáveis. E podem também ocorrer na fala de uma mesma pessoa, até em uma mesma situação, afinal as pessoas são atravessadas pelos diferentes discursos.

Portanto, é inconcebível para um analista do discurso pensar que o provérbio não tem estatuto de tipificador a priori porque não expressa um consenso. Tal consenso entre todos os falantes não existe. O que existe são formas de apresentar enunciados como consensos, como verdades, como natureza, como lógica... Esses recursos estão, por exemplo, nas nominalizações – ao dizer ―O sucesso do governo Lula‖ estou dando como fato que esse sucesso existe e é ―palpável‖ –, nos pré-construídos – ao dizer ―Finalmente um presidente do Brasil não se curva aos interesses dos bancos internacionais‖ estou dando como fato que os presidentes anteriores se curvavam e que isso foi ruim para o país -, através de argumentos, etc. Uma das formas de apresentar um enunciado como consenso é colocá-lo na forma de provérbio, o que os publicitários criadores de slogans já perceberam há algum tempo.

Por outro lado, não ser consenso não quer absolutamente dizer que é opinião individual do locutor, como são consideradas as frases tipificadoras locais. Pode ser a expressão de um discurso minoritário, ou que é sentido como tal. De todo modo, ao proferir uma frase genérica (sem marcação de sujeito, tempo ou espaço específico), o enunciador põe em jogo uma associação estereotípica. Dizer ―os castores são amáveis‖ e não ―um castor que conheci no zoológico parecia amável‖ é postular algo em tom de verdade a respeito dos castores. Indo para terrenos mais ideologicamente marcados, dizer que ―as HQs são uma forma de cultura‖ coloca o enunciador como adepto de um discurso não elitista quanto ao que é cultura válida, provavelmente alguém aberto com relação ao conceito de arte. Mas de modo algum se pode dizer que esse enunciador ―criou‖ essa posição e está sozinho nela! Seria não perceber as forças que movem a linguagem e que, dialeticamente, ela move. Seria, como Pêcheux alertou, não ―compreender como aquilo que hoje é tendencialmente ‗a mesma língua‘, no sentido linguístico desse termo, autoriza

funcionamentos de ‗vocabulário-sintaxe‘ e de ‗raciocínios‘ antagonistas‖ (PÊCHEUX, 1997 [1975]: 26).

A constatação de Kleiber e Perrin de que a maioria dos provérbios se apresenta como contraponto a um consenso ou a uma conclusão que poderia parecer óbvia ou lógica é bastante interessante. Mas, ao contrário do que concluem os autores, de que por isso fica provado que o provérbio não exprime uma verdade consensual e sim é uma frase tipificadora local, que tira sua força de verdade de seu caráter de denominação, enquanto analista do discurso, minha hipótese é outra. Apresentando-se como a voz da experiência e com caráter didático, educativo e disciplinador, o provérbio opera como se corrigisse uma crença errônea, mais fácil, mais imediata da população. Quem diz um provérbio frequentemente se coloca na posição de corrigir ou orientar, e quem corrige ou orienta opera contra um discurso anterior. Esse discurso anterior que será negado pelo provérbio é apresentado como o ―caminho dos preguiçosos‖, daqueles que se deixam levar pelas conclusões fáceis. Seguindo essa via de interpretação, ―de boas intenções o inferno está cheio‖ alertaria aquele que acha que as intenções bastam, que tem a postura ingênua de valorizar o que só é pensado e não é feito. Cabe ressaltar que esse provérbio se choca com um outro, ―o que vale é a intenção‖, que, por sua vez se contrapõe a um discurso anterior que só veria valor nas ações, nos resultados. São, portanto, sentidos opostos, discursos contrários, que polemizam em nossa sociedade.

Já um provérbio como ―O hábito não faz o monge‖ se contrapõe ao discurso de que as aparências bastam, dizendo que elas não bastam. Esse provérbio poderia ter um valor argumentativo se aparecesse junto a enunciados, por exemplo, denunciando um tipo de político que foi ligado à ditadura e hoje se diz paladino da democracia, mas não tem práticas democráticas. Ou poderia aparecer em um discurso ligado ao rap nacional, denunciando os chamados ―falsos manos‖, que acham que basta colocar roupas largas e andar gingando para ser um rapper. Aliás, Mano Brown canta, em ―Eu sou 157‖: ―Eu só confio em mim, mais ninguém, cê me entende?/ Falar gíria bem até papagaio aprende‖. ―Falar gíria bem até papagaio aprende‖, um enunciado de sentido equivalente a ―o hábito não faz o monge‖, contrapõe-se a um discurso anterior, o de que quem ―fala gíria‖ é um ―mano‖ ou veste um ―hábito‖ é um ―monge‖. No entanto, de modo algum essa

contraposição caracteriza uma ―frase tipificadora local‖, como a entendem Kleiber e Perrin, portadora de uma verdade individual. Esse enunciado faz parte, isso sim, de um outro discurso, o de que é preciso ―ser‖, não basta ―parecer‖. Talvez até esse seja o discurso hegemônico.

Então, o que interessa para o analista do discurso não é se a frase expressa ou não um consenso, mesmo porque isso seria inverificável e a disputa é historicamente constitutiva da linguagem. É preciso ver se ela se apresenta como consenso, ou como verdade acima das comuns, e que efeitos de sentido isso pode provocar, ou se se apresenta como dissenso, o que também pode produzir outros efeitos de sentido, talvez condizentes com um discurso que se diz dos excluídos, dos marginalizados, dos que protestam. Um discurso como o dos rappers brasileiros, por exemplo, que se dizem ―efeito colateral que o seu sistema fez‖22

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Quando os pesquisadores do campo paremiológico estabelecem a diferença entre as frases tipificadoras a priori e as frases tipificadoras locais, estão, de algum modo, dividindo o ―mundo real‖ e o ―mundo da linguagem‖. Dizer que ―os castores constroem barragens‖ é uma verdade que se apóia no que todo mundo vê, o que faz dela um tipificador a priori, por ser consenso, e que ―os castores são amáveis‖ é uma opinião individual que se apóia numa percepção ou experiência do locutor, é simplificar bastante a relação entre mente, mundo e palavra.

Mesmo que não voltem a Frege em sua verificação da referência na existência no ―mundo real‖, os autores parecem substituir essa verificação no mundo real por um consenso da ―comunidade linguística‖23

, que também não explicam como se verificaria. Ao dizer que provérbios como ―toda rosa tem espinhos‖ contrariam o estereótipo de que a beleza é perfeita, é preciso ver que o discurso que fortalecem também constitui um estereótipo, que circula também em outros provérbios como ―errar é humano‖ ou ―ninguém é perfeito‖. É impossível para um analista do discurso separar o ―mundo real‖ e o ―mundo da linguagem‖.

22

―Capítulo 4, versículo 3‖. Racionais MCs (1997).

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Mas é interessante ver que a maioria dos provérbios se apresenta como se contrapondo a um consenso, remando contra a maré. Combina com o estereótipo da função dos provérbios na sociedade, a de aconselhar ou repreender. A educação que iluminaria o caminho dos aprendizes – todos os que os enunciadores de provérbio julgam necessitar ouvir um provérbio -, tirando-os das conclusões fáceis e apressadas.