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1.2. REESCREVENDO A VULGATA: UMA DEFINIÇÃO POSITIVA DE PROVÉRBIO

1.2.4. SOBRE O SENTIDO DO PROVÉRBIO

A relação semântica de implicação que o provérbio encerraria também é tema do artigo de Kleiber (2000). Para esse autor, o provérbio, enquanto frase genérica, exprime um estado de coisas geral e habitual, a respeito de assuntos humanos. Essa necessidade de ser referente a assuntos humanos leva à postulação, pela vulgata, do caráter metafórico do provérbio. A metáfora realmente é recurso para o sentido denominativo do provérbio, desde que o sentido composicional não utilize palavras e situações humanas. Ou seja, ―filho de peixe, peixinho é‖ não fala de peixes, e sim de um comportamento humano. ―Vaso ruim não quebra‖ não fala de vasos, e sim do caráter das pessoas. Kleiber destaca que a forma do ditado é semelhante à do provérbio, com a diferença apenas no traço [+/- H], isto é, o provérbio é [+H], refere-se à situação humana e o ditado é [- H].

Tal distinção traçada por esse autor leva Lysardo-Dias (2001) a dizer que a diferença entre o provérbio e o ditado é que o primeiro é metafórico e o segundo composicional27. A meu ver, não se trata disso. O provérbio metafórico ocorre quando o sentido composicional seria [-H]. No entanto, quando o sentido composicional já é [+H], não há propriamente metáfora. Por exemplo, no provérbio ―A justiça tarda, mas não falha‖ não há metáfora, talvez haja sinédoque28 – o que, aliás, se relaciona à genericidade.

26 Gresillon e Maingueneau (1984) expõe uma situação hipotética semelhante: ―Suponhamos que em uma

discussão entre cristãos, alguém enuncia, com uma entoação específica, uma frase de Cristo, sem indicar a fonte, mas apostando que ela será reconhecida (nos dois sentidos da palavra) por seus alocutários.‖ [―Supposons qu‘au cours d‘une discussion entre chrétiens quelqu‘un énonce avec une intonation spécifique une phrase du Christ, sans indiquer la source mais en pensant bien qu‘elle sera reconue (aux deux sens du mot) par ses allocutaires.‖] (p. 114).

27 Greimas (1975 [1970]) também havia postulado esse traço como a diferença entre provérbios e ditados.

Gatti (2008) se baseia nessa distinção de Greimas. Já Obelkevich (1996[1985]), em uma análise com a qual concordo, não considera a metaforicidade como característica necessária ou distintiva do provérbio, e dá como exemplo o provérbio ―Absences makes the heart grow founder‖ (p. 45).

Outra ressalva que, a meu ver, poderia ser feita a respeito da distinção [+/- H] é que os ditados, por exemplo os meteorológicos, não dizem respeito ao clima em si, mas à relação que o homem terá com esse clima. Por isso, os ditados meteorológicos são muitas vezes considerados agrícolas, e estão em desuso nos centros urbanos. Então, considero que seria mais exato dizer que o traço [+/- H] diz respeito a uma conduta humana e não a uma situação humana.

Para Kleiber, o conteúdo semântico do provérbio é implicativo, isto é, o provérbio diz respeito a uma ação ou comportamento humanos que levam a uma consequência ou a uma reação. A questão seria relacionar como o triplo estatuto do provérbio (seu caráter polilexical (frástico), denominativo e sua genericidade) se ligam com o sentido implicativo. Os provérbios têm um sentido próprio? Apesar da heterogeneidade da categoria, que poderia dar margem às abordagens ditas ―pessimistas‖, Kleiber acredita que sim. Afinal, há uma competência semântica (e também formal, como mostra Anscombre) para identificar o que é e o que não é provérbio, e isso é possível ser feito à parte de qualquer contexto.

Alguns autores, como Christine Michaux (1998; 1999) consideram uma análise puramente linguística muito limitada para a descrição do provérbio, pois uma descrição semântica não alcança sua dimensão discursiva. No entanto, julgo que uma descrição formal do provérbio não é incompatível com uma análise discursiva, pelo contrário, ela é até necessária. Certamente considero relevante verificar o funcionamento proverbial em discursos específicos, como farei nesta tese com o rap nacional, mas penso ser possível caracterizar, ao menos parcialmente, o provérbio independentemente de seu funcionamento em discursos específicos, como se faz com a nominalização ou como Jacqueline Authier- Revuz fez a respeito da heterogeneidade mostrada, estudo que, tenho quase certeza, não terá sua validade negada por nenhum analista do discurso.

O caráter semântico implicativo do provérbio, conforme caracterizado por Kleiber, postula que os provérbios podem ser glosados assim: se um homem é envolvido em determinada situação, estado ou processo, então ele estará, por consequência, nesta outra determinada situação. Vejamos como o caráter implicativo do provérbio se dá em alguns exemplos do português, utilizando os princípios de Kleiber para analisar três

provérbios conhecidos: ―Quem tem telhado de vidro não joga pedra no vizinho‖ diz que se a pessoa tem algum defeito ou fragilidade (―telhado de vidro‖) por consequência não deve apontar os defeitos e fragilidades (―joga pedra‖) dos outros (―no vizinho‖); ―Jamais vencerá a luta quem se puser dos dois lados‖ diz que, se uma pessoa não define em qual lado está em uma disputa, consequentemente não tem chance de vencer essa disputa; ―Macaco velho não mete a mão em cumbuca‖ diz que, se a pessoa é experiente (―macaco velho‖), consequentemente não cairá em armadilhas (esse provérbio evoca uma fábula segundo a qual um macaco meteu a mão em uma cumbuca para pegar a comida que estava dentro dela e depois ficou com a mão presa, pois não queria soltar a comida, mas a mão fechada não passava pela boca da cumbuca). Nas palavras de Kleiber:

A referência virtual (Milner, 1978) dos provérbios, isto é, as situações às quais ele pode convir, são uma constante referencial que responde à estruturação semântica proposta para definir o sentido próprio à categoria parêmica: qualquer que seja o provérbio, quando elencamos uma situação particular destinada a ilustrar seu sentido ou mostrar em que caso ele é pertinente ou pode ser empregado, essa situação se deixa sempre decompor em uma parte que coloca em relevo um ou os homens em tal ou tal circunstância e uma segunda parte que é apresentada como sendo ou podendo ser a consequência da primeira.29 (p. 53)

Portanto, com base no conceito de implicação de Kleiber, concluo que o caráter implicativo do provérbio leva a que ele seja uma espécie de preleção, aviso, quando enunciado antes da implicação ocorrer, e uma espécie de explicação e esclarecimento, quando enunciado depois da implicação ocorrer.

Retomando a questão da metaforicidade do provérbio, notemos que, dos três provérbios analisados acima, apenas o primeiro e o último têm o sentido denominativo metafórico, pois seus sentidos composicionais falam de telhados e macacos. O segundo, que fala de um comportamento humano (posicionar-se em uma luta), não tem

29

―La référence virtuelle (Milner, 1978) des proverbes, c‘est-à-dire les situations auxquelles ils peuvent convenir, font apparaître une constante référentielle qui répond à la structuration sémantique proposée pour définir le sens propre à la catégorie parémique: quel que soit le proverbe, lorsqu‘on avance une situation particulière destinée à ilustrer son sens ou montrer dans quel cas il est pertinent ou peut s‘employer, cette situation se laisse toujours décomposer en une partie qui met em avant um ou des hommes dans telle ou telle circonstance et une autre partie qui est présentée comme étant ou pouvant être la conséquence de la première. (p. 53)

necessariamente o sentido metafórico, a menos que postulemos que a ―luta‖ em questão não é uma guerra ou batalha, e sim as pelejas do dia-a-dia. Mas o sentido de luta não é restrito a guerras, e as lutas do dia-a-dia, situações em que esse provérbio normalmente é empregado, também são lutas.

O exemplo analisado por Kleiber, ―Qui ame bien, châtie bien‖ é parafraseado, ressaltando seu caráter implicativo, como: ―a propósito dos homens, se eles amam bem, eles castigam bem‖30

(p. 49). Também aqui não há metáforas. Através desse exemplo e dessa paráfrase, o autor deixa claro que o sentido implicativo do provérbio não funciona como um predicado atribuído aos homens, e sim como uma situação geral e generalizante. Portanto, ―os provérbios são frases genéricas em que o conteúdo semântico corresponde sempre a uma implicação‖31 (p. 49). Para o autor, o sentido implicativo, que é inferido, é o molde semântico do provérbio. Para uma frase genérica poder se proverbializar, é preciso que haja possibilidade de ser [H+] e de ser implicativa.

Finalizando seu artigo, Kleiber lança a hipótese de que o sentido implicativo do provérbio pode ser um hiperônimo de seu sentido composicional, que Kleiber chama de literal. Caberia discutir qual o ―sentido literal‖ de um provérbio. Baseando-me nas análises de Possenti (2002b), o sentido literal de um provérbio poderia ser o denominativo (que é o mais frequente). O sentido composicional, para um provérbio, é aquele que tem que ser recuperado, o que implica uma desproverbialização, através de uma desopacificação do sentido composicional latente. Portanto, embora os enunciadores digam ―literalmente‖, quando vão desproverbializar um provérbio com intenções humorísticas (cf. item 1.2.2), tecnicamente esse poderia não ser o sentido literal.

Desviando-nos dessa discussão sobre sentido literal, mas assinalando que é tema de menos debates do que mereceria, examinemos a proposta de que o sentido implicativo denominativo do provérbio é um hiperônimo para seu sentido implicativo composicional. O esquema funcionaria melhor para os provérbios não-metafóricos, ou seja,

30

―À propos des hommes, s'ils aiment bien, ils châtient bien‖ (p.49).

31

―les proverbes sont des phrases génériques dont le contenu sémantique correspond toujours à une implication‖(p. 49).

em que o sentido composicional já é [+H], como ―Casa de ferreiro, espeto de pau‖32, cujo sentido composicional seria hipônimo do seguinte hiperônimo: os saberes profissionais ou habilidades de uma pessoa normalmente não são empregados em sua própria casa ou entorno. Nos provérbios metafóricos – cujo sentido composicional é [-H] -, há um passo a mais nesse processo. Por exemplo, ―É de pequenino que se torce o pepino‖, passa por uma interpretação metafórica para chegar a seu sentido denominativo. É preciso que a interpretação seja [+H] e, portanto, não estamos falando de pepinos e sim de crianças. O sentido implicativo do hiperônimo seria algo como: é preciso educar (formar, moldar) o caráter da criança desde cedo.

Kleiber sugere que, através da hipótese da hipo/hiperonímia, dois caminhos se abrem no campo paremiológico e restam sugeridos: investigar por que as situações hiperonímicas, apesar de conhecidas, justificam que haja sua denominação através do sentido implicativo composicional do provérbio; e verificar como as situações hiponímicas tem um papel de fiadoras da verdade, na medida em que correspondem a uma ―verdade universal‖ – nas palavras de Kleiber – enquanto as situações hiperonímicas sugeridas têm apenas um estatuto de ―geralmente verdadeiro‖. O segundo caminho a seguir pode ser uma boa resposta para a dúvida levantada pelo primeiro.