4. PRINCÍPIOS JURÍDICOS E AS QUESTÕES SUSCITADAS PELA LE
4.1.3 Nemo tenetur se detegere no ordenamento jurídico brasileiro
O direito ao silêncio encontra-se proclamado no Art. 5º, inciso LXIII, da Carta Constitucional, motivo por que “o sistema interno não pode atribuir ao seu exercício qualquer prejuízo”. Tal direito, todavia, apresenta-se como uma vertente de uma garantia mais ampla, consubstanciada na garantia nemo tenetur se detegere, a qual garante que “o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória de acusação”81.
Além disso, o princípio em tela encontra-se encartado nos seguintes diplomas internacionais que foram incorporados ao direito brasileiro, quais sejam: a) Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966); b) Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica). Nos tópicos seguintes anali-
77
QUEIJO, op. cit., p. 5
78 COUCEIRO, op. cit., p. 41. 79 Ibidem, p. 42.
80
Ibidem, p. 46.
81 LOPES JUNIOR, Aury. Sistema de investigação preliminar no Processo Penal. 2. ed. Rio de Janeiro:
sar-se-á o status constitucional da garantia, bem como a incorporação dos tratados internacionais ao direito pátrio.
4.1.3.1 Status constitucional e tratados internacionais incorporados ao direito nacio- nal
A respeito da hierarquia normativa dos tratados internacionais que versem sobre direito fundamental, o Art. 5º, § 2º, da Carta Constitucional82 nos traz amplos debates. Parte da doutrina afirma que os diplomas incorporados ao direito brasileiro possuem hierarquia de lei ordinária federal; outra corrente se posiciona a favor da tese que tais dispositivos estão acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição (norma supralegal); por outro turno, doutrina vanguardista entende que os tratados internacionais que discorrem sobre direitos humanos gozam de natureza constitu- cional83.
No Brasil, a teoria que admite os tratados no ordenamento jurídico pátrio com hierarquia infraconstitucional foi pacificada na jurisprudência, a partir de 1977, com o julgamento pelo STF do Recurso Extraordinário 80.004.84. Na situação o STF enten-
deu que todos os tratados internacionais estariam subordinados hierarquicamente à Constituição federal.
No entanto, ao julgar o Recurso Extraordinário 343.703-1/2008, o Ministro Gilmar Mendes, de acordo com seu voto, proferiu que tais tratados contam com sta-
tus de Direito supralegal, conforme se infere a seguir:
82 CF, Art. 5º, § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 27 abr. 2013)
83 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2003. p.
61-62.
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CONVENÇÃO DE GENÉBRA, LEI UNIFORME SOBRE LETRAS DE CÂMBIO E NOTAS PROMISSÓ- RIAS - AVAL APOSTO A NOTA PROMISSÓRIA NÃO REGISTRADA NO PRAZO LEGAL - IMPOSSIBI- LIDADE DE SER O AVALISTA ACIONADO, MESMO PELAS VIAS ORDINÁRIAS. VALIDADE DO DECRETO-LEI Nº 427, DE 22.01.1969.
Embora a convenção de genébra que previu uma lei uniforme sobre letras de câmbio e notas promissórias tenha aplicabilidade no direito interno brasileiro, não se sobrepõe ela às leis do país, disso decorrendo a constituciona- lidade e consequente validade do dec-lei nº 427/69, que institui o registro obrigatório da nota promissória em repartição fazendária, sob pena de nulidade do título. Sendo o aval um instituto do direito cambiário, inexistente será ele se reconhecida a nulidade do título cambial a que foi aposto. Recurso extraordinário conhecido e provi- do.STF RE 80.004 SE. Relator: Min. Xavier de Albuquerque. Julgado em 31/05/1977.
PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS IN- TERNACIONAIS SOBRE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDE- RAL DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIRIETOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍ- DICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais
sobre direitos humanos lhes reserva um lugar específico no ordena- mento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legis- lação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de
direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infra- constitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei nº 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002)85
Desse modo a prisão civil do depositário infiel (art. 5º, LXVII da Constituição Federal) não foi revogada por referidos pactos, mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucio- nal que disciplina a matéria, sob o seguinte argumento:
Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos interna- cionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja confli- tante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 262 do Novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002), que reproduz dis- posição idêntica ao art. 1287 do Código Civil de 1916. Enfim, desde a ade- são do Brasil, ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polí- ticos (art. 11) e à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão ci- vil do depositário infiel. De qualquer forma, o legislador constitucional não fi- ca impedido de submeter o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, além de outros tratados de direitos humanos, ao procedimento especial de aprovação previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição, tal como de- finido pela EC n° 45/2004, conferindo-lhes status de emenda constitucio- nal.86
Couceiro87, entretanto, defende que art. 5º, § 2º da Carta Constitucional pro- porciona ao ordenamento jurídico pátrio uma “cláusula de abertura”, que garante natureza constitucional aos tratados internacionais que versem sobre direitos fun- damentais, desde que ratificados pelo Brasil.
85 STF – RE 343.703-1/2008. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgado em 2008. (g.n) 86
STF – RE 343.703-1/2008. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgado em 2008. (g.n)
87 COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: Revista dos Tribu-
Maria Elizabeth Queijo88, no mesmo viés, afirma que devido à proeminência
constitucional conferida aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana, mostra-se necessário afiançar hierarquia constitucional aos tratados internacionais que tratam de direitos fundamentais.
Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho89, em igual sentido, avalizam a tese de identidade constitucional às
convenções e aos pactos internacionais que tratem de direitos humanos. Assim, concluem acerca do art. 5º, § 2º, da Carta Magna como pano de fundo da Conven- ção Americana de Direitos Humanos:
[...] todas as garantias processuais penais da Convenção Americana inte- gram, hoje, o sistema constitucional brasileiro, tendo o mesmo nível hierár- quico das normas inscritas na Lei Maior. Isto quer dizer que as garantias constitucionais e as da Convenção Americana interagem e sem completam; e, na hipótese de uma ser mais ampla que outra, prevalecerá a que melhor assegure os direitos fundamentais.
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, ratificado pelo Brasil em 1992, apresenta dentre os direitos garantidos à pessoa acusada o de “não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada”, em seu art. 14, §3º, alínea “g”. Ao realizar a exegese do dispositivo supracitado, observa-se certa restrição, tendo em vista o termo específico “pessoa acusada”.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San Jo- se da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 1992, por sua vez, confere extensão mais ampla ao nemo tenetur se detegere em seu art. 8º, § 2º, alínea “g”:
Artigo 8º - Garantias judiciais [...]
§ 2º Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua ino- cência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o pro-
cesso, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes ga- rantias mínimas:
[...]
g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; (g.n.)
88
QUEIJO op. cit. p. 64.
89 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As
Conforme se denota do excerto grifado, a Convenção Americana de Direitos Humanos mostrou-se mais ampla em relação aos beneficiários da garantia a não au- toincriminação. O pacto fala em direitos a “toda pessoa acusada”, já a convenção afirma que “toda pessoa tem direito”. Dessa forma, aplicando-se a regra mais aberta, “a garantia abrange todas as pessoas que participam da instrução do processo penal (não só o acusado, mas também a vítima, o querelante, as testemunhas e o perito)” 90
4.1.4 Advertência quanto à garantia e à inexistência do dever de colaborar em sede