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As boas vindas neste existir

Foram de enxovais de qualidade primeira

Juntamente com o fervor sentimental que me cercava. Aos cinco anos já percebia o meu favoritismo. Meus amiguinhos não tinham, mas eu sempre tinha. Com a chegada da revolução tecnológica do século 20 Eu tinha tudo o que desejava meu espírito.

Mas como um passe de mágica mal feita, Tudo foi definhando.

Perguntei aos meus pais o que estava acontecendo. A resposta foi singular aos dois.

Minha mãe falou que estava velha de mais para continuar sendo uma puta. Meu pai em lágrimas expressou-se dizendo: 20 anos de cadeira!

O trabalho literário de Joker Índio é altamente irreverente e irônico com relação ao tema da constituição familiar, suas hipocrisias e contradições. A literatura, entretanto, é um conceito que gera muita discussão no meio acadêmico e artístico, e, devido a isso, necessita ser pensado com profundidade para que se possa entender a produção em prosa e em poesia deste artista. Não à toa, muitos trabalhos já foram dedicados a tentar explicar a literatura, sem que, necessariamente, tenham chegado a um consenso. Todavia, tal situação não impede que se possam desenvolver reflexões acerca dos trabalhos literários, ou que não se possa empreender a tentativa de uma definição, mesmo que temporária, pautada, principalmente, no estudo da literatura não apenas como produção artística, mas também, enquanto fonte para a escrita da história.

A título de explicação inicial, a literatura foi compreendida de forma diferente ao longo da história. Em um primeiro momento, este termo significava o “ensino das primeiras letras”, depois, no decorrer dos anos, se tornou a “arte das belas letras”, até chegar a se tornar “arte literária” (FERREIRA, 2017, p. 65). Em meado do século XIX, o conceito de literatura foi ampliado, fato que o permitiu comportar, tanto os textos poéticos, quanto “todas as expressões escritas, mesmos as científicas e filosóficas” (MASSAUD, apud, FERREIRA, 2017, p. 65). Este esgarçamento do tema passou a exigir dos pesquisadores a busca por estabelecer fronteiras mais precisas.

Na busca por definição, alguns teóricos retomaram textos de Aristóteles e passaram a se utilizar do conceito de mimesis para, com isso, considerar a obra literária uma representação ou imitação da realidade. Aliado a tal conceito, os românticos, no século XIX, passaram a entender a literatura, e o próprio artista, como capazes de criar novos mundos, novas realidades ainda não imaginadas ou vistas (FERREIRA, 2017). Outra contribuição bastante profícua para o entendimento da literatura vem a ser os esforços perpetrados por linguistas no século XIX. Em seus trabalhos, surge o conceito de literalidade e, desta forma, mais do que representar a realidade e “criar mundos utópicos”, a obra literária também passaria a ser entendida por uma linguagem própria, se diferenciando das outras modalidades de escrita a partir da “utilização de signos polivalentes, isto é, por metáforas que ‘representem a realidade, à semelhança de todo signo, mas representam-na deformadamente” (MASSAUD, apud, FERREIRA, 2015, p. 66).

Em meio a todas estas características próprias da literatura, também se encontra a ideia de que esta não produz uma referência objetiva e direta sobre a realidade, mas sim, produz um conteúdo ficcional que pode, mantendo determinadas proporções, permitir a reflexão sobre a

realidade na qual determinada obra literária foi escrita. Existe também um profundo debate acerca da possibilidade do discurso científico compor a narrativa ficcional como ocorreu no trabalho de Euclides da Cunha em “Os sertões”, porém, apesar de se considerar a hibridez da obra “há certo consenso de que os recursos de linguagem científica imperam sobre os demais” (FERREIRA, 2015, p. 66). Tal constatação pode remeter ao fato de que os escritores, enquanto leitores críticos da realidade em que vivem, também desenvolvem obras literárias no diálogo com posicionamentos políticos, ideológicos e filosóficos, afinal, não se encontram isolados do mundo, mas influenciando e sendo influenciados por este.

Joker Índio, enquanto poeta, não podia aparta-se por completo de suas experiências pessoais para criar realidades completamente ficcionais nas quais habitariam seus eulíricos. Na direção contrária, o que consigo ler, apesar de todo o ambiente ficcional que se faz presente em cada poema ou prosa, vem a ser a forte presença de sua vivência e visão punk do mundo. A filosofia niilista e anarquista, além da realidade familiar conturbada que teve desde bem jovem, permitiu-lhe materializar em poemas as dores que viu e viveu. A pobreza econômica, a violência no meio familiar, os abusos advindos de quem professava a virtude e fé religiosa, a vivência na cena anarco-punk, a descrença nos valores morais e religiosas, dentre uma série de outras coisas, tornaram-se o concreto sobre o qual o poeta ergueu sua literatura.

No poema “Eterno Amor”, a vida conjugal é vista a partir de suas imperfeições, da fragilidade humana frente ao tempo e de forma irônica. Não há em seu poema a preocupação em idealizar o amor e enfeita-lo com adjetivos bonitos, pois, o que se vê é a alusão ao corpo humano se esvanecendo com o passar do tempo, entregue aos vícios, enchendo-se de varizes, pés de galinha, queda dos dentes, menopausa, perda de libido e disfunção erétil, num caminho de mazelas e fragilidades humanas que se direciona para o fim com um ataque cardíaco. A beleza com que o amor sempre é tratado e a ideia de uma eternidade é contraposta por uma construção metafórica da noção irreal de um eterno amor, com a efemeridade da vida que deixa de existir no último pulsar do coração humano.

Em seu niilismo, o poeta nega a fé numa esperançosa transcendência espiritual, assim como, nega a artificial beleza com que o amor é apresentado, sem aquilo que há de mais real e comum na cotidianidade da vida conjugal: a perda de interesse de um pelo outro, num caminho sem volta que vai fortalecendo ao passo em que o corpo humano segue morrendo aos poucos dia após dia, ano após ano.

Na mesma direção em que Joker Índio compõe “Eterno Amor”, também se pode ler o deboche e a ironia com relação à instituição familiar no poema intitulado “Vai nessa criança”. Neste trabalho, um cenário de harmonia é construído num primeiro momento para mostrar os privilégios sociais que algumas pessoas têm. O poema é em primeira pessoa, e o eulírico recorda de um passado pomposo, desde quando veio ao mundo num ambiente de festa e fartura, até o carinho de pais preocupados em dar amor e conforto ao filho. No entanto, toda esta atmosfera de paz e amor escondia uma realidade cruel e pesada, fardo que os pais carregavam para poupar o filho da realidade. É apresento um desfecho inusitado: a prostituição da mãe e a vida de crimes do pai.

A realidade vista e vivida pelo poeta desde a sua infância, até o seu despertar crítico para o mundo quando conheceu e passou viver a cena anarco-punk o fez entender o mundo sem idealizações, nem a expectativa de um mundo perfeito apesar de suas aspirações políticas e ideológicas. Os movimentos contraculturais, desde a década de 1960, eram descrentes acerca de uma revolução que viesse a mudar de uma única forma a realidade do mundo (BASTOS, 2005). O punk estava, com suas características próprias, entregue à descrença nos partidos políticos e às desilusões quanto às possibilidades de revoluções socialistas e comunistas (CAIAFA, 1985; BIVAR, 2007; BASTOS, 2005, 2008). O anarquismo permitiu aos punks atuarem em sociedade sem depender de burocracias partidárias e sem entregar o seu papel enquanto indivíduos livres na transformação do mundo, para os dirigentes e elites intelectuais de partidos políticos (ARAÚJO JUNIOR, 2010). Isso permitiu aos punks, fugir de teorias que criavam moldes fechados para as leituras críticas da sociedade, e os permitiu entender e pensar, a partir de suas vivências e da autonomia de conhecimento, a miséria, a luta social, a política e o papel de cada indivíduo na transformação da realidade (BASTOS, 2005, 2008). No caso de Joker Índio, isso lhe permitiu entender a partir de sua vivência no anarco-

punk, de suas leituras autodidatas sobre o anarquismo, e de sua vivência em um ambiente

familiar conturbado, a realidade cruel das periferias, a hipocrisia religiosa, além do falso moralismo que perpassa pelo conceito de família tradicional. Tudo isso e mais um pouco habita seus trabalhos literários, suas prosas, poesias, performances e vídeos.

Se esse tipo de expressão é capaz de constituir algum conhecimento do mundo e alargar a visão de mundo do leitor, é por meio da transfiguração da realidade. No entanto, toda ficção está sempre enraizada na sociedade, pois é em determinadas condições de espaço, tempo, cultura e relações sociais que escritor cria seus mundos, utopias ou desejos, explorando ou inventando formas de linguagem (FERREIRA, 2015, p. 67).

Este poeta, a seu modo, reinventa formas de linguagens, (re)cria mundos, cenas, histórias, situações e constrói ficções que, tendo base na realidade, debocha, critica, reflete sobre as relações sociais, principalmente acerca da instituição família, e produz conhecimento sobre o mundo, a política e a arte. Um conhecimento filosófico, mas principalmente empírico, visto que é eivado da poderosa vivência de quem viu, sentiu e sofreu uma parte da realidade que serve de alicerce para que se erga uma ficção poetizada em sua literatura marginal.

Em sua formação intelectual e artística, Joker Índio teve uma forte relação com os textos, resenhas de livros, poemas e artigos dos fanzines. Mas, também, este contato com a arte foi permitido graças a militância no MAP e na convivência com militantes anarquistas e artistas que compunham a ocupação Morada da Arte. Esta é uma parte importante em sua história de vida, afinal, como já apresentado, a ocupação possuía vários coletivos de artistas, dentre eles um coletivo de atores, bem como, neste espaço também se construiu um centro de salvagarda de livros, jornais e fanzines vindos de todo o país. Foi neste mesmo espaço de resistência cultural e produção artística que este poeta não apenas teve acesso a todo este material, como também pôde desenvolver trabalhos no campo das artes cênicas e da performance, experiência que o permitiu, alguns anos depois, pensar e produzir trabalhos com vídeo e performance para potencializar a sua produção literária.

Na época em que se arvorou pelas artes cênicas, ajudou a compor o mesmo grupo anarquista do qual fazia parte o artista Cosme Luiz, o grupo de teatro de rua Estrela Negra. Embora não tenha participado de muitas peças, Joker Índio se recorda de algumas coisas deste período, como os ensaios na ocupação Morada da Arte ou na Praça da República, bem como, de uma das várias encenações da peça chamada: O governado.

Existia uma peça nessa época, e os meninos e as meninas ensaiavam na Morada da Arte e nas praças. E teve apresentação em um domingo na Praça da República. Quem eu me lembro que participou foi o Marcelo Abutre, a Jami que hoje em dia faz parte do MST, a Renata e o Cleiton gótico. E foi maravilhoso. Teve um público legal e a peça falava sobre a questão do Estado e do operário, que o Estado controla o operário, mostrava a emancipação do trabalhador e a contestação do operário perante o Estado e passava essa mensagem para o público em relação a natureza do Estado, a ação do Estado, ação nefasta do Estado. E para mim foi muito importante aqui na Amazônia esse ato com a arte do teatro. Porque o punk ele tá ligado à arte, não só na música como eu já falei, mas também à imprensa independente como os zines, no teatro, nas artes plásticas e nas artes em geral (Alexandre Washington, entrevista realizada em 01/06/2018).

A sua atuação artística sempre esteve engajada politicamente numa visão anarquista, niilista e punk da realidade política e cultural do Brasil e da sociedade. Não era de se estranhar que, assim como na escrita, a sua atuação no teatro de rua tomasse a mesma direção. O grupo

Estrela Negra, embora não fosse composto apenas por anarco-punks, tinha uma orientação política anarquista, e isto compôs as peças, performaces e intenções do grupo. A atuação do grupo se deu como já mencionado pelo final da década de 1990 e começo dos anos 2000, e, neste período, paralelo a sua atuação, um abalo importante ocorreu no interior do MAP a nível nacional, tendo reflexo nas relações culturais dos anarco-punk em Belém do Pará.

Com o passar dos anos, o MAP nacional sofreu questionamentos por parte de seus próprios integrantes, tanto acerca de seus aspectos ideológicos quanto acerca de sua identidade cultural, fato que permitiu o surgimento de uma pluralidade de pensamento para além do anarquismo e, com isso, abriu a possibilidade para o dialogo com a visão filosófica niilista. O poeta Joker Índio, formado culturalmente pelo MAP, acabou se envolvendo por um determinado período com a perspectiva niilista e esta vivência cultural cedeu mais bases para a sua produção artística.

Em outro de seus fanzines intitulado “As faces da poesia”, um poeta sem pudor, sem medo de errar e de ofender, apresenta versos anarquicamente niilistas problematizando as vísceras de uma sociedade hipócrita que tenta esconder suas falhas através de um comportamento puritano. Este trabalho é de 2013 e contou com seis poemas que tocam em temas como o amor, a família, o prazer, a quebra dos valores morais, o vicio e a liberdade sexual.

Este trabalho, feito em um papel simples, é impresso em uma única folha e dobrado duas vezes até chegar a um formato pequeno de livreto. É voltado, como no trabalho anterior, para uma visualidade em preto e branco, e contem uma foto do poeta logo na capa. Diferente de “Paidégua Cabaré Chibé”, o fanzine “As faces da poesia” já não foi produzido em recorte e colagem, mas sim, diagramado diretamente em programa digital de edição de texto, no entanto, sem perder a predominante ideia do autodidatismo da filosofia anarco-punk do faça você mesmo. Bem mais importante do que a forma simples escolhida para a apresentação de seus trabalhos, destaca-se as faces de sua produção textual sempre forte e provocadora, sem pudores ou receio de disparar ofensas e pressionar feridas morais.

Para entender a potência da vivência punk na produção deste artista que flerta com o niilismo e o anarquismo, um importante destaque pode ser dado aos três poemas a seguir: