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... estou aqui sozinho Bebendo vinho Pensando na minha mulher Que pensa que fui trabalhar!

... estou aqui sozinha Juntinho do Alfredo (cachorro)

Pensando no meu macho Que pensa que fui cozinhar!

Estou com meus amigos Bebendo, usando drogas Pensando nos meus pais Que pensam que eu fui estudar!

(ÍNDIO, 2013, p. 7).

O primeiro poema, como pode ser lido nas linhas e entrelinhas de seus versos, poetiza as contradições existentes entre os papeis sociais desempenhados por homens e mulheres. O eulírico corresponde a uma ex-prostituta que havia deixado sua profissão no intuito de se entregar ao amor e à vida matrimonial. Um ato que só lhe revelou a hipocrisia de um

pensamento moralista que cobra o pudor e a castidade das mulheres, porém, é altamente permissivo com relação aos desvios de caráter dos homens.

Este poema traz à tona uma conclusão realista de que são os próprios seres humanos que instituem para si “anjos e demônios” na busca por livrarem-se das culpas de suas próprias fraquezas e erros. Tal trecho aparece na constatação de que “a putaria é filha do próprio homem e da própria mulher”, ou seja, a idealização de seres humanos alinhados com os ideais religiosos que instituem padrões morais de comportamento, entra em choque com a realidade instintiva de homens e mulheres vulneráveis a seus impulsos sexuais e ao egoísmo puramente humano que coloca seus prazeres em primeiro lugar. No entanto, mesmo que tais comportamentos sejam próprios de uma condição humana, tais atos são naturalizados para os homens, e demonizados para as mulheres. No poema, a identidade de prostituta atribuída ao eulírico, corresponde a uma metáfora criada pelo poeta para representar o modo como uma mulher livre é vista em nossa sociedade. Para criticar a visão castradora que demoniza as mulheres que são livres para viverem o prazer de suas próprias escolhas, o poeta joga com as palavras e, ao se apropriar de um xingamento machista bastante popular, faz uma relação entre a condição humana da mulher e a idealização da mulher em sua condição materna, quando traz os seguintes versos: “Sou uma puta!/ A puta que te pariu!”.

Enquanto no primeiro poema a relação entre conjugues é problematizada, no segundo poema, mantendo sua visão anarco-punk-niilista de fúria e revolta, o poeta volta seus olhares para a idealização das proles no ambiente familiar.

O poema intitulado “Viciado(a) (parte 2)” constrói um cenário regido por planos e idealizações para com o futuro de um filho. Neste caminho, a relação entre o tempo de espera, o tempo de idealizações e esperanças, e a decepção com a condição de dependente químico do filho, revela a preocupação dos pais com a continuação da família a partir de seus legados e de suas heranças. A constituição familiar é erguida, histórica e culturalmente, pela busca por perpetuar, num primeiro momento a herança biológica de um casal que, na maioria das vezes vê em seus filhos a sua própria continuação, assim como, também busca perpetuar, num segundo momento, a tradição, as histórias, as memórias, o nome e os bens materiais de uma família. Esta situação, contudo, está mais voltada para as famílias mais abastadas economicamente e de prestígio social e político de uma determinada localidade. Por tal ocorrência, não ter para quem deixar toda uma herança econômica e cultural, para estas famílias corresponde principalmente a um motivo de vergonha e de fragmentação de todo um prestígio social construído historicamente.

Numa situação significativamente oposta, para as famílias de baixo poder aquisitivo ou pobres residentes em bairros periféricos, outra realidade se faz presente. As famílias em muitos casos são constituídas por uma mãe e seus filhos, ou as crianças são criadas pelos avós, ou seja, a figura do pai nem sempre existe, assim como, todo o ideal de perpetuação de um legado também não está presente. Muitas crianças têm de trabalhar cedo e/ou crescem em ambientes de risco, observando toda espécie de violência, o tráfico de drogas, assaltos, dentre outras situações igualmente nocivas para o desenvolvimento saudável de uma pessoa.

Dito isto, o poema de Joker Índio me permite entender a visão crítica de seu autor acerca da relação de poder exercida por determinadas famílias, como também, permite ver de forma crítica as contradições existente entre o modelo de família tradicional, atualmente bastante privilegiado em discursos políticos liberais e conservadores, e as outras formas de constituições familiares, constantemente marginalizadas. Em grande parte, o fortalecimento, na política, de grupos religiosos, principalmente cristãos protestantes, tem levantado e disseminado um discurso que tende a deslegitimar a constituição familiar que foge dos padrões defendidos pelos dogmas religiosos, e este fato tem trazido à tona a necessidade de se rever esses conceitos, bem como, a necessidade de se repensar estratégias de luta para a resistência de tais grupos perseguidos. Neste caso, este e outros poemas de Joker Índio focam nas contradições e aspectos importantes que estão por trás de tais modelos familiares, como relações de poder, e a negação de modelos alternativos de família.

No caminho da crítica ao poder político que os grupos religiosos têm exercido, e tendo em vista o modelo de família por eles apresentados como sendo o único legítimo, o terceiro poema intitulado “Santíssima trindade brasileira” apresenta os três componentes da família tradicional e os expõe a partir dos papeis que cada um supostamente deveria exercer para coadunarem com tal idealização política e religiosa.

No poema em questão, dividido em três estrofes, o autor constrói um cenário no qual o pai, a mãe e o filho idealizam o que cada membro da família deveria estar fazendo, enquanto aquele que idealiza, não segue o seu próprio papel social nesta idealização. A figura do pai como o provedor da família é contraposta pela figura de um pai que na verdade é alcoólatra, que aparentemente pode estar desempregado ou talvez tenha faltado um dia de trabalho para beber vinho. A parte destinada a mãe, corresponde ao velho papel de ser a dona de casa, que espera o marido voltar do trabalho no vazio de sua casa, com os animais de estimação ou filhos pequenos, e que deve preparar a alimentação da família. No entanto, assim como o pai que não cumpria o papel destinado a ele, a mãe pensava em seu marido (ridicularizado pela

expressão macho) acreditava que ela estivesse cozinhando. Por fim, a figura do filho aparece da mesma forma como no poema anterior, atrelado ao uso de drogas. O filho, cujos pais pensavam que estava estudando, na verdade encontrava-se com seus amigos, bebendo e usando drogas e, com este desfecho, completa-se a santíssima trindade da família tradicional brasileira. Três elementos de uma instituição erguida em alicerces de barro, tão frágeis que para se manter, precisam, através da mentira, reafirmar os velhos papeis sociais que já não cabem em nossos dias. Contudo, acerca de como o próprio poeta vê a sua poesia, suas influências e seu processo de produção, tem-se o seguinte relato:

A minha influencia veio através do movimento punk, né? no movimento punk foi muito é explorado a questão artística dos indivíduos né? Dos próprios punks. E tinha na arte, tinha na música, tinha nas artes plásticas e eu me identifiquei com a poesia, e a poesia é... no caso dos punks, dos libertários, né?, não obedece as regras, é... as regras de como se fazer poesia tanto na questão é... gramatical, como na questão do conceito, e fazer poesia pra mim é expor aquilo que você sente, aquilo que você vê, aquilo que você quer... quer romper, aquilo que você quer se libertar, e a poesia ela foi uma maneira de de de alcançar esse objetivo. Dentro do punk existiram poetas

punks de outros estados e como eu tinha contato através da caixa postal, através das

cartas, nos tínhamos muitos trabalhos de poesias de vários poetas e também nesses zines foram abordados alguns autores, alguns poetas e um deles foi Augusto dos Anjos. Augusto dos Anjos me influenciou muito pra fazer o meu trabalho, um trabalho de contestação da própria estrutura da poesia porque o Augusto dos Anjos ele foi por mais que ele tinha um rigor gramatical um rigor no seu trabalho, ele foi... ele rompeu com o pensamento da época, né?, que era o parnasianismo que tinha o Olavo Bilac e tal e ele rompeu. El falava sobre morte, cadáver, putrefação e isso pra mim é punk né? Tu ir de contra ao que é imposto, ao que tá na moda, ao que tá vigente, e isso serviu para mim, serviu pra me inspirar pra fazer o meu trabalho e, como eu falei, os poetas punks, e também o outro pessoal que foi a geração mimiografo [...] tanto na questão da produção [...] então esse pessoal eles faziam seus trabalhos em livretos impressos em mimiógrafos, então eles fugiam dessa... da maneira convencional de publicar poesias que era o livro, a editora, o mercado editorial. Então eles foram fazendo um trabalho de ação direta então isso tem tudo a ver com o punk no do it yoursself, faça você mesmo, e isso me influenciou bastante e foi como eu comecei a fazer meus livrinhos de poesias (Alexandre Washington, entrevista realizada em 17/10/2018).

A vivência anarco-punk que dá consistência e força ao fazer artístico de Joker Índio, destaca-se, não ficou restrita apenas a trabalhar com as palavras de forma escrita, mas sim, aos poucos foi alcançando novos suportes e arvorando-se por outras expressões artísticas. É neste caminho que os trabalhos deste poeta enveredam-se pelo suporte do CD e encontram vazão através de sua forma de recitar poemas.

Em 2006 o seu primeiro áudio-book é produzido, ainda de forma bastante artesanal e improvisada, além de ter sido feito sem muito conhecimento tecnológico. O trabalho intitulado “As vozes da poesia: corrosive” foi construído com o auxílio de um gravador de fita cassete, contou com poemas sendo recitados pelo próprio poeta, e teve uma música do cantor

Richard Wagner como trilha sonora. Como a gravação foi feita em fita cassete e o poeta não tinha muitos conhecimentos técnicos sobre mídias digitais, na hora de converter o áudio da fita para o CD todos os poemas ficaram em uma única faixa. Neste momento, o trabalho era assinado pelo poeta com o nome artístico Indiozinho. No segundo áudio-book o autor ainda permanece com o mesmo pseudônimo, porém, a partir dos vídeo-poemas, passa a adotar o nome Joker Índio.

Geralmente quando se fala em fazer, desenvolver um trabalho em CD, DVD, as pessoas, as pessoas elas imaginam um processo é dispendioso de investimento né? E como eu nunca me limitei a esse tipo de imposição pra fazer uma arte, eu usei a ideologia punk que é o “faça você mesmo” (do it yourself) eu resolvi fazer o meu próprio CD só que antes do CD eu fiz uma... uma... eu fiz um trabalho com livretos de poesias que era As faces da poesia e depois eu tive a ideia de fazer um CD e gravei num naqueles antigos gravadores que tinham rádio, né?, e aí coloquei a fina, gravei a minha voz num fundo musical e pedi pra alguém é fazer uma mídia pra mim, fazer uma matriz e essa matriz eu reproduzi e fazia as capinhas, e saia a noite pra vender (Alexandre Washington, entrevista realizada em 17/10/2018).

Questionado sobre o seu processo criativo, o poeta descreve, dentre as ações que empreendeu para a confecção do produto final, um poema que julgou importante para este trabalho. Para tanto, Joker Índio faz o seguinte relato sobre quando o escreveu e sobre quais ideias comungaram para o seu desenvolvimento.

‘Dias melhores virão’ eu fiz quando eu estava em Campinas, eu estava em um squat, uma ocupação dos punks e aí lá eu estava com outro poeta de rua que era punk também, o Floid, e nessa ocupação tinha uma máquina de datilografar e aí é... nós fazíamos a troca, né?, aí ele fazia o poema dele e acabava e a gente revezava, aí eu tive a ideia de fazer esse poema. E esse poema ele mostra é... nesse momento da minha vida o meu lado pessimista, o meu lado niilista da vida (Alexandre Washington, entrevista realizada em 17/10/2018).

Logo após o relato, o poema é recitado:

Dias melhores virão

Amanhã cedo, ao acordar Eu irei respirar o ar puro

Amanhã não encontrarei lixo fora do lugar Amanhã todos irão ter trabalho

E lazer e comida e cultura

Amanhã, ninguém matará ou irá morrer

Amanhã todas as pessoas do mundo serão felizes Assinado: Pinóquio, o boneco mentiroso.

No poema acima, a realidade tão sofrida de uma sociedade erguida sobre as desigualdades sociais, é apresentada através de suas contradições e da falta de oportunidades para todos, dentre outras mazelas sociais. O início é marcado por um otimismo que ao mesmo tempo em que imagina a chegada de dias melhores, também expõe o que há de errado no mundo, ou seja: poluições de todos os tipos, lixos espalhados pela cidade, pessoas sem emprego e sem acesso ao lazer e a cultura, e assassinatos. Entretanto, apesar da narrativa que se pressupõe otimista no início, o desfecho ironiza toda a atmosfera criada quando o narrador se apresenta como sendo “Pinóquio, o boneco mentiroso”.

Ao desenvolver este primeiro áudio-book, o poeta pôde identificar erros e acertos que o permitiram melhorar seu processo criativo e a apresentação do produto final de seu segundo projeto nesta área. Ainda em 2006, Joker Índio fez a sua segunda coletânea de poemas usando o CD como suporte. Embora em algumas coisas o processo criativo ainda tivesse seguido o improviso como seu principal caminho, o trabalho, desta vez, foi pensado com uma organização mais sistematizada na qual o artista apresenta um prólogo contendo a descrição de suas influências literárias, bem como, também houve a preocupação em fazer com que os poemas fossem separados uns dos outros, fato que rendeu ao projeto 11 faixas cujos títulos são: Apresentação; Era feia aquela bela mulher; É manhã na Amazônia; A pororoca; Amizades quase; Pop revolta (parte 1); O bacanal; Pop revolta (parte 2); A orquídea; lá se vai a mulher...; Prólogo.

O potencial do fazer artístico de Joker índio, tanto produzindo conhecimento quanto disparando críticas não se limita em temas como a família, mas sim, também encontra espaço fértil mesmo dentro dos movimentos sociais. Neste caso, nos poemas Pop revolta (partes 1 e 2) a sua crítica se estende para a imagem de militantes comuns na contemporaneidade que, ao se rebelarem contra o mundo, falam de uma realidade que nunca viveram de fato. Segue abaixo os dois poemas: