• Nenhum resultado encontrado

A história das neurociências foi atravessada por diversos modelos explicativos do funcionamento cerebral.

O surgimento das primeiras associações entre o cérebro e as funções psicológicas remonta a Hipócrates (460-355 a. C.), para quem o cérebro constituía a parte mais importante do corpo e abrigava a sede da inteligência (Kristensen, Almeida & Gomes, 2001). Na Idade Média, a massa encefálica perdeu o status de lócus da mente humana, dando lugar aos ventrículos cerebrais como reservatórios da energia vital responsável pela ligação dos quatro elementos universais (água, fogo, ar e terra) e pela determinação do temperamento e comportamento humanos (Muszkat, 2008a).

A partir do Renascimento, inaugura-se a separação entre a alma e o mundo circundante, bem como o retrato de mundo previsível, métrico e facetado, pautado em múltiplas relações de causa e efeito, que encontra seu ápice com as ideias de René Descartes, no século XVII. Descartes definiu a alma como substância consciente ou pensamento, caracterizando-a por uma natureza indivisível, diferentemente do corpo,

que era sempre divisível. Restabeleceu a ontologia dualista, retomando a ideia de que alma e corpo eram constituídos por diferentes substâncias. Para Descartes, a alma possuía caráter imaterial e atemporal, enquanto o corpo era finito e material, ocupando lugar no espaço. Corpo e alma interagiriam através da glândula pineal, que era então considerada a sede da alma humana (Muszkat, 2008a; Kristensen et. al., 2001).

A transposição do dualismo cartesiano ao reducionismo científico ocorreu no século XVIII, quando do advento da visão frenológica de Franz Gall, considerada um marco da visão localizacionista do funcionamento cerebral (Muzskat, 2008a; Muzskat, 2006). A frenologia partia da ideia de que os traços de caráter do indivíduo eram expressos na forma de saliências ou reentrâncias de pontos determinados do crânio (Kristensen et. al., 2001). Segundo a frenologia, o cérebro era compartimentado em várias áreas, que seriam responsáveis por funções psicológicas e comportamentos humanos específicos, como por exemplo, o “amor ao vinho” (Muzskat, 2008a).

Após a frenologia, as investigações neurocientíficas ficaram marcadas por visões oscilatórias, que ora pendiam para uma visão localizacionista, ora enveredavam para visões mais holistas do funcionamento cerebral. Após a iniciativa das teorias frenológicas, muitas investigações científicas acerca da localização de funções cerebrais foram realizadas. Contudo, somente com os estudos de Pierre Broca (1824-1880) - que investigou a relação entre a perda da fala e lesões na terceira circunvolução frontal esquerda -, e de Karl Wernicke (1848-1905) – que descreveu a relação causal entre a lesão no primeiro giro temporal esquerdo e uma das formas clínicas da afasia, a afasia sensorial -, o movimento localizacionista ganhou força (Kristensen et. al., 2001).

No entanto, os movimentos holistas também apresentaram momentos hegemônicos, tendo ganhado notoriedade os estudos de Constantin Von Monakow (1853-1930), baseado em argumentos anátomo-fisiológicos e Kurt Goldstein (1878- 1965), influenciado pela teoria Gestalt (Kristensen et. al., 2001).

O embate entre localizacionistas e holistas perdurou por muitos anos. Uma proposta viável de resolução desta querela foi proposta pela teoria sócio-histórica, desenvolvida por Lev Semenovich Vygotsky (1896-1934), Alexei Nikolaevich Leontiev (1903-1979) e Alexander Romanovich Luria (1902-1977). Orientado pelo pensamento de Vygotsky e profundamente inserido na tradição russa de pesquisa em neurologia, Luria propõe modelo teórico que dirige o trabalho neuropsicológico até os dias atuais. De modo coerente com a perspectiva histórico-cultural que ajudou a erguer, Luria considera que a inserção em ambiente sócio-histórico-cultural tem implicações diretas sobre a estruturação das funções psicológicas superiores. O funcionamento cognitivo superior, embora tenha suporte biológico irrefutável, não pode ser concebido como produto evolutivo direto; ao contrário, ocorre a partir de relacionamento indireto - mediado através de instrumentos ou signos – cujos fundamentos encontram-se nas relações sociais estabelecidas entre o sujeito e o mundo e na imersão histórico-cultural em que se contextualiza (Hazin, Leitão, Garcia, Gomes & Lemos, 2010).

Dessa forma, para a perspectiva sócio-cultural a compreensão do desenvolvimento humano exige a consideração conjunta de níveis distintos de análise: a) o nível histórico, referente às aquisições sociais, culturais e históricas da humanidade; b) o nível filogenético, referente ao desenvolvimento das espécies e as suas

peculiaridades; c) o nível ontogenético, referente ao desenvolvimento cognitivo e sócio- afetivo dos sujeitos e; d) o nível microgenético, referente aos fenômenos psicológicos e suas trajetórias intrínsecas (Hazin et. al., 2010).

A inserção de Luria no domínio neuropsicológico é resultado do projeto científico idealizado pela psicologia histórico-cultural. Para ele, fatores externos – notadamente os mediadores simbólicos - desempenham papel decisivo na organização funcional dos sistemas cerebrais (Hazin et. al., 2010). O desenvolvimento ontogenético caracteriza-se pela transição da linha natural - correspondente à maturação biológica, que se inicia no nascimento da criança - para a linha cultural - que tem início quando a criança começa a se apropriar dos instrumentos histórica e culturalmente gerados, a partir do qual as funções psicológicas primárias passam a ser atravessadas pela dimensão simbólica. Deve-se salientar que a linha cultural não sucede a natural; ambas caminham juntas ao longo de toda a vida do sujeito, à medida que as funções primárias são transformadas pelos sistemas simbólicos de uma dada cultura (Hazin et. al., 2010).

Luria propôs uma explicação alternativa às posições localizacionistas e globalistas, concebendo as funções corticais superiores a partir de três princípios centrais: a) relacionamentos interfuncionais, plásticos e modificáveis; b) sistemas funcionais dinâmicos como resultantes da integração de funções elementares e; c) a reflexão da realidade sobre a mente humana. Para Luria, os processos corticais superiores são sistemas funcionais complexos dinamicamente localizados (Kristensen et. al., 2001). As funções cognitivas superiores, como linguagem e memória, organizam-se em sistemas de zonas, recrutando a atuação de diversas localidades do

córtex cerebral (Ciasca, Guimarães & Tabaquim, 2006). Portanto, não há uma localização específica das funções cognitivas complexas no sistema nervoso; o advento do funcionamento cognitivo superior depende da atuação de conexões difusas que trabalham em concerto, cada qual desempenhando papel relevante ao produto final da função cognitiva (Muszkat, 2008a; Ciasca et. al., 2006).

Luria conduz seus estudos a partir da revisão de antigas proposições, até então tidas como consensuais no estudo do cérebro e do funcionamento cognitivo. Para ele, este seria o primeiro passo para abordar a então controversa questão da localização cerebral da atividade mental humana (Luria, 1981). A primeira revisão empreendida por Luria relacionou-se ao conceito de função.

A função, para Luria, é um mecanismo de adaptação presente em todos os organismos, consistindo em atividade complexa exercida por um conjunto de órgãos (Hazin et. al., 2010). Dentro dessa perspectiva, uma função não poderia ser entendida como atributo de um tecido ou órgão particular, assim como não o são processos como a respiração e a digestão. Da mesma forma, as funções cognitivas não poderiam ser circunscritas a uma determinada área do córtex cerebral. O conjunto de processos envolvidos com este fim não pode ser considerado uma função simples, mas um sistema funcional complexo, tornando obsoleto o uso do termo função para caracterizar tais processos (Hazin et. al., 2010; Luria, 1981). Portanto, diferentemente das funções mentais elementares, as formas superiores do funcionamento humano não estão limitadas a áreas específicas do cérebro. A mediação da cultura, através de ferramentas externas, constrói uma complexa estrutura de processos mentais ao longo da

ontogênese, fazendo emergir um cérebro funcionalmente integrado a partir da conexão funcional de áreas inicialmente independentes, determinando novas ligações à atividade mental humana. A presença desses vínculos funcionais na construção dos sistemas funcionais complexos constituem o que Vygotsky denominou “princípio da organização extracortical das funções mentais complexas” (Hazin et. al., 2010; Luria, 1981).

A distinção fundamental dos sistemas funcionais seria a mobilidade de suas partes constituintes (Luria, 1981). Assim, tais sistemas são essencialmente dinâmicos, capazes de realizar uma tarefa constante (invariável), por mecanismos diversos (variáveis), levando o processo a um resultado constante (invariável). A noção de sistemas funcionais é hoje aplicada com propriedade à neuropsicologia. Uma consequência relevante da proposição dos sistemas funcionais é a constatação de que o ser humano pode utilizar diversos caminhos para atingir o desenvolvimento e a aprendizagem, premissa de fundamental importância às propostas de reabilitação (Hazin et. al., 2010; Luria, 1981).

A segunda revisão realizada por Luria diz respeito ao conceito de localização. Esta revisão decorre diretamente da proposição dos sistemas funcionais e de sua relação com as funções psicológicas superiores. Para Luria, os sistemas funcionais complexos não estariam representados em áreas limitadas do cérebro ou em agrupamentos celulares isolados. As funções mentais estariam organizadas em sistemas de zonas funcionando em concerto, cada qual desempenhando um papel em um sistema funcional complexo, podendo estar localizadas em áreas cerebrais completamente diferentes e/ou bastante distantes (Luria, 1981).

Dessa forma, a localização dos processos cognitivos superiores é dinâmica. Os sistemas funcionais não são estáticos ou constantes ao longo do desenvolvimento, mas se deslocam significativamente ao longo da ontogênese das funções cognitivas. No curso de desenvolvimento, a organização cerebral se altera de forma significativa, adquirindo estrutura mais complexa e interfuncional resultante da aprendizagem ou de mecanismos de reorganização pós-lesão (Hazin et. al., 2010; Luria, 1981). Nesse sentido, mais relevante do que a preocupação com a localização das funções seria a análise cuidadosa acerca da contribuição de cada zona cerebral ao sistema funcional complexo, bem como a compreensão da dinâmica relação entre os sistemas funcionais e a atividade mental complexa ao longo dos vários estágios do desenvolvimento (Luria, 1981).

A terceira revisão conceitual realizada por Luria envolveu a noção de sintoma. Luria considerava ingênua a atribuição de localização específica a uma função cognitiva a partir de sua perda pós-lesão. Diferentemente de funções cognitivas mais elementares, como visão e audição, as funções cognitivas superiores são realizadas por sistemas funcionais complexos, recrutando a participação de grupos de áreas corticais operando em concerto. Assim, tais funções não teriam localização específica no cérebro; a lesão de cada uma das zonas funcionais pode acarretar desintegração de todo o sistema funcional, de modo que um sintoma envolvendo funções superiores não forneceria, por si só, informações acerca da sua localização. Na prática, o sistema funcional como um todo pode ser prejudicado diferentemente em lesões situadas em diferentes locais, tornando-se essencial a qualificação detalhada do sintoma observado (Hazin et. al., 2010; Luria, 1981).

As propostas de Luria podem ser assim sintetizadas: o cérebro é formado por sistemas funcionais, caracterizados não apenas por sua complexidade estrutural, mas essencialmente pela mobilidade de suas partes constituintes (Hazin et. al., 2010). Os processos cognitivos humanos são produto de sistemas funcionais complexos, dos quais participam diversos grupos e estruturas cerebrais em concerto. No entanto, embora seja admitido que o sistema funcional não possua uma localização cortical específica, sabe- se que existem áreas corticais importantes para cada um dos sistemas funcionais. Nesse contexto, Luria propõe uma nova organização funcional das funções cognitivas superiores, que pode ser subdividida em três unidades.

A primeira unidade funcional está intimamente relacionada ao Sistema Límbico, e tem como finalidade a regulação do tônus cortical e de vigília. É a unidade que, numa cascata de conexões ascendentes, prepara o tônus cortical de modo torná-lo ativo em nível ótimo ao desempenho das diversas funções cognitivas (Muszkat, 2008a). Suas estruturas encontram-se localizadas em regiões subcorticais e suas funções são desempenhadas principalmente pela Formação Reticular – rede nervosa composta por axônios curtos capazes de modular gradualmente a excitabilidade de seus impulsos, propagando-os de forma vertical e ascendente ao córtex cerebral (Muszkat, 2008a). As fontes de ativação da formação reticular podem ser divididas em três categorias: a primeira delas é mais primária, filogeneticamente antiga e endógena, relacionando-se ao metabolismo homeostático do organismo e aos mecanismos instintivos de defesa, alimentação e sexualidade; a segunda fonte é externa, relacionada ao reflexo e orientação aos estímulos, da qual participam núcleos subcorticais, como o caudado, e estruturas do sistema límbico e; a terceira fonte de ativação relaciona-se à linguagem,

atividade mental essencialmente humana, determinando o nível de resposta de vigília ou despertar segundo moduladores motivacionais ligados aos estímulos ou informações (Muszkat, 2008a).

A segunda unidade funcional realiza a recepção, análise e armazenamento das informações que chegam ao cérebro, atuando desde a recepção dos estímulos pelos receptores periféricos até o cérebro até a análise de seus componentes e sua síntese em sistemas funcionais complexos. Suas estruturas localizam-se nas porções posteriores da superfície dos hemisférios cerebrais, englobando o córtex occipital, temporal e parietal. Tem como característica essencial a alta especificidade modal, de modo a ser adaptada especificamente para a recepção de informações visuais - através do córtex occipital -, auditivas – através do córtex temporal -, e sensorial geral – através do córtex parietal. Adjacentes a estas estruturas encontram-se regiões associativas, cuja atribuição é a de sintetizar o reconhecimento dos estímulos em percepções integradas, tendo como substrato as informações sensoriais unimodais provenientes das áreas primárias. Além destas, a segunda unidade funcional possui estruturas associativas não específicas, localizadas em regiões de confluência das áreas primárias e associativas específicas – áreas têmporo-parieto-occipitais - cuja função é a organização mais complexa e multimodal das experiências sensoriais, e a sua sofisticação através da agregação de conotações afetivas e simbólicas (Muszkat, 2008a).

A terceira unidade funcional tem como atribuições a programação, regulação e verificação da atividade mental. Localiza-se nas regiões anteriores do cérebro, em se destacando o lobo frontal, sendo composta pelos córtices motor, pré-motor e pré-frontal,

estruturas que possuem um vasto sistema de conexões com estruturas corticais e subcorticais (Muszkat, 2008a; Ciasca et. al., 2006). A comunicação privilegiada das estruturas frontais com as demais áreas do SNC justifica o papel central desempenhado por esta unidade no que tange à organização do comportamento, notadamente através da planificação, programação, intenção, síntese, execução, verificação e sequenciamento das funções e habilidades cognitivas (Ciasca et. al., 2006). Lesões destas áreas podem acarretar alterações de conduta, perseverações de programas motores e desatenção (Muszkat, 2008a).

Para Luria, ao longo da ontogênese, a estrutura e organização interfuncional dos processos superiores sofre modificações ao longo do desenvolvimento infantil (Luria, 1981). A proposição dos estágios de desenvolvimento do SNC preconizados por Luria, bem como aspectos teóricos centrais do neurodesenvolvimento serão discutidos na seção a seguir.