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INCOMPATÍVEIS COM UMA PERSPECTIVA COMPORTAMENTAL?

2.2. Neutralidade das três teses em questão relativamente ao mentalismo

O mentalismo é uma pressuposição tão frequente em filosofia na mente contemporânea que nela se tenta, por vezes, fazer reductio ad absurdum das abordagens que impliquem a negação dele, como (de diferentes modos) as abordagens epifenomenalistas e as comportamentais105.

Elas estariam negando uma intuição que se autossustenta (algo como um fundamento que, supostamente, não requereria defesa). Então, esta pressuposição, como vimos, acaba, muitas vezes, transparecendo inclusive nas formulações das três teses em questão ‒ doravante, respectivamente, (MEX), (HOL) e (FUNC).

Entretanto, não serão essas teses, na verdade, neutras relativamente ao mentalismo? Nesta seção, procuramos sugerir que as intuições básicas subjacentes a elas independem desta visão, apontando formulações alternativas que não a pressupõem, mas que preservam as estruturas respectivas daquelas que vimos na seção anterior. O objetivo não é defender que nossas formulações alternativas sejam a melhor maneira de representar as referidas teses – ainda que, ipso facto, sustentemos que elas são mais adequadas, em certos aspectos, do que as formulações mentalistas –, antes se tratando apenas de aproximações com vistas a tornar

105 Cf., por exemplo, Armstrong (1968, p. 56), Maslin (2007, p. 114-115) e Braddon-Mitchell e Jackson (2007, p. 12, p. 42).

transparente a neutralidade delas.

Não vemos razão por que (MEX) não permaneceria, enquanto tese geral, sem (MENT). A intuição subjacente a (MEX) parece ser de que essas predicações podem, em princípio, ser verdadeiras a respeito de diversos tipos de entidades de algum nível (ontológico), como se diz, inferior (lower-level); ou seja, podem ser satisfeitas por um tipo L¹, e/ou um tipo L², e/ou..., não designando, univocamente, apenas um específico. Isso, por si só, não dita se esses tipos são, necessariamente, neurofisiológicos ou outras entidades próprias do interior do corpo que causam eficientemente o comportamento. O que é central, simplesmente, é que os fatores relevantes para a veracidade de tais predicações sejam realizáveis por entidades particulares de diversos tipos106. Por exemplo, é comum fazermos

predicações que possuem formas tais como “...quer retornar ao lar”, “...tem interesse em alimentar-se”, “...está irritado” e “...é sagaz” tanto a pessoas como também a animais não humanos, sejam domésticos ou não, e é possível que a verdade delas seja em razão de fatores de tipos diversos. Determinar quais são estes é uma questão à parte.

Figura 4: Múltipla exemplificabilidade neutra

A lógica de (HOL), sugerimos, é, igualmente, neutra com relação a (MENT). A nosso entender, ela é de que a veracidade de uma determinada predicação psicológica ordinária implica a veracidade de uma cadeia de outras, de tal modo que aquela não se deixa caracterizar sem que outras sejam introduzidas. Ao dizermos que alguém satisfaz a predicação, assumimos, implicitamente, que satisfaz também uma massa de outras, mais ou menos coerente com aquela. Neste caso, entender as cadeias holistas em termos da visão

106 Ou ainda, como diz Funkhouser (2006, p. 469), que haja “um mesmo tipo [‘sameness of type’] através de

quaisquer diferenças nas condições (de nível inferior) que deem origem a exemplares ['instances'] deste tipo”.

Shapiro (2000, p. 643ss) sugere uma caracterização um pouco menos geral, em que a múltipla exemplificabilidade envolve diferentes maneiras de se realizar uma mesma função. De qualquer forma, a perspectiva que delineamos abaixo (na seção seguinte) é-lhe também compatível, como se poderá ver.

Predicação psicológica Ψ¹

Em princípio, Ψ¹ pode ser satisfeita por múltiplos tipos de entidades, Lᵐ, e/ou…, e/ou Lᵑ, e/ou…, de um nível inferior.

mentalista já é uma maneira de dar conteúdo à sua lógica, não algo inerente a esta. Efetivamente, se, por exemplo, algum animal ama seus filhotes, ele preza por eles, quer seu bem, e, então, provavelmente, gosta de alimentá-los, não tem o interesse de que sejam alvos de predadores, etc. O mentalista presume que, ao assumirmos esses outros atributos quando inferimos o primeiro, estamos assumindo outros “estados e processos mentais” entendidos como coisas que se passam no interior do animal, mas está longe de ser claro que isso seja realmente o caso.

A perspectiva do próprio Dennett (1987c, 1991a), que objeta Ryle em termos do holismo, contribui para mostrar isso. Segundo ela, essas predicações, em particular da categoria (a), recaem, implicitamente, em massa sobre o sistema, capturando regularidades comportamentais, sem que suponham discriminar entidades discretas internas vis-à-vis. Tais predicações funcionariam de modo análogo a conceitos como os de centros de gravidade e de temperatura, ou seja, como instrumentos para efeitos de cálculo, capturando algumas regularidades efetivas. Se faz parte do funcionamento delas capturar, também, propriamente, para além das regularidades comportamentais, estados e processos estruturais subjacentes, como Dennett sugere, é um problema à parte.

Figura 5: Holismo neutro

A tese (FUNC) também tem um sentido geral que independe de (MENT). A intuição básica subjacente a ela é de que as predicações em questão designam entidades que exibem funções. Ou seja, segundo (FUNC), os fatores relevantes para a veracidade dessas predicações são a posse de funções por certas entidades. Por exemplo, querer ir até o próprio lar, sentir prazer ou ficar apreensivo diante de determinada forma de estímulo ambiental, ser alguém organizado e assim por diante, podem ser entendidos como atributos cuja natureza seja possuir certas funções. A determinação de que tipos de funções e por quais tipos de entidades

Satisfação da predicação psicológica Ψ¹ Ψᵐ Ψᵑ Lᵐ Lᵑ

Implica a satisfação de uma série de outras, Ψᵐ, …,Ψᵑ, …, por entidades Lᵐ, …, Lᵑ,

é uma questão à parte. As abordagens funcionalistas tradicionais e mais divulgadas (nomeadamente, o funcionalismo de máquina de Turing de Putnam, o funcionalismo redutivo de Lewis e Armstrong e ligeiras variantes) assumem que essas funções são sinônimas de papéis causais, realizados por estruturas internas. No entanto, a ideia independe desta interpretação das funções, como aponta o teleofuncionalismo – chamando atenção para funções em sentido biológico (ainda que, ao final, tente conciliar isso com o mentalismo) –, bem como de se elas são de causar comportamentos e próprias de neurônios ou entidades similares. Pode-se pensar que outros tipos de entidades que têm funções não são de pertinência para o âmbito das categorias psicológicas ordinárias, mas pelos menos os comportamentos dos organismos como um todo (que são entidades que podem ser entendidas como tendo uma natureza funcional) são, em alguma medida, relevantes em qualquer exame de tais categorias.

Figura 6: Tese funcionalista neutra

Em suma, há indícios de que as três teses em questão têm suas respectivas lógicas independentes de (MENT), ainda que possam, eventualmente, revelar-se mais plausíveis quando entendidas em termos de (MENT). Formulações como as seguintes parecem capturar, de modo aproximado, as intuições mais básicas subjacentes a essas teses:

(MEX) Uma predicação psicológica comum Ψ¹ pode, em princípio, ser satisfeita pelos tipos Lᵐ, e/ou…, e/ou Lᵑ, e/ou…, de entidades de determinado nível inferior.

(HOL) Uma predicação psicológica comum Ψ¹ verdadeira implica a veracidade de uma massa Predicação psicológica Ψ¹

Lᵐ Lᵑ Pode ser satisfeita por

(tipos ou exemplares de) entidades Lᵐ, …, Lᵑ, …, que tenham uma ou mais funções relevantes Fᵐ, …, Fᵑ.

de outras predicações psicológicas comuns, Ψᵐ, …, Ψᵑ, …, sobre o mesmo sistema em que

incide.

(FUNC) Uma predicação psicológica comum Ψ¹ explica e prediz comportamentos remetendo a (tipos ou exemplares de) entidades Lᵐ, …, Lᵑ, …, em razão de desempenharem uma ou mais funções Fᵐ, ..., Fᵑ.107

2.3. Compatibilidade das três teses em questão com um behaviorismo teleofuncional