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Pelo menos boa parte de casos das categorias psicológicas ordinárias possui uma característica teleológica, no sentido de eles sinalizarem eventos que, aparentemente, são dirigidos para fins. Por exemplo, ao falarmos de almejos, quereres e expectativas, sentimentos de fome e de sede, processos de raciocínio e reflexão, ser inteligente, organizado e sagaz, tendemos a pressupor finalidades correlatas: o almejo, o querer e a expectativa são, comumente, de obtenção ou realização de algo; o ter fome e o ter sede estão relacionados à obtenção de recursos alimentícios e líquidos saciadores; o pensar e o refletir servem para várias coisas, relacionadas à solução de problemas e, de modo geral, à lida com o ambiente; inteligência, organização e sagacidade são atributos muitas vezes desejados pelos benefícios que propiciam; e assim por diante. Caso tais fenômenos, aos quais nos remetemos através do vocabulário psicológico ordinário, exibam alguma contrapartida teleológica, qual seria esta contrapartida? Se não há alguma, há, presumivelmente, pelo menos algo que aparente ser uma. A abordagem de Rachlin, como vimos, aponta para padrões operantes de comportamento como contrapartida, qualificando-os como causas finais.

Nesta seção, procuramos sugerir, a partir da abordagem de Rachlin, uma visão evolucionista sobre a característica teleológica de predicações psicológicas ordinárias ‒ assim propondo, de modo mais geral, uma visão evolucionista de atributos aos quais remetem. Acreditamos que, com tais predicações, estamos remetendo-nos a entidades que possuem funções (tal como propõe o funcionalismo, como tratamos no Capítulo II), em especial, funções conforme caracterizadas pela análise etiológica, que são consideradas sinônimas de funções biológicas (tal como propõe o funcionalismo teleológico ou teleofuncionalismo62). Ou

seja, acreditamos que a contrapartida daquela característica teleológica reside, aproximadamente, em funções deste tipo, possuídas por padrões de comportamento. Na medida em que vimos limitando nossa tese sobre as condições de verdade, em geral, às categorias (a), (b) e (d), fazemos o mesmo com relação à presente tese.

62 Cf. Dennett (1987a), Lycan (1981), Millikan (1984) e Sober (1985). Há uma versão rudimentar já em Dennett (1969, p. 43ss).

Porém, deixamos, parcialmente, em aberto o grau de generalidade desta ideia. Uma qualificação que fazemos acerca disso é que nem sempre padrões operantes de comportamento são selecionados diretamente, sendo, às vezes, cooptações de outros (isto é, há casos análogos a exaptações da evolução em nível filogenético), e possivelmente em tais casos não possuam funções; mas há predicações psicológicas ordinárias que talvez sejam satisfeitas por eles.

O que fazemos, aqui, então, é alimentar a hipótese de um teleofuncionalismo nos moldes da abordagem de Rachlin e de nossos delineamentos acima. Dado que deixamos em aberto, parcialmente, o grau de generalidade da ideia teleofuncionalista, podemos considerar que se trata apenas de uma versão branda dela, em termos de a veracidade de predicações psicológicas ordinárias estar, comumente (e não necessariamente sempre), ancorada em funções como aqui entendidas. Oferecemos algumas razões para a hipótese de que padrões de comportamento, tanto operantes como respondentes, são entidades que costumam ter funções deste tipo. Dependendo de como a teleologia da abordagem de Rachlin for entendida, parte do que fazemos é desvendar um fundo evolucionista que esse autor apresenta em termos aristotélicos; ou seja, explicitar a visão do caráter teleológico de predicações psicológicas ordinárias como sendo razão de aspectos evolutivos de padrões de comportamento (mas inclusive respondentes). Talvez Rachlin não aceite tal visão, mas, de qualquer forma, consideramos a intuição geral teleofuncionalista (e sem mentalismo) um desiderato.

A teleologia, na abordagem de Rachlin, dá-se chamando atenção para causas finais, contrastando-as com as causas eficientes ou mecânicas63. As causas finais de atos e atividades

são, segundo a abordagem, os padrões molares nos quais se encaixam, ou seja, as contingências molares de reforço e de punição; e suas causas eficientes são as entidades estruturais (neurofisiológicas ou similares) subjacentes. A distinção reflete-se em dois tipos de perguntas que podemos fazer sobre a ocorrência de atos e atividades, a saber, perguntas sobre por que se dão e perguntas sobre como se dão. Nessa medida, Rachlin parece considerar sua perspectiva sobre conceitos psicológicos ordinários como sendo teleológica por relacionar esses conceitos àquilo que entende como causas finais, em contraste com causas eficientes.

A conceptualização dos padrões molares como causas finais de atos e atividades é, provavelmente, pelo menos em parte, uma maneira de contrastar o modo causal envolvido

neles com a causação puramente mecanicista64. Sob este ângulo, a teleologia sugerida por

Rachlin pode ser entendida em termos de um contraste similar àquele feito (dentre outros autores) por Mayr (1961), entre causas últimas e causas próximas de traços biológicos, e, correspondentemente, entre o porquê e o como deles; no âmbito, em especial, da evolução do comportamento, o contraste é salientado por Skinner65. Segundo Mayr (1961, p. 1502-1503),

ao considerarmos um traço biológico, podemo-nos perguntar pelos processos evolutivos dos quais ele resulta, destacando-se os processos de seleção natural, que são processos históricos, descontínuos no tempo e no espaço – as causas últimas ou remotas do traço –; e, por outro lado, podemos estar interessados pelos processos estruturais envolvidos, ou seja, condições físico-químicas subjacentes ao traço – suas causas próximas ou imediatas. No primeiro caso, as perguntas são sobre por que razão ele existe, no sentido específico de perguntas sobre os processos fundamentais dos quais advém. No segundo caso, as perguntas são sobre a maneira como o traço funciona. Por exemplo, podemos estar interessados pela razão de haver corações ou de haver fotossíntese, e, então, devemos considerar a história evolutiva que explica por que tais traços existem em certas espécies; ou podemos estar curiosos pelos mecanismos e aspectos anatômicos que fazem os corações bombearem sangue ou as plantas executaram a fotossíntese diante de determinadas condições presentes do ambiente. De modo análogo, os comportamentos operantes possuem causas evolutivas, que correspondem a por que eles ocorrem, nomeadamente, as contingências de reforço e de punição; e têm condições físicas de base (neurofisiológicas ou similares) como causas próximas, que correspondem a como se dão. Nos termos de Skinner,

A fisiologia estuda o produto do qual as ciências [comportamentais] da variação e da seleção estudam a produção. O corpo funciona como funciona por causa das leis da física e da química; ele faz aquilo que ele faz por causa de sua exposição a contingências de variação e seleção. A fisiologia diz-nos como o corpo funciona; as ciências da variação e da seleção dizem-nos por que é um corpo que funciona dessa maneira. (SKINNER, 1990, p. 1208; grifos do autor; trad. nossa)

Tanto Mayr (1961, p. 1503-1504) como Skinner66, entretanto, rejeitam que as causas últimas

sejam teleológicas. O teleológico estaria relacionado a fins preestabelecidos, mas as seleções natural e operante não visam a fins preestabelecidos. O que exibe algo semelhante a uma

64 Isso é sugerido por Baum (1997).

65 Cf., por exemplo, Skinner (1976, p. 12-14, 1988, 1990). Cf. também Alessi (1992). 66 Cf., por exemplo, Skinner (1969c, p. 193-194, p. 203, 1976, p. 61-63).

finalidade, segundo esses autores, são os resultados dessas causas, a saber, as adaptações (no sentido estrito do termo, no caso da seleção natural, e em um sentido lato, no caso da seleção operante67) ao ambiente. Já que Rachlin entende as contingências de reforço como causas

finais, é provável que as qualifique desse modo como, pelo menos em parte, uma forma de contrastá-las com causas eficientes.

O aspecto teleológico da perspectiva de Rachlin pode ser interpretado também, sob um ângulo correlato, como ênfase no caráter funcional dos comportamentos; não só no sentido (como por vezes se entende seu caráter funcional) de que se definem pelas suas relações com aspectos do ambiente maior (ao invés de por entidades estruturais), mas também de que possuem funções. O autor diz que o behaviorismo teleológico “foca sua atenção sobre a função dos atos, incluindo atos linguísticos”68, ou seja, naquilo para o que eles servem. Essa

consideração, aliada à sua tese de que as predicações psicológicas ordinárias remetem ao porquê dos comportamentos, é compatível com a ideia de que o teleológico, em sua abordagem, assemelha-se àquele do teleofuncionalismo. Independentemente, porém, de se esta interpretação é plausível, o que propomos é que as predicações psicológicas ordinárias costumam remeter a funções.

O sentido geral da noção de função conforme a análise etiológica é o de tarefas que um traço desempenha para o que foi selecionado, em um processo de seleção pelas consequências69. Não se trata de algo qualquer que um traço faça, posto que aquilo que ele faz

pode ser algo puramente acidental; antes, trata-se de algo para o qual o traço serve por sua própria natureza, tendo sido selecionado para realizá-lo. Além disso, o traço, por alguma razão, pode não desempenhar, ou pode deixar de desempenhar, sua função, mas continuar a possui-la. A noção é expressa (em uma caracterização geralmente tomada como referência principal) por Wright (1973), sinteticamente, da seguinte maneira:

A função de [um traço] X é Z significa que:

[…] (a) X está lá [isto é, está onde se encontra, ou existe (é algo), dependendo

67 A noção de adaptação é retomada adiante, ainda nesta seção.

68 Rachlin (1995, p. 148; grifo do autor; trad. nossa). Cf. também Logue (1995) e Rachlin (2007, p. 136).

69 Cf., por exemplo, Chediak (2011, p. 89), Godfrey-Smith (1994, passim), Millikan (1993d, p. 35-36) e Neander (1991, p. 173-174). Esses autores, entretanto, detêm-se, frequentemente, apenas à seleção natural. Baseamo-nos na análise etiológica porque ela é a principal opção evolucionista de que dispomos, além de ser adequada, conforme sugerimos, para nossa proposta, e, também, é a mais razoável, posto que captura as nuanças em seguida expostas. Sobre esse último ponto, cf., por exemplo, Millikan (1993c, 1993d) e Wright (1973).

do caso70] porque faz Z, [e]

(b) Z é uma consequência (ou resultado) de X estar lá. (WRIGHT, 1973, p. 161)

A condição (a) estabelece que um exemplar (token) x de um traço X ter a função Z é o porquê de x estar ali, em um sentido etiológico (ou causal). Ela estabelece, assim, uma equivalência entre perguntar-se o porquê ou razão do traço e perguntar-se pela sua função. Por exemplo, a clorofila tem a função de executar a fotossíntese no sentido de que o sistema ter clorofila o permite fazer fotossíntese; corações terem a função de bombear sangue quer dizer que existem porque bombeiam sangue; certos animais e vegetais possuem espinhos, capacidades de mudar de pigmentação, ou peçonhas, porque tais traços os protegem contra seus predadores; uma larga variedade de comportamentos respondentes incondicionados existe porque, similarmente, são traços que os protegem contra predadores e outras condições aversivas; etc. Tal condição procura excluir meros acidentes: ela é uma forma de “colocar em termos precisos a moral do nosso exame da distinção entre função e acidente”71. De fato, quando

dizemos que algo tem uma função, estamos distinguindo entre aquilo para o que ele serve e aquilo que ele faz simplesmente por acidente. Por exemplo, não dizemos que os corações existam para fazer ruídos, ainda que ruídos ocorram quando funcionam; e a peçonha de alguns animais pode ser boa para fabricar alguns remédios, mas isso não significa que ela se encontre nesses animais porque tenham essa utilidade (que é meramente acidental em relação a “estarem lá” neles).

A condição (b) especifica o tipo de etiologia (ou causação) envolvida, a saber, que ela é de tipo seletivo: “Quando dizemos que a função de X é Z (ou fazer Z), estamos dizendo que X está lá porque faz Z, mas com uma qualificação a mais. Estamos explicando como X veio a estar lá, mas apenas certos tipos de explicação […] darão conta disso”72. Ou seja, quando

dizemos que X tem a função de fazer Z, estamos dizendo que Z ocorre como resultado ou consequência de X existir e, nisso, remetendo-nos à maneira como X veio a existir: aqueles itens de tipo X que, no passado, tiveram como resultado Z, passaram a ocorrer com maior frequência. Por exemplo, vegetais que, no passado, a partir de clorofila, tiveram como resultado fotossíntese, passaram a replicar-se com frequência maior; certas aranhas, que, no

70 Cf. Wright (1973, p. 158). 71 Wright (1973, p. 158; trad. nossa). 72 Wright (1973, p. 160; trad. nossa).

passado, desenvolveram a capacidade de produzir e injetar peçonha em predadores, vieram, similarmente, a ter um maior sucesso reprodutivo (isto é, um aumento de sua aptidão – fittness enhancement); etc. Ao levarmos em conta este vínculo das funções com histórias de seleção, vemos preservada a intuição de que o exemplar de um traço pode, eventualmente, não desempenhar (ou deixar de desempenhar) sua função. Possuir uma função, assim entendida, é uma questão de ter uma história de seleção apropriada, a qual não garante, por si só, que um exemplar a realizará. Em resumo, a função biológica de um traço e seu porquê são intercambiáveis: ambos referem-se às suas causas seletivas73.

Padrões operantes de comportamento satisfazem tal caracterização74. Retomando, aqui,

o exemplo do macaco dado na seção (1.1), a emissão da taxa apropriada do pressionar a alavanca ocorre, no contexto do dispositivo, para a obtenção do alimento, e não para produzir o ruído da alavanca, mover uma quantidade de ar no ambiente ou outros resultados meramente acidentais. Além disso, o padrão de pressionar a alavanca deve sua existência aos processos passados de obtenção do alimento a partir de respostas de pressão à alavanca, isto é, fazem parte do repertório comportamental do organismo em razão de uma história de reforço. Eventualmente, o macaco pode realizar os atos relevantes sem que resultem na banana como consequência, porque, digamos, o dispositivo é desligado por um tempo, ou é preciso fazer uma reposição de bananas; mas isso não quer dizer que estes atos, em tal contexto, tenham deixado de possuir a função de obter o alimento75.

O caráter funcional dos operantes, na acepção biológica da noção de função, reside em eles serem traços que resultam de seleção pelas consequências. Artiga (2010), por exemplo, mostra que eles possuem esse caráter esquematizando o conceito de função biológica ou etiológica com uma explicitação da estrutura do referido modo causal, tal como delineada por Hull et al. (2001):

Mesmo se os pormenores [sobre o conceito de função etiológica] variem entre diferentes filósofos, permitam-me tentar pôr em evidência uma definição que, penso, muitos deles aceitam:

[…] Um membro d de um tipo D tem uma função etiológica F se, e só se:

73 Sobre a análise de Wright (1973), cf. também Chediak (2011, p. 87-89), Godfrey-Smith (1994, p. 345-347) e Nunes-Neto e El-Hani (2009, p. 360ss).

74 Cf., por exemplo, Ringen (1976, p. 234ss). Ringen, contudo, deixa de perceber a generalidade da noção, ao considerar que apenas os operantes a satisfazem, e não os respondentes (sequer os incondicionados).

75 Seguindo, aproximadamente, Millikan (1984, 1993a), isso pode ser entendido como intencionalidade sem correspondência.

(1) Membros passados de D realizaram F;

(2) Ds que realizaram F foram selecionados sobre outros competidores (digamos, Ds que realizaram G). O processo de seleção teve as seguintes características (Hull et.

al., 2001):

(a) Replicação: Membros de D são, em grande medida, cópias uns dos outros.

(b) Variação: A replicação incluiu algumas mudanças que originaram F e os

competidores de F.

(c) Interação ambiental: A interação de Ds com circunstâncias externas

causaram replicação diferencial.

(3) 1 e 2 explicam (parcialmente) porque d existe. (ARTIGA, 2010, p. 198; grifos do autor, exceto nos predicados e variáveis de objeto; trad. nossa)

Os comportamentos operantes são itens que satisfazem essas condições, conforme aponta o próprio Artiga (2010)76. Vimos, na seção (1.1), que os padrões que eles compõem (os tipos Ds,

no caso da esquematização de Artiga) exemplificam causação seletiva, e, além disso, trata-se de algo ressaltado por vários autores, inclusive por Rachlin (1976, p. 227ss) e Hull et al. (2001); assim, podemos considerar a condição (2) como sendo satisfeita77. Comportamentos

operantes são emitidos em um ambiente, variando quanto a suas propriedades, alguns com uma determinada propriedade (F) relevante nele; no exemplo do macaco, seus atos, naquele contexto, variam, inicialmente, desde em possuírem ou não uma força suficiente para pressionar a alavanca, até quanto a emitirem ou não a taxa suficiente dos atos e, assim, quanto à propriedade relevante (F) de obtenção do alimento como consequência. A posse desta propriedade por determinados atos proporciona-lhes um sucesso diferencial, em comparação com aqueles que não a possuem, recorrendo com maior frequência, em circunstâncias semelhantes78. Assim, alguns membros passados de um padrão operante exibem uma

propriedade relevante F, o que satisfaz a condição (1); e, passando a ter um sucesso diferencial, devem sua existência à história interativa de atos similares que produziram as consequências relevantes, o que satisfaz a condição (3). Portanto, as condições da caracterização são satisfeitas.

76 A definição de Artiga é bastante próxima daquela de Millikan (1984, p. 17ss, 1993d, p. 31-33), que chama as funções em questão de funções próprias (para contrastar com coisas que um traço faz apenas por acidente) e que, igualmente, reconhece os operantes como sendo entidades que as possuem.

77 Isso com a qualificação apenas de que, conforme vários autores que comentam Hull et al.(2001), incluindo, dentre outros, Baum (2001) e Godfrey-Smith (2001), o elemento da seleção que Hull et al. (2001) caracterizam como replicação é desnecessariamente restritivo. O elemento pode ser expresso, segundo Baum (2001), em termos de recorrência (ou repetição) de membros de um agregado (isto é, de membros de D). Assim, tal como inclusive faz Artiga (2010), não precisamos pressupor, aqui, a caracterização específica de Hull et al. (2001) do referido elemento. De qualquer forma, Hull et al. (2001) acreditam que ele está presente na seleção operante, na forma de entidades neurofisiológicas. Note-se que não de trata de analogia com a seleção natural, mas de compartilhamento de características gerais.

Podemos considerar, então, conforme vimos, que comportamentos operantes e comportamentos respondentes incondicionados exibem funções; e quanto aos respondentes condicionados, será que as possuem? É muito provável que sim, posto que são comportamentos aprendidos ontogeneticamente (embora sob bases filogenéticas), como os operantes o são, e que têm, igualmente, uma tendência a contribuir, de maneira biologicamente relevante, para o organismo, em relação ao ambiente em que eles se desenvolvem (ainda que não necessariamente em relação a outros ambientes nos quais o organismo venha a interagir). Por exemplo, um comportamento condicionado de salivar, de um cão, eliciado por um som que costuma ser acompanhado por comida, pode, nessa mesma medida, contribuir a coisas como uma preparação prévia para o comportamento alimentar; alguém pode ter certas respostas condicionadas relacionadas a tensões e nervosismos, diante de certos objetos perigosos como pontas de facas afiadas, espinhos ou lanças, por ter-se machucado com objetos semelhantes, o que pode contribuir para proteger-se de novos problemas com eles. Raciocinando por analogia, essa similaridade dos respondentes condicionados com as demais formas de comportamento é um bom indício de que eles também exibem funções (inclusive de feição biológica).

Podemos, ainda, mencionar, em apoio desta linha de raciocínio, a parte correlata da caracterização de Millikan dessas funções. Segundo Millikan (1984, p. 39ss, 1993c, p. 13-14), há traços que exibem funções derivadas dos dispositivos que os produzem79, funções essas

para além da função de produção desses traços (exibida pelos dispositivos). Exemplo destes são as diferentes pigmentações exibidas pelo camaleão, em conformidade com os pigmentos das superfícies nas quais ele anda; esses traços, podemos supor, possuem funções relacionadas à proteção e à alimentação do animal, derivadas do dispositivo de rearranjamento de pigmentação (o qual, por sua vez, possui a função de alterar a pigmentação). Segundo a própria Millikan, os comportamentos respondentes condicionados também são casos de traços com funções derivadas. Embora, como vimos em (1.3), comportamentos respondentes condicionados (diferentemente dos operantes) sejam causados por estímulos antecedentes eliciadores, e não por seleção pelas consequências, eles possuem funções deste tipo na medida em que se dão a partir de dispositivos filogenéticos herdados que possuem funções de produzi-los diante de estímulos condicionados, tendo esses dispositivos advindos de processos

seletivos por haverem desempenhado essas funções80. Logo, caso Millikan estiver correta,

temos, seguindo seu raciocínio, uma segunda justificativa para a suposição de que também os respondentes condicionados exibem funções81.

Por fim, temos, no entanto, algumas qualificações, a partir da consideração de outros aspectos dos comportamentos operantes. Eles são análogos às adaptações produzidas pela seleção filogenética, quando advindos, efetivamente, de seleção direta para eles82, mas,

algumas vezes, eles não advêm dessa maneira; nomeadamente, quando são análogos ao que Gould e Vrba (1982) chamam de exaptações. As adaptações, segundo a caracterização de Gould e Vrba (1982, p. 5-6), são traços moldados pela seleção natural para a produção de seus efeitos, os quais são, neste caso, funções. Por exemplo, atribui-se às penas uma origem seletiva, em certa espécie de dinossauro, para o funcionamento como isolantes térmicos, e, assim sendo, são adaptações primárias para termorregulação (ou seja, possuem isso como função). No caso das adaptações produzidas pela seleção operante, trata-se de adaptações em um sentido lato, e não exatamente no mesmo sentido, pelo próprio fato de que a seleção envolvida não é, estritamente, a seleção natural. O comportamento operante de pressionar a alavanca, pelo macaco, no caso do exemplo anterior, é uma adaptação – em acepção lata – para a obtenção de banana, no sentido de que foi selecionado em razão do desempenho desta função83.

Gould e Vrba (1982, p. 5-6) chamam de exaptações os traços que são cooptações; isto é, aqueles que não são moldados por seleção direta para uma função, antes originando-se de adaptações prévias (ou seja, a partir de traços prévios que foram moldados pela seleção natural para outra função), ou mesmo a partir de traços que não são adaptações. Segundo