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Capítulo 1 – Concepções construtivistas da moral em psicologia

1.1.3. Noção de justiça

Para estudar a emergência da responsabilidade subjectiva e da autonomia moral, Piaget (1932/1984), entre as diversas noções associadas à moralidade, centrou-se naquela que considerava a mais racional: a noção de justiça. Mas, considerou que é fundamental diferenciar dois aspectos ligados à justiça: o primeiro, remete para a justiça como factor de equilíbrio nas relações sociais, ou seja para a noção de igualdade, típica da “justiça distributiva” (p. 157); o segundo, diz respeito aos julgamentos infantis sobre as sanções.

Começou por estudar este segundo aspecto pela sua menor ligação com a cooperação social, o que o levou a analisar a forma como as crianças avaliam as punições perante condutas de transgressão. Relativamente aos juízos sobre as sanções, para além da noção de igualdade, emerge outra noção, a de proporcionalidade entre conduta e sanção, típica da “justiça retributiva” (p. 157). Assim, perante condutas de transgressão pode considerar-se a necessidade de punição, que será tanto mais justa quanto for mais severa; esta sanção, designada de “expiatória”, é vista como mais eficaz, pois a criança castigada saberá no futuro cumprir melhor os seus deveres e

obrigações. Contudo, pode-se antes optar por uma sanção por “reciprocidade” (pp. 158- 159), ou seja, pela simples necessidade de restituição ou assunção pelo culpado das consequências da falta; neste caso, a punição cede lugar a uma simples repreensão ou explicação. Mais uma vez, Piaget (1932/1984) recorreu a histórias, de que deixamos aqui um exemplo:

“Uma tarde, um menino brincava no seu quarto. O seu pai pedira-lhe para não jogar à bola, para não partir os vidros. Mal saiu, o menino tirou a bola do armário e pôs-se a jogar. Mas eis que, de repente, a bola atingiu o vidro e partiu-o completamente. Quando o pai voltou, e viu o que se passara, pensou em três punições: 1ª. Deixar o vidro partido alguns dias (e então, como era inverno, o menino não poderia brincar no seu quarto). 2ª. Fazê-lo pagar o vidro. 3ª. Privá-lo de todos os seus brinquedos durante uma semana.” (p. 160).

Nesta pesquisa o autor analisou a opção das crianças por um de dois tipos de sanções: as sanções expiatórias e as sanções por reciprocidade. De uma forma geral, ele verificou que as sanções por reciprocidade eram mais escolhidas pelas crianças mais velhas e as sanções expiatórias pelas crianças mais novas, embora pudessem prevalecer em qualquer idade, inclusive em adultos.

Piaget (1932/1984) procurou também analisar quais as sanções que as crianças consideravam mais eficazes para prevenir a reincidência da conduta imoral, apresentando uma sequência de histórias como a seguinte:

“Um menino brincava no seu quarto, enquanto o pai trabalhava na cidade. Após algum tempo, teve vontade de desenhar. Mas, não tinha papel. Lembrou-se então que numa gaveta da secretária do pai estavam belas folhas brancas. Foi sorrateiramente procurá-las, encontrou-as e tirou todas. Quando o pai voltou, verificou que a gaveta estava em desordem e acabou por descobrir que tinham roubado o papel. Foi, logo em seguida, ao quarto do menino e viu no chão todas as folhas rabiscadas com lápis de cor. Então, muito zangado, deu uma boa surra no menino.

Noutra história, quase igual, o pai não o puniu o filho e apenas lhe explicou o que não estava certo, dizendo-lhe: 'Quando não estás, quando vais à escola, se eu te roubar brinquedos do teu armário, tu não irias gostar. Então, quando eu não estiver, nunca mais deves roubar o meu papel. Não me agrada. Não é bonito fazer isso.

Alguns dias depois, os dois meninos estavam a brincar, cada um no seu jardim e cada um deles encontrou um lápis de cor que era do pai. E cada um deles lembrou-se que, ao meio-dia, o pai dissera, que

estava aborrecido, porque perdera o lápis de cor na rua e não conseguia achá-lo. Pensaram então que, se escondessem os lápis de cor, ninguém saberia de nada e não haveria punição….Mas, um dos meninos guardou para si o lápis de cor e o outro levou o lápis de cor ao pai. Adivinha quem o devolveu: foi o menino que foi bem castigado ou foi o menino a quem foi apenas explicado o que não devia fazer?” (p. 171).

Quase todas as crianças, até aos 7 anos, declararam-se a favor da punição, enquanto mais de metade das crianças de 8 a 10 anos preferiram a outra opção, o que mostra que, para as crianças pequenas, a prevenção da reincidência está associada à expiação e, para as mais velhas, a prevenção passa cada vez mais pela utilização de medidas de reciprocidade ao invés das medidas expiatórias.

Esta evolução sugere então duas noções de justiça, uma mais ligada a uma prática sancionatória, proporcional à transgressão, e uma justiça distributiva em que o sujeito procura a igualdade na distribuição de direitos, obrigações ou recompensas, ou usa critérios equitativos com base no mérito, necessidade ou capacidade. Piaget (1932/1984) investigou estas duas formas de justiça utilizando novas histórias.

“Uma mãe tinha duas filhas, uma obediente, outra desobediente. Gostava mais daquela que obedecia e dava-lhe os maiores pedaços de bolo. O que achas disso?” (p. 201).

Piaget verificou que a atitude da mãe foi aprovada por 70% das crianças mais novas (6-9 anos) e apenas 40% das crianças mais velhas (10-13 anos).

“Era uma vez uma mãe que passeava com os filhos nas margens do rio Ródano, numa tarde de feriado. Às quatro horas deu um pãozinho a cada um. Puseram-se a comer, com excepção do mais pequeno, que estava distraído e que deixou cair o pão na água. O que fez a mãe? Devia dar-lhe outro?” (p. 204).

Verificou que 48% das crianças de 6-9 anos optaram pela justiça retributiva, ou seja, pela sanção de não dar outro pão ao filho, opção esta que diminuía com a idade, desaparecendo praticamente a partir dos 10 anos (3%). Pelo contrário, a opção pela justiça distributiva aumentava com a idade e era inicialmente mais apoiada na noção de igualdade, deve dar outro pão para que cada menino coma um (35% das respostas aos 6- 9 anos, 55% aos 10-12 anos e apenas 5% aos 13-14 anos) e, posteriormente, na noção

de equidade, deve dar outro pão porque o filho é pequeno (17% das respostas aos 6-9 anos, 42% aos 10-12 anos e 95% aos 13-14 anos).

A opção pela justiça retributiva apela portanto para o realismo moral e revela insensibilidade aos aspectos subjectivos, psicológicos, da situação, o que não ocorre com as crianças que optam pela justiça distributiva, que mostram uma compreensão moral, considerando, por exemplo, que a preferência da mãe pela filha obediente irá desencorajar a outra, pois pode torná-la ciumenta e revoltada. Ora, segundo o autor, o desenvolvimento da inteligência e a experiência de cooperação, oferecida pelo contexto igualitário da relação de pares, constituem os factores decisivos de todas as progressões evolutivas que encontrou nas várias dimensões consideradas.