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Capítulo 1 – Concepções construtivistas da moral em psicologia

1.1.2. Noção de responsabilidade

Depois de ter estudado a prática e a consciência das regras, Piaget (1932/1984) prossegue as suas pesquisas sobre os efeitos da coacção e cooperação social, o que o leva a descrever dois níveis de desenvolvimento que designa “heteronomia” e “autonomia moral”.

Para isso, recorreu a uma metodologia baseada em histórias, mais ou menos dilemáticas, que lhe permitiram distinguir uma “concepção objectiva de

responsabilidade”, relacionada com a heteronomia moral, e uma “concepção subjectiva

de responsabilidade” ou sentido de justiça, relacionada com a autonomia moral (p. 94). Para estudar a primeira, utiliza vários tipos de histórias, por exemplo, sobre as condutas desajeitadas das crianças que, frequentemente, provocam a ira dos adultos. Mais precisamente, Piaget confronta as crianças com pares de histórias sobre condutas desajeitadas, uma que provoca uma perda material importante mas que corresponde a uma acção “bem-intencionada” e outra que provoca uma pequena perda material mas que corresponde a uma acção “mal intencionada” (pp. 101-102). Por exemplo:

“Era uma vez uma menina que se chamava Maria. A Maria quis fazer uma surpresa à mãe e recortar imagens para ela. Mas, como ainda não sabia bem usar a tesoura, sem querer, fez um grande buraco no seu vestido. ”

“Um dia que a mãe não estava em casa uma menina que se chamava Margarida foi buscar a tesoura da mãe. Quando estava a brincar com a tesoura e como ainda não sabia bem utilizá-la fez um pequenino corte no seu vestido.” (Piaget, 1932/1984, p. 102).

Após ler um par de histórias, Piaget (1932/1984) pedia às crianças para as repetirem pelas suas palavras o que lhe permitia avaliar se elas as tinham compreendido.

Em seguida, indagava as crianças: (1) Os dois meninos são igualmente culpados, ou um

é mais culpado do que o outro? (2) Qual dos dois é mais culpado do que o outro?

Porquê? (p. 103). As respostas das crianças permitiram verificar que a responsabilidade objectiva, ou seja, avaliação do acto com base na consequência material, diminui com a idade, não tendo sido encontrada esta resposta a partir dos 10 anos. Em média, as crianças de 7 anos tendem a fazer avaliações de responsabilidade objectiva e as crianças de 9 anos tendem a fazer avaliações de responsabilidade subjectiva, uma vez já consideram a intencionalidade do acto. Esta mudança, não apela para a noção de

estádio, mas apenas para a ocorrência de dois processos inter-relacionados, uma vez que o declínio de um coincide com o desenvolvimento do outro.

Piaget (1932/1984) considerou então que a responsabilidade objectiva era um produto da coacção adulta compreendida à luz do egocentrismo infantil. De facto, um adulto fica, na maioria das vezes, mais zangado se a criança partir 15 chávenas do que se partir apenas uma, independentemente, até certo ponto, da intencionalidade do acto. Mesmo quando os pais procuram educar os filhos de acordo com a moral da intenção e julgam as condutas desajeitadas como faltas materiais, e não morais, as crianças não conseguem fazer essa distinção. O que pode então explicar a predominância de juízos de responsabilidade objectiva nas crianças mais novas, para além da intensidade e extensão da acção adulta? O autor considera que as regras impostas pelos adultos, tanto em forma verbal (instruções, proibições) como numa forma material (repreensões, castigos), antes de serem intelectualmente assimiladas pela criança, constituem obrigações categóricas. No contexto da coacção adulta e de forma mais ou menos independente da acção concreta do adulto, a criança tende para o respeito unilateral e para a responsabilidade objectiva, mas o egocentrismo infantil faz com que a regra permaneça em condição de externalidade, não internalizada, e por isso, apesar do seu carácter sagrado e obrigatório, não é frequentemente praticada. Porém, sendo o realismo moral um produto da coação e das formas primitivas do respeito unilateral, de um ponto de vista desenvolvimentista, importa saber se esse realismo moral constitui um “produto fatal” ou um “produto

contingente e indirecto?” (Piaget, 1932/1984, p. 111).

A tentativa de responder a esta questão foi realizada pelo estudo da mentira, uma outra dimensão moral, de maior gravidade para a consciência da criança e de maior intimidade no mundo da avaliação infantil. Para tal, o autor construiu uma entrevista com as seguintes questões: “definição da mentira, responsabilidade em função do conteúdo das mentiras, responsabilidade em função das consequências materiais” (p.

114). Para analisar a relação entre a mentira e as modalidades de respeito, unilateral e mútuo, explorou ainda duas questões adicionais: pode-se mentir entre crianças e porque não se deve mentir?

A análise da definição da mentira permitiu encontrar três tipos de respostas que apresentamos pela ordem em que aparecem no curso do desenvolvimento: (1) uma mentira é um nome feio; (2) uma mentira é alguma coisa que não é verdade; (3) uma mentira é uma afirmação intencionalmente falsa. Ora, se a definição mais precoce revela uma concepção exterior à consciência moral, pois apenas está ligada a uma proibição do tipo de linguagem, a segunda definição parece, à primeira vista, revelar a compreensão correcta da noção de mentira. Porém, a indagação de crianças menores de 8 anos mostra que, embora fazendo a distinção ao nível da prática, não a fazem ao nível do pensamento. Elas ainda não conseguem ainda distinguir claramente o acto intencional de um erro involuntário e tanto o erro, como a mentira propriamente dita, acabam por ser incluídos na mesma categoria conceptual. Dito de outro modo, no plano da consciência moral, a criança ainda não dissocia a intencionalidade da acção involuntária. Contudo, com o desaparecimento do animismo, do artificialismo, do finalismo e, em geral, de uma organização pré-operatória do pensamento, esta indissociação começa a evoluir para uma diferenciação clara entre os actos intencionais e os actos involuntários, o que normalmente acontece por volta dos 10/11 anos.

A segunda e terceira questões da metodologia piagetiana apelavam para a avaliação de histórias, em função do conteúdo das mentiras e em função das suas consequências materiais. Para investigar o efeito do conteúdo da mentira, Piaget (1932/1984) apresentava, por exemplo, o seguinte par de histórias:

“Um menino (ou menina) passeava na rua e encontrou um cão grande que lhe provocou muito medo. Voltou então para casa e contou à mãe que tinha visto um cão tão grande como uma vaca.”

“Uma criança voltou da escola e contou à mãe que a professora lhe tinha dado boas notas. Mas isto não era verdade: a professora não lhe dera nenhuma nota, nem boa nem má. Então a sua mãe ficou muito contente e recompensou-a” (pp. 120-121)

E, para investigar o efeito das consequências da mentira, Piaget (1932/1984) apresentava, por exemplo, o seguinte par de histórias:

“Um menino conhecia mal os nomes das ruas e não sabia bem onde era a rua das bananeiras (…). Um dia, um senhor deteve-o na rua e perguntou-lhe: 'Onde é a rua

das bananeiras?' Então o menino respondeu: 'Eu penso que é para lá'. Mas não era para lá. O senhor perdeu-se completamente e não conseguiu encontrar a casa que procurava.”

“Um menino conhecia bem o nome das ruas. Um dia, um senhor perguntou-lhe: 'Onde é a rua das bananeiras?' Mas o menino resolveu pregar-lhe uma partida e disse-lhe: 'É para lá', indicando uma rua errada. Só que o senhor não se perdeu e, depois, conseguiu encontrar o seu caminho.” (p. 121).

A indagação sobre o conteúdo das mentiras permitiu verificar que as crianças reconheciam facilmente que a primeira história referia um simples exagero, provocado pelo medo, enquanto a segunda configurava um verdadeiro engano, controlado pelo desejo de recompensa. Contudo, quando induzidas a escolher a mentira mais grave e a justificar a sua opção, as crianças mais novas revelaram uma orientação para a responsabilidade objectiva, avaliando as mentiras pela sua maior ou menor verosimilhança, ou seja, considerando mais grave a primeira mentira, porque narra uma situação que, de facto, nunca ocorre. Pelo contrário, as crianças mais velhas conseguiam ir além do conteúdo perceptivo da situação e consideravam mais a intenção do acto de mentir. Da mesma forma, na avaliação dos resultados materiais das acções, as crianças de 7 anos, em média, avaliavam a mentira apenas sob o ponto de vista da sua consequência, ou seja, considerando mais grave a primeira mentira, enquanto as de 9-10 anos invocavam a intencionalidade da acção.

Estes resultados mostram, de novo, como as leis do pensamento infantil em geral, e o egocentrismo em particular, se aplicam a todos os domínios, inclusive o moral. Dito de outro modo, o realismo moral associado à noção de mentira nasce do encontro entre as forças antagónicas da coacção social e do egocentrismo inconsciente, pois apesar da força das instruções dos adultos para as crianças não mentirem, essas ordens permanecem externas e a criança mente. Dominada pelo seu egocentrismo, a criança não experimenta uma necessidade efectiva de acomodação à realidade e tende a deformar espontaneamente a verdade em função dos seus desejos e fantasias, ignorando o valor da veracidade. Só quando os hábitos de cooperação convencerem a criança da necessidade de não mentir, ela vai compreender e interiorizar a regra, construir juízos de responsabilidade subjectiva e a necessidade de verdade vai ser intrínseca ao pensamento infantil.

O desenvolvimento da noção e da prática da mentira é portanto consistente com a aquisição das regras do jogo de berlindes que, vistas como sagradas, não são cumpridas pelas crianças, uma vez que só a experiência da troca de pensamento entre

indivíduos, só a transição de relações de respeito unilateral a relações de respeito mútuo permite a descoberta de tudo o que a mentira acarreta. Mas, como se dá essa passagem?

Para responder a esta nova questão, Piaget (1932/1984) analisou a representação da utilidade moral de nunca mentir e investigou a partir de que momento e, sob a influência de que circunstâncias, a criança considera que há uma falta moral nas situações de mentira entre pares.

Vimos anteriormente que a mentira é grave para as crianças pequenas porque os adultos a punem (sinal de heteronomia) e, só para os mais velhos (10/11 anos), a veracidade é necessária para a construção de relações de reciprocidade e de acordo mútuo. Ora, na pesquisa piagetiana, a substituição do respeito unilateral, fonte de absolutismo da ordem, pelo respeito mútuo, fonte de compreensão moral, aparece organizada em três fases distintas: 1ª) a mentira é má porque é objecto de punição e, se não houvesse punições, seria permitida; 2ª) a mentira é má em si própria, mesmo se as punições não existissem; 3ª) a mentira é má porque se opõe à confiança e à afectividade mútua. Em face disto o autor concluiu que, de forma progressiva, a veracidade deixa de ser um dever imposto pela heteronomia moral para se transformar num bem, enquanto tal, na perspectiva de uma consciência autónoma.