• Nenhum resultado encontrado

No que consiste ser negra, pobre e presa?

No documento Ana Luiza de F Biazeto (páginas 52-59)

4. Período neoliberal: o pobre e o negro

4.1. No que consiste ser negra, pobre e presa?

As imagens e sensações que cercam o cotidiano do segmento negro resultam de um processo histórico, o que é evidente diante dos argumentos e releitura de questões diversas, como a racial e as relativas ao sistema punitivo brasileiro, mencionadas anteriormente. É necessário, portanto, agir com naturalidade diante da evidência de que há um recorte racial nos vieses das desigualdades no Brasil, mesmo que o país ainda siga “a velha cartilha de boas maneiras que ensina a ver, mas enxergar o mínimo, ouvir pouco e nunca confessar acerca da matéria racial” (Flauzina, 2008, p. 149).

Isto é traduzido por Lilia Schwarcz14, na Revista Brasileiros, de março de 2010, como o perverso tipo de discriminação ainda em voga no Brasil, chamado por Florestan Fernandes, na década de 70, de “preconceito de ter preconceito”. Ou seja, como não há discriminação oficial, parece não haver preconceito algum.

Contudo Flauzina (2008) afirma que os estudos da criminologia crítica no Brasil não se apropriaram de maneira substantiva das relações existentes entre racismo e sistema penal. A análise nas assimetrias reproduzidas pelo aparato de controle penal a partir das categorias classe e, mais recentemente e ainda de maneira tímida, gênero, secundariza a categoria raça.

Diante dessa tendência, a autora sinaliza que é preciso considerar que se há necessidade em avaliar a categoria gênero, é preciso também categorizar a raça como instrumento de análise, a fim de levar em conta a criminalização e o controle específico que incide sobre negros e negras, quase a metade da população do país. É preciso compreender que, no Brasil,

Estamos diante de uma sociedade de classes racial e sexistamente estruturada. Nessa configuração, a raça tende a promover a hierarquização das funções e a diferenciação do usufruto do trabalho dentro de um universo informado pelo gênero, que determina as atividades destinadas a homens e mulheres também numa lógica de hierarquização. Essas são as categorias que, numa complexa operação, preenchem as lacunas da pirâmide social brasileira, colocando homens e

14 Especialista na questão racial, doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, livre-docente e professora titular desta universidade.

mulheres, negros e brancos, em posições que tendem a ser naturalizadas, apesar da mecânica artificial que as instrumentaliza (idem, p.152).

A partir dessas colocações, é possível entender que - a exemplo do que ocorre com os homens, mesmo que em menor proporção - as influências do sistema penal no que diz respeito à criminalização feminina também foram historicamente formatadas para o controle das mulheres negras.

Ao negligenciar o racismo como uma condicionante fundamental das relações de gênero no sistema penal, é preciso considerar que se perdem de vista os efeitos correlatos de atuação do sistema penal, que, ordinariamente, não estão colocados para as mulheres brancas.

A autora considera que “são, portanto, lacunosas as construções que visam a dar conta do sistema penal sem observar o racismo como seu elemento fundante” (p. 163). Nos sistemas penais marginais, como o brasileiro, que se caracterizam por uma movimentação extremamente violenta, não há como pretender uma abordagem coerente sem politizar a categoria raça. O racismo, nesse sentido, é um pressuposto para a inteligibilidade desse mecanismo de controle social.

Há, portanto, no Brasil um pacto social assimétrico, de herança escravista, cujo fundamento é a expropriação material e simbólica do segmento negro, associado ao caráter desumanizador inerente a esse tipo de estrutura, que confere o livre acesso à corporalidade desse segmento. Flauzina (2008) complementa que os termos desse pacto são os elementos que dão coerência à metodologia truculenta e assassina do empreendimento penal no Brasil. Por isso, o racismo é a lente privilegiada para enxergar os nossos sistemas penais ao longo de todo o processo histórico.

Desta forma, se não há como se investigar a questão criminal sem levar em conta as variáveis de gênero que a acompanham, sinalizando inclusive para o fato de que a “criminologia crítica e a feminista não podem ser duas coisas diversas; devem, necessariamente, constituir uma única” (Baratta, p.43 apud Flauzina, p. 164), também não há como compreender o fenômeno criminal sem levar em conta a presença do racismo como categoria estruturante da movimentação do sistema penal no país.

Ao tratar esta produção intelectual vinculada ao Serviço Social, na qual há abordagem de gênero e raça, faz-se necessário o registro das palavras da secretária de Assistência Social e Direitos Humanos do Governo do Estado do Rio de Janeiro, Benedita da Silva, sobre o panorama da atual situação da mulher negra brasileira:

“Nós mulheres negras brasileiras somos 25% da população. A maioria de nós é analfabeta ou semi-analfabeta. Nossa remuneração está num patamar de um salário mínimo. Muitas de nós chefiam a família em maior número que as mulheres brancas. Tal perfil demonstra que a maioria das mulheres negras vive em condição de extrema pobreza” (Revista Afirmativa, nº 33, p.36).

Esse retrato, abordado no parágrafo acima e na introdução deste capítulo, é corriqueiro nos pavilhões das penitenciárias femininas. A Revista Raça Brasil, uma publicação que tem como público alvo a população negra, veiculou a matéria “Recém-nascidos – vidas no cárcere”, na sua edição número 142, abril de 2010. Em todas as fotos havia mulheres negras, afinal, no Centro de Referência da Gestante Privada de Liberdade, em Vespasiano (MG) – onde a matéria foi feita, 60% das presas são dessa raça/etnia.

Sabe-se, diante da leitura desse trabalho e dos quadros a seguir, que esse não é um caso isolado, mulheres negras - pretas e pardas, conforme identifica o IBGE - são a maioria crescente no sistema prisional brasileiro, de acordo com o Sistema de Informações Penitenciárias (InfoPen) - Estatística15.

O último levantamento do sistema, referente à dezembro de 2009, aponta que há, no Brasil, 31.401 mulheres presas em delegacias de polícia e no sistema penitenciário, no qual encontram-se 24.292, e o qual é referido em números na tabela a seguir.

15 O Sistema de Informações Penitenciárias (InfoPen), criado e gerenciado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), é um programa de coleta de dados, com acesso via Internet, alimentado pelas secretarias estaduais com informações estratégicas sobre os estabelecimentos penais e a população prisional.

Adaptou-se para esta publicação quadros com dados do sistema penitenciário16, no período de junho de 2007 à dezembro de 2009, a fim de demonstrar o crescente número de mulheres presas e como são classificadas por cor de pele/etnia:

Tabela 1 - Quantidade de presas por cor de pele/ etnia – Brasil

Jun.07 Dez. 07 Jun.08 Dez. 08 Jun.09 Dez. 09

Branca 7199 7787 8273 8.497 8.836 9.412 Preta 2627 3220 3258 3.671 3.843 4.278 Negra17 Parda 6664 7336 8321 8.186 9.592 10.212 Amarela 88 125 125 116 107 124 Indígena 44 31 29 36 31 35 Outras 73 95 165 571 271 243

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (Depen)

Há, contudo, uma divergência entre o número total de mulheres no sistema penitenciário, equivalente a 24.292, e o encontrado na soma das mulheres divididas por cor de pele/etnia, que é de 24.304. Ou seja, a quantidade de presas por cor de pele/ etnia em penitenciárias, excedeu o total previsto nestes estabelecimentos.

Apesar de não ser tão expressivo o crescimento de mulheres negras no sistema prisional do Estado de São Paulo, pretas e pardas são mais de 50% do total de mulheres presas. Das 11.079 mulheres presas no Estado de São Paulo, conforme o InfoPen de dezembro de 2009, 7.605 estão em penitenciárias, a maioria delas tem entre 18 e 24 anos, cursou o ensino fundamental incompleto, foi presa por tráfico de entorpecentes e vem de áreas urbanas de municípios do interior. Do total de presas no estado, 3.474 estão em outros estabelecimentos prisionais.

16 A íntegra dos “Relatórios Estatísticos - Analíticos do sistema prisional de cada Estado da Federação”, dos quais foram extraídos os dados, podem ser acessados pela Internet.

17 No indicador “Quantidade de presas por cor de pele/ etnia”, utilizado pelo InfoPen, são usados os termos negra e parda ao invés de preta e parda, como propõe o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Interpretou-se, portanto, neste estudo, que negra foi equivocadamente entendida como sinônimo de preta. Com o objetivo de seguir os critérios do instituto, as expressões foram retificadas.

Tabela 2 - Quantidade de presas por cor de pele/ etnia – São Paulo Jun.07 Dez. 07 Jun.08 Dez. 08 Jun.09 Dez. 09

Branca 3132 2995 3029 3142 3114 3473 Preta 1062 1113 927 1059 981 1058 Negra Parda 2124 2095 2271 2262 2414 2659 Amarela 17 20 24 19 17 19 Indígena 2 1 1 1 2 4 Outras 0 1 0 0 0 1

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (Depen)

São expressas no quadro 7.214 mulheres. Esta diferença com relação à população carcerária do Estado de 391 pessoas é retificada pelo próprio InfoPen na tabela, como “valor automático de correção de itens inconsistentes”.

A partir dos dados expostos, no Brasil ou em São Paulo, pretas e pardas são a maioria no sistema prisional feminino.

Cap. III

PRESAS NUM SOLO DE HISTÓRIA E SILÊNCIO

Acompanhar a rotina de uma penitenciária não é para todos. Para ter acesso à instalação onde se encontra a Penitenciária Feminina de Sant’ana (PFS) e às presas foi preciso desvendar os caminhos de ingresso no sistema prisional. Para entrevistar as mulheres encarceradas, conforme orientação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, buscou-se a autorização da juíza responsável pela Corregedoria dos Presídios Femininos da Capital. Deferido, o pedido seguiu para conhecimento da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo e da direção da PFS, universo desta pesquisa.

Foi atendida a sugestão proposta no Exame de Qualificação de entrevistar duas mulheres negras e duas brancas presas, a fim de verificar diferenças e semelhanças nos relatos ouvidos. Os critérios de escolha para entrevistas emergiram das características da maioria das presas do estado, conforme dados do InfoPen: idade entre 18 e 24 anos, com ensino fundamental incompleto, sendo o tráfico de entorpecentes o crime tentado/ consumado, procedentes de municípios em Regiões Metropolitanas de São Paulo.

Por se tratar de uma pesquisa qualitativa não é preciso um grande número de sujeitos, mas sim aprofundar o conhecimento com quem se dialoga. Foi, portanto, intencionalmente composto o grupo de sujeitas para a realização dessa pesquisa.

O perfil das interlocutoras, diferente do previamente solicitado, foi diversificado pela própria instituição que não se ateve ao requerimento da pesquisa. Apesar do desencontro de informações na penitenciária e ao pouco tempo para a reparação do ocorrido, foi possível manter o delito intacto, o tráfico de entorpecentes.

Ao invés de quatro entrevistas, conforme previsto, a penitenciária – após alguns dias de pesquisa de campo - autorizou seis, com uma desistência. O “Termo de Declaração” – documento emitido pela PFS e assinado pela presa – foi a concordância de participação nesta pesquisa.

O roteiro para as entrevistas semi-estruturadas18 com as mulheres presas buscou verificar algumas questões, divididas nos tópicos perfil sócio-demográfico, família, vida amorosa/ conjugal, o cárcere, preconceitos/racismo.

Através das entrevistas, consideradas conversas com finalidade (Minayo, 2007), novos tópicos emergiram direta ou indiretamente nas falas das entrevistadas: o tráfico de entorpecentes, as desigualdades sociais, o preconceito e a cor da pele como marca. Houve, portanto, uma reorganização dos tópicos norteadores das análises de entrevista.

Devido à ausência de autorização formal da juíza, a direção da penitenciária não permitiu a gravação das entrevistas, seja com gravador de voz, filmadora ou quaisquer equipamentos. Contudo, procurou-se – dentro das possibilidades - o registro fiel dos depoimentos, com caneta e papel, certa agilidade na escrita e a compreensão da entrevistada quando necessária a repetição de algum trecho não captado.

Através das orientações de Minayo (2007), a pesquisadora “anotou tudo com suas próprias palavras, tentando manter fidedignidade ao sentido conferido pelo interlocutor”. A restrição do uso de instrumentos adequados para registro das falas é previsível ao pesquisador de campo “quando o tema é espinhoso, controverso ou polêmico”, afirma a autora (p.69).

Foram 13 dias na Penitenciária Feminina de Sant’ana. Para cada uma das seis interlocutoras, cerca de cinco horas de entrevista, divididas em dois dias. O primeiro era apenas o início da “conversa”, o momento de firmar confiança. No segundo, através de maior envolvimento entre entrevistadora e entrevistada, havia “aprofundamento da investigação” (Minayo, 2007, 67).

Uma das interlocutoras compareceu apenas no primeiro dia, no qual quase não respirava entre uma palavra e outra que falava. Foi preciso pedir que os relatos fossem feitos com mais calma, já que as mãos da pesquisadora corriam sobre o caderno para acompanhá-la. Olhos firmes, não se intimidou em falar dos detalhes da infância. No dia seguinte, daria continuidade nos relatos, mas desistiu.

Os prontuários criminológicos19 das entrevistadas também foram fontes de informação, utilizados quando necessário.

18 Roteiro de entrevista - Anexo A

Outras instalações da penitenciária, além do parlatório – local das entrevistas -, também foram visitadas, tais como a cozinha e suas dependências, as oficinas de trabalho, alguns corredores de pavilhões, a Inclusão, o setor de Saúde, dentre outros.

Quando alguns dias de campo já tinham se passado, no trânsito da pesquisadora pela instituição havia certa leveza, os agentes penitenciários deixaram os freqüentes olhares de desconfiança. A pesquisadora poderia ser confundida com uma nova funcionária, estagiária ou colaboradora, no entanto estava apenas mais ambientada e mais livre.

É presumível que isso tenha ocorrido pela postura adotada pela pesquisadora. De acordo com Minayo (2007), as pessoas que introduzem o pesquisador no campo e seus interlocutores “querem saber se ele é uma ‘boa pessoa’ e se não vai ‘fazer mal ao grupo’, não vai ‘trair seus segredos’ e suas estratégias de resolver os problemas” (p. 73).

Assim como entrar, sair do trabalho de campo também é crucial, uma vez que foram estabelecidas as relações e os afetos. Vislumbrou-se, pois, um plano de continuidade possível e desejada (Minayo, 2007) para atividades posteriores entre pesquisadora, instituição e interlocutoras.

No documento Ana Luiza de F Biazeto (páginas 52-59)

Documentos relacionados