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Tráfico: um “trabalho” moderno

No documento Ana Luiza de F Biazeto (páginas 64-74)

O tráfico de drogas é o delito da maioria da população feminina presa no Brasil e no estado de São Paulo, bem como na Penitenciária Feminina de Sant’ana. Ele é visto, de acordo com as entrevistadas, como uma oportunidade de “trabalho” tanto para sustento próprio e da família quanto para manter o uso de entorpecentes.

• R., 35 anos, presa pela primeira vez por tráfico de entorpecentes, tem o ensino fundamental incompleto, é natural de São Paulo, tem cinco filhos, o amasio está preso e considera-se negra. Conta que após ser demitida do

serviço de auxiliar de limpeza, grávida, precisava sustentar a casa e não viu alternativa.

“Amigos me indicaram para eu levar droga/cocaína dentro da Penitenciária de Guarulhos (Adriano Marrey). Levei uma vez, por R$ 500,00, me pegaram na revista. Acho que a própria amiga que me indicou, fez a denúncia. Para quem está precisando, com situações pendentes, é uma solução na hora. Estava sem luz em casa, com meus quatro filhos. Só agora que cada um foi para um lugar, sempre moraram comigo. Sempre fui amorosa, tentava fazer de tudo por eles.”

Pela possibilidade de ser poupada de revista rígida que R. foi contratada como ponte25. Grávidas não podem ser submetidas a aparelhos de raio X (Josino, 2008). Na maioria das vezes o nome da ponte é colocado no rol de visita de algum detento – neste caso chamado de “esquema”. De acordo com o autor, geralmente as encomendas ou mercadorias são para o líder ou integrante de facção criminosa.

R. pode ser considerada uma “infratora do mal”, faz parte dos excluídos, com suas práticas e estereótipos demonizados, sob o aparato do sistema penal que impede a concessão de liberdade provisória e a apelação em liberdade nos casos de crime organizado, e a recente “lei de tóxicos” (Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006), que atendendo às demandas de imunização dos usuários de drogas ilícitas das classes médias, aumenta a pena mínima para o ilícito do tráfico, arrefecendo os termos do controle para os grupos marginalizados, para citar apenas alguns dispositivos (Flauzina, 2008).

A conseqüência, para R., é a prisão:

“Aqui é um verdadeiro inferno. Você está doente não tem atendimento adequado nem medicação. Pede para falar com advogado, com assistente social e demora dois meses. A convivência com algumas presas... As reincidentes, muitas vezes, discutem por qualquer coisa. É gritaria, falatório.”

25 Pessoa contratada para entrar na prisão com determinada mercadoria ou encomenda feita pelos presos (as).

É preciso adaptar-se a outro universo, a penitenciária, para a ré primária, sem histórico de vivências no crime, mostra-se como um desafio.

Conforme a metodologia adotada pelas agências de criminalização para diferenciação de indivíduos, no inverso dos “infratores do mal” estão os “delinqüentes do bem”. No livro “Direito penal brasileiro”, escrito por diversos autores, citado por Flauzina, sob a lógica do mercado, os consumidores em potencial devem ser poupados dos rigores do encarceramento. Para esses foram criados, dentre outros, os Juizados Especiais Criminais e foi autorizada a substituição das penas privativas de liberdade de até quatro anos nos delitos em que não se vislumbram violência ou ameaça grave.

De acordo com a autora, para o primeiro segmento deve-se evitar a prisão a qualquer custo; para o segundo deve-se construí-la como possibilidade, prolongamento ao máximo a permanência do infrator no estabelecimento prisional.

“Muitas vezes as mulheres voltam pra cá pela necessidade. Voltam a roubar, traficar, pra se sustentar. Se os governantes fizessem algo, dando chance, fazendo parceria com pessoas, com firmas, para dar oportunidade para quem sai, muitas voltariam a trabalhar”, diz R.

De acordo com R., a reincidência acontece mediante a falta ou escassez de programas de inserção de ingressos no âmbito do trabalho. Apesar das iniciativas existentes, é notável que ainda há um percentual irrisório recolocado neste sentido.

• L., 20 anos, tem o ensino médio incompleto, é natural de Guarulhos, está na quarta gestação – teve três abortos devido à má formação fetal, o marido está preso, considera-se parda, está presa pela primeira vez por tráfico de entorpecentes.

Segundo ela, vendia bala, o marido DVD num farol de uma avenida de Guarulhos. Foram presos por tráfico de entorpecentes.

“Um dia a gente tava trabalhando e como ele fuma maconha, mas não perto de mim – ele nunca andou com uma paranga26 do meu lado -, ele foi fumar na biqueira com uns caras. Chegaram outros caras, que eles não sabiam que eram polícia. Uma menina, que sabe que ele é meu marido, foi me chamar. Cheguei na biqueira com uma mochila de bala nas costas e uma caixa de bala na mão. Foi um tumulto, chorei, meu marido também. Ele tinha acabado de vender um fogão velho e comprado um novo, por isso tava com dinheiro no bolso... O polícia me pediu a droga, eu disse que não tinha, que tinha só bala. Ele disse que eu estava mentindo. Eu vim no artigo 3327 com meu marido. Não fui pega. Vim vendendo bala, só que o policial disse que eu tinha que assumir junto com o meu marido: ‘Você não é casada? Tem que assumir junto com ele’ ” L. nega conhecimento do envolvimento do marido no tráfico, bem como a sua participação na venda de entorpecentes. De acordo com o “Termo de Depoimento em auto de prisão em flagrante delito”, de autoria de um delegado de polícia, anexo ao Prontuário Criminológico de L.,

“um componente do Garra 19 informa que recebeu denúncia anônima que pelo local dos fatos um casal estaria comercializando entorpecentes, sendo então diligenciado até o local, onde em campana vieram (ele e outro componente) a verificar um indivíduo pardo, estatura mediana, trajando camiseta regata azul, o qual pegava algo de indivíduos que compareciam na praça, se deslocando até uma barraca, onde se encontrava uma mulher na entrada a qual pegava algo no interior entregando em seguida ao primeiro indivíduo, o qual repassava para outros indivíduos que ali compareciam, diante dos fatos vieram a abordar tal indivíduo, onde em busca

26 Porção de maconha.

pessoal foi localizado no bolso de sua bermuda a quantia de R$ 290,00 (duzentos e noventa reais) (...), o qual ao ser indagado a respeito dos fatos confessou que estava no local comercializando entorpecentes e que os entorpecentes estavam no interior da barraca onde estava a mulher (...) vieram a localizar 12 (doze) papelotes de plástico contendo em seu interior pedra semelhante a crack e 18 (dezoito) papelotes de plástico contendo em seu interior erva esverdeada semelhante a crack (...), sendo assim foi dado voz de prisão em flagrante delito aos indiciados (...).

Há, pois, versões contraditórias do mesmo fato narrado por diferentes ângulos. Segundo L., o relacionamento com o marido - que tem diversas passagens pelo sistema prisional por roubo - dura oito anos.

“Ele nunca gostou de ficar em casa, o negócio dele era aprontar. Foi para a Febem umas três ou quatro vezes, por causa de roubo. Já foi pra Febem por causa de uma Coca-cola que roubou. O problema dele é que a própria sociedade não ofereceu nada. Quando ele saiu da Febem não tinha o que fazer, quando ele saiu a primeira vez, saiu bem. Quando foi pela Coca-Cola saiu mais revoltado. Minha sogra foi visitar ele, ela falou que ele era só pele e osso. A última Febem foi com 17 anos. No aniversário de 18, foi preso no 157 [roubo].”

“Se ele vendesse droga, a gente ia ter dinheiro. Nós mora de aluguel”, argumenta. Há dois meses presa, em março de 2010, ainda não havia sido julgada.

L. relata um ciclo que permeia a vida do marido, de idas e vindas no sistema prisional e também há certa responsabilização governamental em função da perpetuação da série de prisões.

• G., 30 anos, tem o ensino médio incompleto, é natural de São Paulo, tem quatro filhos, foi amasiada três vezes, considera-se branca, foi presa pelo artigo 157 (roubo) na primeira vez, o delito atual é tráfico de entorpecentes.

Na primeira vez que foi presa, conta G., foi sentenciada com cinco anos e seis meses, cumpriu três anos e foi para o semi-aberto cumprir os restantes dois anos e seis meses. Neste regime ficou apenas cinco meses e retornou a Penitenciária Feminina de Sant’ana, em abril de 2009. G. ainda não tinha sido sentenciada em março de 2010, quando deu depoimento para esta pesquisa, e não sabia quantos anos ainda permaneceria presa. Ela conta como reincidiu:

“Quando saí daqui, da primeira cadeia, não tinha nem uma calcinha pra vestir. Como estava de condicional, uma amiga me colocou de abastece28, que é mais leve, num drive de droga onde todo mundo compra na nossa mão [numa avenida movimentada da Zona Sul de São Paulo]. O que mais me motivava era o uso da droga. Dependendo do quê trabalha na biqueira, tira um dinheiro. De abastece tirava uns R$ 100,00 por dia, fora os outros ‘trabalhos’ que dá pra pegar.”

A hierarquia do tráfico se mostra nos diversos “cargos” ocupados e no valor recebido pelo “trabalho” executado.

Daí veio a “segunda cadeia”, como diz G., consecutivamente à gravidez de dois meses do quarto filho. Dos três relacionamentos amorosos que julga como “sérios”, todos foram com criminosos.

“Com W. tive a A.C [filha], de 10 anos. Começamos a namorar ele tinha 22 e eu 16 anos. O casamento era tumultuado, a gente morava um pouco com a família dele e um pouco com a minha. Fiquei casada por três anos. Morreu na cadeia, estava preso por homicídio. Visitei ele de 16 a 18 anos. Minha mãe assinou um termo porque eu era menor. Vivi oito anos com G.,

pai do L.G., de sete anos. O casamento foi difícil, turbulento, porque casar com ladrão é difícil. Ele é irmão do PCC. É muita balada, muita porta de cadeia, muita mulher. Ele é feio, mas o que mais atrai as mulheres é status, fama e dinheiro. Elas gostam, porque eles dão atenção, não trabalham, são malandro, estão o tempo todo com a gente. Eu fiquei por amor, ele ainda nem era irmão. Aqui, na minha primeira cadeia tinha respeito por ser mulher do G. De todos, foi o que mais gostei. Com G. aprendi tudo no crime, roubar, traficar, conheci as drogas. J. foi esse agora, foi o menor casamento, durou três meses. Ele é o pai do M.V., de cinco meses. Com dois meses de gravidez fui presa. Ele está preso em Guarulhos, foi preso dois meses depois que eu. Não sei se a gente está junto, não sei como vai ficar nossa situação. Ele é de Pernambuco. A gente saiu da cadeia juntos. Eu estava trabalhando na biqueira, perto de onde ele mora. Na primeira relação engravidei. Tinha acabado de sair da cadeia, não tomava remédio. Na segunda semana a gente estava morando junto. Esse último marido me dava de tudo. Até me dava maconha, mas a cocaína não dava. Ele me batia quando me via muito louca. Morei na favela com ele, minha mãe não deixou levar as crianças. Só com ele que não morei junto com as crianças. Quando ele me conheceu, ele não bancava meu vício. Não queria me ver muito louca. Ladrão de verdade não gosta. Fiquei mais lá pelo meu vício.”

A atração pelo crime se mostra através dos consecutivos relacionamentos amorosos e pelo que é proporcionado: “status, fama e dinheiro”. Além disso, a dependência química apresenta-se como questão subliminar.

A filha Y, nove anos, “veio de uma aventura de samba”, e não de um relacionamento considerado “sério”.

Num artigo de 16 de abril de 2010, do jornal O Estado de São Paulo, o presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Gilmar Mendes, falou sobre a reincidência, pela qual também passou G.: “Ora, o alto índice

de reincidência mostra que o sistema prisional não atende ao seu principal objetivo – recuperar, reabilitando ao convívio social, aqueles que tiveram a desventura de infringir a lei”.

Para Wacquant (2001), na ausência de qualquer rede de proteção social, é certo que a juventude dos bairros populares esmagados pelo desemprego e subemprego crônicos continuará a buscar os meios de sobreviver e realizar os valores do código de honra masculino, já que não consegue escapar da miséria no cotidiano. O autor diz que “a difusão das armas de fogo e droga ligada ao tráfico internacional, que mistura o crime organizado e a polícia, acabaram por propagar o crime e o medo do crime por toda a parte no espaço público” (p.8).

• As irmãs L.C., 26 anos, e M., 24 anos não se viam há quatro anos até que se reencontraram na penitenciária. Ambas cursaram o ensino fundamental incompleto, são naturais de São Carlos, consideram-se negras e estão presas por tráfico de entorpecentes. L.C tem quatro filhos, M. tem três.

Foram criadas pela mãe e pelo pai, que cedo morreu, com outros irmãos. A mãe adoeceu de alcoolismo, por isso moraram boa parte da infância em orfanato e, posteriormente, com a irmã mais velha (Ma.). L.C. e M. foram morar juntas, começaram a traficar e a usar drogas, aos 14 e 13 anos, no interior de São Paulo. “Vendia crack, maconha, farinha, tudo em hotel, onde tinha gente grande, com dinheiro”, diz M. “Isso durou mais ou menos um ano, eu não ganhava nada, dava o dinheiro na mão da minha prima [com quem moraram por pouco tempo na adolescência], que comprava as coisas da casa. Ela tinha três filhos menores que eu e que a M.”, fala L.C.

A história de L.C. se repetiu nos filhos:

“Meus três filhos foram para o abrigo quando vim presa. Ficaram lá seis meses. A Ma. [irmã mais velha] pegou os três [mais velhos], só que quando foi pra ver quem ficava com o bebê [nascido durante a prisão de L.C.], o juiz não deixou o bebê ficar lá, porque é minha sobrinha, de 15 anos, que fica

com meus filhos enquanto minha irmã trabalha. O juiz disse que era pra arrumar alguém para ficar com a guarda definitiva ou no abrigo até eu sair. Ele tá lá no abrigo.”

Certamente, o juiz da cidade entendeu que a sobrinha de 15 anos não tinha condição de cuidar das três crianças e do irmão caçula, de poucos meses. Ao negar a guarda definitiva do filho a outrem, “optou” por deixá-lo no mesmo abrigo em que passou boa parte da infância.

L.C. tentou levar droga, grávida, para o marido preso por roubo, foi presa e sentenciada a um ano e onze meses de prisão.

M. deixou os três filhos no interior e foi ao litoral paulista, onde se prostituiu e traficou por quatro anos, cujo último “cargo” foi como gerente da noite29, no qual recebia cerca de R$ 1.000,00. “Gastava com porcaria, ia para baile, usava de taxi para buscar a V. [outra irmã de L.C. e M.] que usava droga, comprava roupa, sapato, arrumava cabelo, unha [para sair com os clientes fixos]”, diz M., sentenciada a oito anos.

Para M., foi o relacionamento com o ex-marido que deu outro rumo à vida levava.

“A gente se conheceu numa lanchonete. Fiquei grávida, moramos no fundo da casa que eu morava, depois na casa do pai dele, que estava vazia, depois construímos dois cômodos na casa da minha sogra. A gente era uma família, ia na igreja, mas ele bebia muito. Descobri que ele usava crack. Ele dizia sempre que ia tomar banho e sempre tinha muita fumaça no banheiro, era o crack. Fiquei cansada dessa vida, ele veio para me bater várias vezes, eu ia para cima também. Via ele usar e fiquei com vontade. Ai desandou minha família. Comecei a usar crack, farinha e maconha, não perto dos meus filhos. Viciei, não consegui mais parar. Ele chegava tarde da noite bêbado, assustando as crianças. Nessa época eu não trabalhava, ele trabalhava na fábrica de bloco. Me cansei, fui embora, levei meus filhos. Ele me buscou, tentei voltar para ver no que ia dar,

mas não adiantava. Quando eu me dedicava aos meus filhos, não pensava em droga. Sumi deixei meus filhos, irmão, parente, internei numa clínica. Fiquei uma semana, pulei do 3º andar com vontade de usar droga. Sai da minha sogra, fui para a casa da L.C. Fui com a V. [irmã mais nova], que estava grávida, para Santos. Ela saiu com um traficante e roubou uma quantia de droga dele para usar, precisou fugir. Escrevia carta para minha sogra e nada, acho que ficou com raiva. Comecei a usar mais droga, tentei me matar. Dormia nos hotéis de Santos, me prostituía [durante dois anos], usava droga dia e noite. Fiz minha vida lá. Encontrei um cara que me fez parar um pouco de usar droga, fui morar com ele, era cliente, foi quando comecei a vender. Com o dinheiro, comprava roupa para mim, para a V. Teve o filho dela, Ele ficou na maternidade, não pôde sair. A criança foi para o orfanato, porque ela estava sem documento. Falei para ela tirar os documentos antes de ter o filho dela. Ela desandou na droga. O marido comprava droga pra ela usar, porque não queria ver ela na rua.”

O uso de entorpecentes mais uma vez é responsabilizado pelos atos irrefletidos e impulsivos das sujeitas entrevistadas e do círculo de relações a que são interligadas.

Todas as entrevistadas dessa pesquisa têm um histórico de pobreza em determinado momento de suas vidas, são histórias das quais apenas os nomes são diferentes. No contexto, há intercruzamentos nos diálogos, há mais semelhanças do que diferenças quando a questão em foco é o delito que cometeram.

(...) Por um conjunto de razões ligadas à sua história e sua posição subordinada na estrutura das relações econômicas internacionais (estrutura de dominação que mascara a categoria falsamente ecumênica de “globalização”), e a despeito do enriquecimento coletivo das décadas de industrialização, a sociedade brasileira continua caracterizada

pelas disparidades sociais vertiginosas e pela pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades (Wacquant, 2001, p.8).

No documento Ana Luiza de F Biazeto (páginas 64-74)

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