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Ana Luiza de F Biazeto

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Ana Luiza de F. Biazeto

A diferença está na pele?

Depoimentos de mulheres negras e brancas presas na Penitenciária Feminina de Sant’ana

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Ana Luiza de F. Biazeto

A diferença está na pele?

Depoimentos de mulheres negras e brancas presas na Penitenciária Feminina de Sant’ana

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Serviço Social, sob a orientação da Profa. Doutora Maria Lucia Rodrigues

SÃO PAULO

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Banca Examinadora

______________________________ Maria Lucia Rodrigues

______________________________ Maria Carmelita Yazbek

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AGRADECIMENTOS

• Meus pais, Luiz Carlos e Ana Regina, incentivadores da busca pela autonomia e continuidade dos estudos, através de dedicação ininterrupta;

• Vinícius, marido, amante, confidente, sempre solícito ao meu lado e crente no amor;

• João Pedro e Luiz Antônio, filhos que me ensinam a amar cada vez mais e valorizar os instantes inusitados ou comuns do cotidiano;

• Avó Maria, mulher exemplar, que me deu as diretrizes da vida;

• Avó Cecília, quem me deu a possibilidade ancestral de discutir a questão étnica/racial;

• Tia Zéza, uma inspiração constante de sabedoria;

• Família extensa que, me esperou ansiosa nestes anos e, não desistiu de mim, elucidada por Matheus e Israel Cavaliere e Rafael Vançan;

• Márcia Farias, minha mentora da adolescência e a amiga que me apresentou o Serviço Social;

• Maria Lucia Rodrigues, minha orientadora, que me ensinou a conviver com contradições e deu, dedicadamente, as diretrizes do processo do conhecimento;

• Professoras Carmelita Yazbek e Vera Cristina de Souza, pelas contribuições sempre pertinentes e atenção empreendida nesse trabalho;

• Profissionais da Penitenciária Feminina de Sant’ana presentes na realização da pesquisa de campo: Lucy, Carla, Hilda, Oswaldo, Cunha, dentre outros;

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SUMÁRIO

RESUMO ... 6

ABSTRACT ... 7

INTRODUÇÃO ... 8

Cap. I - NEGRO COMO EXPRESSÃO DA QUESTÃO SOCIAL ... 10

1. Desafio de ser negra ... 14

2. Mulher negra e cárcere ... 17

Cap. II - CÁRCERE BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO, AÇOITE ESCRAVISTA ... 23

1. Eis que se inicia a punição na terra do pau-brasil ... 23

2. Sistema imperial-escravista e emancipação política ... 26

2.1. Casa de Correção de São Paulo ... 31

2.2. Novas percepções do encarceramento ... 36

3. Proclamação da República, advento da democracia racial ... 39

4. Período neoliberal: o pobre e o negro ... 45

4.1. No que consiste ser negra, pobre e presa? ... 51

Cap. III - PRESAS NUM SOLO DE HISTÓRIA E SILÊNCIO ... 56

1. Além do portão de ferro ... 58

2. A “Inclusão” ... 60

Cap. IV - HISTÓRIAS INAUDÍVEIS ANTES, DURANTE E DEPOIS DAS GRADES ... ... 63

1. Tráfico: um “trabalho” moderno ... 63

2. Desigualdades sociais, pressupostos do delito ... 73

3. Preconceito de quê? ... 78

4. A cor da pele é a marca ... 80

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 83

ANEXOS ... 87

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RESUMO

A presente dissertação tem como objetivo principal analisar a trajetória de mulheres negras e presas na Penitenciária Feminina de Sant’ana. Busca-se, também, conhecer e compreender os motivos de incidência das mulheres negras e brancas nesta penitenciária, compreender os motivos que as levaram à prisão e articular os resultados obtidos no estudo a medidas propositivas voltadas às mulheres presas e negras. O elevado número de mulheres negras (pretas ou pardas) no sistema prisional brasileiro e o caso da adolescente paraense - de 15 anos, presa com mais de 20 homens numa cela em Belém, em novembro de 2007 -, são aspectos que motivaram a realização deste trabalho. Em decorrências dos estudos teóricos e entrevistas realizadas, nota-se que a presença do negro no sistema prisional se dá de longa data, com mutações de acordo com os códigos de leis que regiam épocas e que através do racismo é possível enxergar os sistemas penais ao longo de todo o processo histórico. Evidencia-se, também, que não é possível investigar a questão criminal sem levar em conta as variáveis de gênero que a acompanham. As situações do sistema prisional, do negro e da mulher são aqui elucidadas como expressões da questão social, que - para ser entendida no Brasil e na América Latina - exige uma revisitação crítica da ação dos sujeitos e dos processos histórico-estruturais que instituíram as sociedades do continente. A mulher negra e presa, portanto, é considerada uma das expressões da questão social. Nesta pesquisa qualitativa, foram ouvidas três mulheres negras e três brancas, a fim de verificar diferenças e semelhanças nos relatos. O perfil das interlocutoras foi diversificado pela própria instituição prisional, sendo o tráfico de entorpecentes o delito comum entre elas. Realizou-se o estudo e a análise de conteúdo, através da compreensão, interpretação e explicação das formas de comunicação das entrevistas realizadas, com os seguintes itens de análise: o tráfico, as desigualdades sociais, a cor da pele como marca e o preconceito. A proposta amplificada desta dissertação visa elucidar aspectos que assolam a população prisional feminina brasileira e colaborar para (re)construir uma identidade feminina, mesmo que atrás das grades. No que concerne à mulher negra, (re)construir uma identidade feminina e negra, de aceitação própria, para o progresso e avanço próprio e das filhas, que necessariamente demandam ser fortalecidas e presentes na história brasileira. Acrescido a isso, vislumbra-se através da continuidade deste trabalho, a emergência da percepção da autonomia de quem se encontra presa.

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ABSTRACT

This dissertation aims to analyze the life of incarcerated black women at the Sant’ana’s Women Penitentiary in São Paulo, Brazil. This research attempts to shed light on the reasons why black and white women are in this penitentiary examining the causes of their arrests and relating the results obtained in this study to propositional the starters to a policy geared to women prisoners and blacks. The high number of black women (black or mixed) in the Brazilian prison system and the case of a 15 years old from Pará who had over 20 men in her cell in Belém in November 2007, are matters that motivated this research . As a result of theoretical studies and interviews, it is noted that the presence of blacks in the prison system is a historical reality, despite changes in the governing laws over the years, continued racism has made it possible to analyze this historical process in the penal system. It is impossible to investigate the criminal matter without taking into account the variables of gender that accompany it. The circumstances in the penitentiary system of blacks and women are examples of social issues, which in order to be understood in Brazil and Latin America require critical studies of relevant fields and the historical and structural processes that established societies in the continent. The incarcerated black woman, therefore, is manifestation of a social issue. In this qualitative research, three black women and three white women were interviewed in order to find differences and similarities in their reports. The female inmates are housed in separate prisons according to their crimes with drug trafficking being the most common crime among the inmates. This study analyzed the meaning, interpretation and explanation of the content of the communication articulated during interviews, focusing on the following subjects: drug trafficking, social inequalities, skin color, and prejudice. This thesis has an enhanced purpose to shed light on key aspects that affect the incarcerated female population in Brazil and also helps to (re) construct female identities, even behind bars. Concerning black women, the act of (re) constructing their female and black identities is necessary for them to accept themselves. Consequently their acceptance of their own identities will allow for their individual progress and also the progress of their daughters. The (re) construction of female identities is an area which really needs to be strengthened and present within Brazilian history. In addition, another key emphasis of this study is the need for autonomy of the perception of the incarcerated female.

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INTRODUÇÃO

“Ser negro no Brasil é freqüentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo”, Milton Santos

A terceira edição da pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça1, divulgada em 16 de dezembro de 2008 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que a cor da pele e o gênero feminino são agravantes da desigualdade no país. As negras têm menos escolaridade que as brancas, vivem menos, em situações de trabalho mais precárias e ganham, em média, 34% do que recebem os homens brancos. Os dados revelam a situação de grande fragilidade vivenciada pelas mulheres negras.

Destas informações, de diversos estudos, das notícias presentes na mídia e das experiências reunidas com a população negra, mantém-se atualmente necessária a discussão sobre gênero e raça.

É nesse contexto que nos propusemos realizar o presente estudo que tem por título A diferença está na pele? –depoimentos de mulheres negras e brancas presas na Penitenciária Feminina de Sant’ana. A idéia se reforçou com a informação sobre o elevado número de mulheres negras (pretas ou pardas) que integravam a Penitenciária Feminina de Sant’ana (PFS). Ao mesmo tempo, como integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Ensino e Questões Metodológicas em Serviço Social – Nemess/PUCSP, participamos de pesquisa que tem por título “O sistema prisional feminino e a questão dos direitos humanos – um desafio às políticas sociais”, financiada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Consecutivamente, ocorreram os campos das duas pesquisas – a do sistema prisional feminino no Estado de São Paulo e esta, na PFS –, o que possibilitou uma ligação entre ambos os conhecimentos, uma articulação entre os contextos.

Somado a esta proposta, outro fato também motivou o estudo sobre o sistema prisional: o caso da adolescente paraense, de 15 anos, presa com mais de 20

1

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homens numa cela em Belém, em novembro de 2007.

Na pesquisa A diferença está na pele? – depoimentos de mulheres negras e brancas presas na Penitenciária Feminina de Sant’ana são elucidadas as situações do sistema prisional, do negro e da mulher como expressões da questão social, que para ser entendida no Brasil e na América Latina, segundo Wanderley (2008), exige uma revisitação crítica da ação dos sujeitos e dos processos histórico-estruturais que instituíram as sociedades do nosso continente.

O autor salienta que a situação atual, com todas as mudanças que devem ser incorporadas na compreensão dessa questão, reflete a longa história que condiciona: colonização, lutas pela independência, modos de produção, formas de dependência, planos de desenvolvimento, tipos de Estado, políticas sociais, etc.

A presente dissertação tem como objetivo principal analisar a trajetória de mulheres negras e presas na Penitenciária Feminina de Sant’ana. Busca-se, também, conhecer e compreender os motivos de incidência das mulheres negras e brancas nesta penitenciária, compreender os motivos que as levaram à prisão e articular os resultados obtidos no estudo a medidas propositivas voltadas às mulheres presas e negras.

Foi atendida a sugestão proposta no Exame de Qualificação de entrevistar (colher depoimentos) duas mulheres negras e duas brancas presas, a fim de verificar diferenças e semelhanças nos relatos ouvidos. Os critérios de escolha para entrevistas emergiram das características da maioria das presas do estado: idade entre 18 e 24 anos, com ensino fundamental incompleto, sendo o tráfico de entorpecentes o crime tentado/ consumado, procedentes de municípios em Regiões Metropolitanas de São Paulo.

Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, não foi preciso um grande número de sujeitos. Neste sentido, foi intencionalmente composto o grupo de mulheres para a realização dessa pesquisa. Considera-se neste estudo que a mulher negra e presa é expressão da questão social. Com o subsídio de autores que contemplam a temática em diferentes vieses, procurar-se-á a reflexão sobre o proposto.

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Cap. I

NEGRO COMO EXPRESSÃO DA QUESTÃO SOCIAL

As desigualdades e injustiças na estrutura social dos países da América Latina são o centro da questão social desde o descobrimento e resultam, nas mais variadas formas, dos modos de desenvolvimento que se formaram em cada sociedade nacional e na região em seu complexo (Wanderley, 2008).

É através deste autor que será compreendido o conceito de questão social:

Como marcos de referência básicos, compreenderei a questão social fazendo parte constitutiva de determinados componentes da organização da sociedade – nação, Estado, cidadania, trabalho, gênero – que, histórica e estruturalmente, passam a ser considerados como críticos para a continuidade e mudança da sociedade. Considerando a sua multidimensionalidade, ela tem recebido diversas denominações e as explicações mais diferentes. Nesses termos, a questão social implica questões de integração e inserção, reformas sociais ou revolução, e correntes de idéias as mais diversas, que buscam, diagnosticar, explicar, solucionar ou eliminar as suas manifestações (idem, p.64).

Quando se tem o interesse de abordar as desigualdades vividas pelos negros, é preciso fazer uma retrospectiva há centenas de anos:

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restante distribuídos pelos distintos países (idem, p. 94).

Inicialmente, a situação do negro vai se manifestar como uma questão social por problemas econômicos relativos ao seu custo e produtividade. Num momento posterior, com acento maior ou menor dependendo das circunstâncias locais, esclarece o autor, ela se manifestará por diversos problemas: éticos contra a escravidão; religiosos de imposição do catolicismo contra suas religiões africanas de origem; e político-sociais de como controlá-los, o que culminou nas pressões político-militares de países europeus contra o tráfico.

Durante séculos, ela [a questão social] deu azo a lutas internas dos escravos e abolicionistas. Após os processos libertadores, ela se problematiza, por um lado, no racismo, ora velado, ora explícito, na afirmação da superioridade da raça branca sobre a raça negra. As políticas discriminatórias, mesmo que na retórica se defenda a igualdade racial, levaram ao mito do embranquecimento e à imposição de fazer o negro pensar como o branco (idem, p. 97).

A questão social manifesta-se, por outro lado e no geral, mas com diferenças ponderáveis nos distintos países, pela desigualdade e discriminação sociais. O autor elucida que “discriminação é bem perceptível no mercado de trabalho, no qual o negro é sempre afastado das melhores ocupações, com raríssimas exceções, e tem ganhos percentuais menores” (idem, p.98). Em conseqüência,

(...) ela [a discriminação] se mostra no fato de os negros ocuparem os lugares mais baixos na estratificação social. O caso brasileiro, nesse particular, é bem ilustrativo. É de bom alvitre salientar, também, que em alguns censos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) o item cor foi retirado, certamente pela ideologia da “democracia racial” (idem).

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São Paulo em 7 de maio de 2000, reforça a idéia de que o trabalho do negro no país foi, desde o início da história econômica, essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes, o que deu-lhe um papel central na gestação e perpetuação de uma ética conservadora e desigualitária .

Afirma o autor que “os interesses cristalizados produziram convicções escravocratas arraigadas e mantêm estereótipos que ultrapassaram os limites do simbólico e têm incidência sobre os demais aspectos das relações sociais” e que

“(...) talvez ironicamente, a ascensão dos negros na escala social, por menor que seja, sempre deu lugar a expressões veladas ou ostensivas de ressentimentos (paradoxalmente contra as vítimas)” (p.157).

Quanto à educação, a pesquisa do Ipea, Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça (2008), afirma que o acesso à escolaridade é uma das formas por excelência de ascensão social e de potencialização do acesso a bens produzidos pela sociedade. Desta forma, enquanto as desigualdades raciais se perpetuarem no campo educacional, também está garantida a perpetuação de seus mecanismos de reprodução.

A realidade se mostra mesmo perpetuada: a educação do negro ainda não avançou como deveria. As diferenças raciais, conforme mostra o recente estudo, são marcantes: negros e negras estão menos presentes nas escolas, apresentam médias de anos de estudo inferiores e taxas de analfabetismo bastante superiores.

De acordo com o Ipea, as políticas educacionais implementadas nos últimos quinze anos tiveram um impacto significativo na melhoria dos indicadores sociais. Em 1993, a taxa de analfabetismo para homens brancos de 15 anos ou mais era de 9,2%, caindo para 5,9%, em 2007. Entre as mulheres de 15 anos ou mais se percebe algo similar: a taxa de analfabetismo para as brancas era de 10,8%, em 1993, enquanto para as negras era de 24,9%. Quinze anos depois, estes percentuais caíram para 6,3% e 13,7%, respectivamente. Mesmo observando uma redução significativa das taxas de analfabetismo para os diversos grupos, percebe-se que as desigualdades entre os grupos raciais ainda são significativas, percebe-sendo de mais de oito pontos percentuais entre homens brancos e negros e de mais de sete pontos entre as mulheres destes grupos.

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matriculada no nível de ensino adequado à sua idade – para a população branca era de 95,7 em 2006; entre os negros, era de 94,2. Já no ensino médio, essas taxas eram respectivamente, 58,4 e 37,4. Isto é, o acesso ao ensino médio ainda é bastante restrito em nosso país, mas significativamente mais limitado para a população negra, que, por se encontrar nos estratos de menor renda, é mais cedo pressionada a abandonar os estudos e ingressar no mercado de trabalho.

Para Bourdieu (2004), um dos principais fatores da desigualdade entre brancos e negros é a educação.

A escola não cumpre apenas a função de consagrar a “distinção” – no sentido duplo do termo – das classes cultivadas. A cultura que ela transmite separa os que a recebem do restante da sociedade mediante um conjunto de diferenças sistemáticas: aqueles que possuem como cultura (no sentido dos etnólogos) a cultura erudita veiculada pela escola dispõem de um sistema de categorias de percepção, de linguagem, de pensamento e de apreciação, que os distingue daqueles que só tiveram à aprendizagem pelas obrigações de um ofício ou a que lhes foi transmitida pelos contatos sociais com seus semelhantes (p. 221).

A desigualdade educacional na atualidade se deve, certamente, à maneira de como o negro era tolhido da educação na escravidão. Apesar de a maior parte dos escravos não saber ler nem escrever, não significa que não tivessem cultura. Trouxeram para o Brasil seus hábitos, suas crenças, suas formas de expressão religiosa e artística, além de terem conhecimentos próprios sobre técnicas de plantio e de produção. Entretanto, a violência e a rigidez do regime de escravidão não permitiam que os negros tivessem acesso à educação.

Pode-se dizer, através de Santos (2002), que o estágio atual da globalização2 esteja produzindo ainda mais desigualdades, com o crescimento do desemprego, da pobreza, da fome, da insegurança do cotidiano, num mundo fragmentado e cheio de

2 Globalização, de acordo com Wanderley (2008:66), é um conceito ao mesmo tempo complexo,

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fraturas sociais.

O mundo parece, agora, girar sem destino. É a chamada globalização perversa. Ela está sendo tanto mais perversa porque as enormes possibilidades oferecidas pelas conquistas científicas e técnicas não estão sendo adequadamente usadas

(p. 80).

O autor não esmorece:

Não cabe, todavia, perder a esperança, porque os progressos técnicos obtidos neste fim de século 20, se usados de uma outra maneira, bastariam para produzir muito mais alimentos do que a população atual necessita e, aplicados à medicina, reduziriam drasticamente as doenças e a mortalidade (p. 80).

O otimismo do trecho acima não é à toa. As últimas duas citações são do artigo de 30 de novembro de 1995, da Folha de São Paulo, intitulado “Por uma globalização mais humana”, uma crença que certamente carregou consigo:

Um mundo solidário produzirá muitos empregos, ampliando um intercambio pacífico entre os povos e eliminando a belicosidade do processo competitivo, que todos os dias reduz a mão-de-obra. É possível pensar na realização de um mundo de bem-estar, onde os homens serão mais felizes, um outro tipo de globalização (idem, p. 80).

Sem perder a esperança, como intimou Santos, e no aguardo do mundo solidário, olha-se para trás, para o passado, para a história, e projetam-se na atualidade, algumas reflexões imediatas.

1. Desafio de ser negra

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gênero foi influência do movimento feminista mundial e “resultado da tomada de consciência individual de determinadas mulheres e de certos grupos que, com imensas dificuldades, conseguiram impactar um círculo maior de pessoas” (p.101).

Explica o autor:

Uma hipótese valiosa talvez seja a de que a temática da mulher se explicita como questão social ao adquirir visibilidade política – pelo sufrágio universal, que ampliou o leque de participação política e sensibilizou a opinião pública dos povos latino-americanos, com conseqüências sócio-políticas-culturais relevantes (idem, p. 103).

Autores contemporâneos afirmam que a situação da mulher negra no Brasil de hoje manifesta um prolongamento da realidade vivida no período de escravidão com poucas mudanças, pois ela continua em último lugar na escala social, abaixo da mulher branca e dos homens negro e branco.

O estudo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça mostra que persiste ainda o fato de que o trabalho doméstico remunerado no Brasil é majoritariamente desempenhado por mulheres negras. Em 2007, 12,1% das mulheres brancas empregadas estavam no trabalho doméstico; sobe para 21,4% as mulheres negras empregadas na mesma atividade, que exercida desde a escravidão, permitia às mulheres desta etnia ampliar o conhecimento em atividades como costura, cozinha ou administração do lar.

Segundo Silva (1997),

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De acordo com o Ipea, em 2007, a taxa de desocupação entre mulheres negras chegava a 12,4%, contra 9,4% entre mulheres brancas, 6,7% entre os homens negros e 5,5% entre os homens brancos. Já a renda média das mulheres negras era de R$ 436, contra R$ 649 dos homens negros, R$ 797 das mulheres brancas e R$ 1.278 dos homens brancos.

Outro dado é que as mulheres negras vivem menos do que as brancas, apesar de o envelhecimento da população brasileira ser uma tendência observada nas últimas décadas. Em 1993, o total de mulheres brancas com mais de 60 anos de idade representava 9,4% e o de mulheres negras, 7,3%. Estes percentuais alcançaram, em 2007, 13,2% e 9,5%, respectivamente.

Questões específicas da saúde da mulher representaram outro conjunto de dados apresentados no Retrato das Desigualdades de Gênero eRaça. Neste caso, são informações sobre exames preventivos dos tipos de câncer mais freqüentes na população feminina: o de mama e o de colo do útero. Os dados mostram que 36,4% das mulheres de 25 anos ou mais de idade nunca fizeram o exame clínico de mamas, sendo que entre as brancas a proporção é de 28,7% e entre as negras a proporção sobe para 46,3%.

De acordo com Souza (2002), as mulheres negras brasileiras, que em sua maioria trabalham como empregadas domésticas diaristas, não registradas, têm menor acesso ao serviço de saúde devido à profissão. Embora apresentem atestado médico no local de trabalho, por vezes não têm o dia da consulta pago.

A condição material de vida, segundo a autora, é um dos fatores que contribui para a maior incidência de miomas em mulheres negras.

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maior predisposição para o desenvolvimento dos miomas uterinos (idem, p.93).

A dificuldade de acesso aos serviços, como os de saúde, poderia ser explicada, equivocadamente, pelo fato das mulheres negras terem menos educação formal e menores rendimentos. No entanto, mesmo entre as mulheres que têm mais de 12 anos de estudo, as desigualdades permanecem: 10,5% das mulheres brancas com este nível educacional e 18% das negras nunca fizeram exame clínico de mama. Segundo a pesquisa,

“Estes números apontam para desigualdades na qualidade do atendimento relacionadas a práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano de trabalho, resultantes de preconceitos e estereótipos racistas, próprios do racismo institucional” (p.6).

As mulheres e os negros apresentam os maiores níveis de desemprego, sendo as mulheres negras as que se encontram em situação mais precarizada: apresentaram uma taxa de desemprego de 12,4% em 2007, comparada a 9,4% para as mulheres brancas, 6,7% para os homens negros e 5,5% para os homens brancos.

Quando o assunto é quem ganha mais, a pesquisa mostra que os rendimentos de homens e de brancos tendem a ser mais elevados do que o de mulheres e negros. Com efeito, em 2007, enquanto as mulheres brancas ganhavam, em média, 62,3% do que ganhavam homens brancos, as mulheres negras ganhavam 67% do que recebiam os homens do mesmo grupo racial e apenas 34% do rendimento médio de homens brancos.

2. Mulher negra e cárcere

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Ser mulher e negra na sociedade brasileira requer esforços, vistos os dados da pesquisa apresentada recentemente pelo Ipea, em dezembro de 2008. Neste projeto, numa análise posterior, procura-se somar ao gênero e a raça, a condição de estar encarcerada, sendo o sistema prisional, como afirma Torres (2005) “uma das mais graves expressões da questão social no país” (p.17).

O sistema carcerário brasileiro deve ser analisado a partir do processo sócio-histórico das prisões como instituições estruturadas com base no poder de punição do Estado e reveladoras do aparato de exclusão3 da sociedade.

A institucionalização de mecanismos repressivos sobre as camadas excluídas é de longa data no Brasil. Porém durante o primeiro período do governo de Getúlio Vargas (1930-1945), o sistema penitenciário assumiu, gradualmente, seu papel radicalizador de colocar sob exclusão encarcerada certas categorias da população. A superlotação foi constante nos cárceres brasileiros desde o século 19, e no século 20, a prisão crescera se alimentando do contingente de excluídos sociais. (...) As prisões brasileiras são em sua imensa maioria insalubres, superlotadas e negligenciadas por parte dos governantes, produto de um sistema social e econômico profundamente excludente, sendo sua principal clientela gente pobre, jovem, semi-analfabeta, desempregada, desqualificada para as exigências do mercado de trabalho. São instituições detentoras e reprodutoras da exclusão social (Torres, 2005, p.58-60).

Para a autora (p.17), as “desassistências” básicas aos presos no cumprimento de suas penas, ainda são os maiores problemas a serem enfrentados

3 O chamado “princípio da exclusão”, segundo Wanderley (2008, p.63), se concretiza tanto da parte

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por esta população em situação de reclusão e portadora de necessidades sociais muito específicas.

De 15 estabelecimentos prisionais, tais como penitenciárias, centros de ressocialização, hospital e cadeias, no estado de São Paulo, nenhum oferecia condições para cuidado pré-natal e pós-natal adequado ou instalações satisfatórias para o amparo de bebês recém-nascidos. Ou seja, necessidades específicas de gênero, como o cuidado materno, não são supridas. Outro problema, constante e sério, diz respeito à detenção de presas condenadas em cadeias públicas - sob a autoridade da Secretaria de Segurança Pública. As condenadas4 deveriam estar em penitenciárias, no entanto as vagas escassas impossibilitam que ocorra a transferência (Howard, 2006).

Estar em cadeias dificulta o acesso a benefícios e progressão de penas, como liberdade condicional, indulto, remição, regime semi-aberto e regime aberto.

Mulheres detidas sob custódia policial têm pouco ou nenhum contato com advogados públicos ou pessoal técnico que possam intervir em seus processos para lhes solicitar benefícios. Por outro lado, muitas mulheres acabam cumprindo suas penas inteiras na prisão ou na cadeia, apesar de terem o direito de requerer liberdade antecipada por diversos motivos, como trabalho, estudo e bom comportamento (idem, p. 27).

A mulher sofre com a escassez de vagas no sistema penitenciário paulista, que privilegia a construção de penitenciárias masculinas. Para a autora, “o número de mulheres sob custódia policial, demonstra a discriminação da mulher detenta refletida no programa de construção de penitenciárias” (idem, p.38).

De acordo com Torres (2005), enquanto as sociedades optam pelas prisões como única política e como resolução para o problema da violência e da criminalidade, produzem ao mesmo tempo a urgência na criação de condições

4 A Lei de Execução Penal do Brasil requer que presos provisórios sejam mantidos em cadeias

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mínimas do cumprimento das leis já elaboradas para um tratamento penal e penitenciário minimamente justo e humano da população encarcerada.

Metaforicamente, Torres compara a prisão a um “aspirador social” – termo utilizado por Wacquant - para limpar as escórias das transformações econômicas em curso: os infratores ocasionais; os jovens autores de pequenos furtos; os desempregados e os sem-teto; os toxicômanos e toda ordem de excluídos sociais, deixados de lado pela população social. Para estes, o recurso do encarceramento para reprimir as desordens5 urbanas é um remédio que, em muitos casos, só agrava o mal que pretende sanar.

A prisão é um cadinho de violências e humilhações cotidianas, um vetor de desagregação familiar, de desconfiança cívica e alienação individual e, para muitos presos implicados ligeiramente em atividades ilícitas, é uma escola de formação, para não dizer de “profissionalização”, na carreira do crime. Para outros, o que também é péssimo, o cárcere é um abismo sem fundo, um inferno alucinante, a extensão lógica da destruição social que eles já viviam fora do presídio, agora, acrescida da aniquilação pessoal (p. 20).

Atualmente, dos 473.626 confinados em estabelecimentos prisionais ou em delegacias policiais no Brasil, 31.401 são mulheres. Das 24.292 apontadas pelos indicadores, 14.490 são consideradas “negras” ou “pardas”, aproximadamente 60% do total. As demais se dividem em 9.412 brancas, 124 amarelas, 35 indígenas e 243 são “outras”, que não correspondem a nenhuma cor de pele/etnia mencionada6.

5 As prisões brasileiras do século IXI, assim como as instituições para órfãos, loucos, pobres,

doentes, atendiam ao controle público da “desordem”. E ainda, negros rebeldes deveriam ser corrigidos para se adaptarem e aceitarem o seu papel de escravos na sociedade, bem como índios, ex-escravos, mestiços em geral, igualmente deveriam ser reprimidos, pois o intuito era de manter esses grupos confinados ao lugar subalterno que ocupavam na sociedade imperial (Torres apud Salla, 1999, p.53).

6 Dados extraídos dos Relatórios Estatísticos - Analíticos do sistema prisional do Brasil - dez/09, do

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No entanto, a população de mulheres negras no Brasil não é a maioria, como se mostra na população carcerária em relação às brancas, mesmo com aumento da proporção de negros na população brasileira nos últimos 15 anos.

Entre 1993 e 2007, a proporção de negros aumentou de 45,1% para 49,8%, enquanto a de brancos, inversamente, passou de 54,2% para 49,4%. No grupo masculino, percebe-se a existência de uma curva ascendente da proporção de negros, que, desde 2005, colocou este grupo como majoritário entre os homens (51,1%, contra 48,1%, entre os brancos). Entre as mulheres, a mesma tendência é verificada, mas as negras ainda não representam a maioria entre a população feminina, ainda que este movimento tenha se tornado mais expressivo nos últimos três anos (48,5%, frente a 50,6% para a população branca) (Retrato das Desigualdades de gênero e raça, 2008, p.15).

A coordenadora da Comissão Interministerial para Revisão do Sistema Prisional Feminino e diretora da Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres em entrevista ao programa “Cenas do Brasil” da NBR, emissora de TV do Governo Federal, confirmou, em 11 de janeiro de 2009, que “além de ter baixo poder aquisitivo, baixa escolaridade, geralmente a presa é negra, mãe e tem entre 18 e 25 anos”, dentre outros aspectos.

Neste vasto cenário intempestivo, a mulher brasileira negra e presa representa mais um desafio especial, que, para ser superado, precisa ser visto, analisado e tido como objeto de ação do Estado e da sociedade civil, aqueles que atuam diretamente com as políticas sociais.

Como diz Wanderley (2008), para a superação das questões sociais sejam as mais “simples” ou as complexas,

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serem capazes de compreender, explicar e mudar a realidade social (p.155, 156).

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Cap. II

CÁRCERE BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO, AÇOITE ESCRAVISTA

Os estudos sobre o sistema prisional no Brasil são orientados sob prismas diversos, o que instala no leitor diferentes formas de compreendê-lo. A partir do objeto de estudo desse trabalho, procurou-se fundamentar através dos autores Ana Luiza Flauzina7 e Fernando Salla8, no contexto histórico, a realidade vivida pela atual população carcerária feminina no país, com especial atenção à mulher negra. Estes autores transitam pelo tema proposto de forma diversificada, desde o período do Brasil Colônia até o momento atual.

Através deles, cada qual na sua particularidade, constata-se que os estereótipos a respeito da mulher criminosa contemporânea, bem como a maioria das características deste instigante universo prisional, foram construídos e perpetuados simultaneamente à trajetória da construção do Brasil, da cultura brasileira.

A consolidação do sistema penal começou na biografia da escravização negra, e é na lógica da dominação étnica contemporânea que continua a operar em seus excessos. A atuação desse sistema está ligada ao passado colonial, com vestígios de um direito penal de ordem privada (Flauzina, 2008).

A periodização de Nilo Batista9, utilizada como referência por Flauzina, citada em trechos deste capítulo, indica a vigência de quatro sistemas brasileiros, o colonial-mercantilista, o imperial-escravista e o republicano-positivista, além do que preside a contemporaneidade, que a autora denomina de neoliberal.

1. Eis que se inicia a punição na terra do pau-brasil

É importante remeter-se ao sistema punitivo mercantil (período de 1500 a 1822), que produziu a espinha dorsal da lógica de atuação do aparelho repressivo no país, na colônia portuguesa a partir da implementação das “Ordenações

7 Flauzina é advogada e historiadora, especialista em Sistema de Justiça Criminal, mestra em Direito

e docente.

8 Salla é cientista político e social, mestre e doutor em Sociologia, docente e pesquisador.

9 Livre-docente em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor doutor,

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Filipinas”10, no volumoso e minucioso livro V, que dispõe sobre os crimes e às formas de sua punição, até a adoção do Código Criminal do Império de 1830.

Essa legislação abrangia questões diversas, como blasfêmia, feitiçaria, benzimento de bichos, incesto, adultério, homicídio, injúria, furto, vadiagem, bailes de escravos, resgates de presos, jogos, judeus e mouros etc. Previa, também, a pena de morte, nas diversas concepções, segundo a legislação portuguesa; determinava penas corporais como açoites, a mutilação de mãos, da língua, etc., queimaduras com tenazes. O confisco de bens e as multas eram igualmente utilizados como pena. Havia ainda um conjunto de penas que se destinava a expor ao ridículo ou à condenação pública os infratores. Embora tivesse essa variedade de penas, as Ordenações não estipulavam, para nenhum crime ou circunstância, a pena de prisão isoladamente.

As inúmeras instituições prisionais da época eram, geralmente, desprovidas de um sentido ou finalidade ressocializador, eram um “recurso coercitivo para o cumprimento de outras penas”, um exercício do poder arbitrário nas vilas e cidades do mundo colonial (Salla, 1999, p.34-35).

Flauzina (2008) percebe e evidencia algumas questões relacionadas ao Livro V das Ordenações Filipinas: o racismo11, na coisificação do escravo, quando no art. 62, por exemplo, é apenado com pena de furto o indivíduo que, achando um escravo fugido, não reportar a descoberta em quinze dias ao senhor ou à autoridade competente; o patriarcalismo, que abarca a dimensão do resguardo da honra familiar pelo controle dos corpos femininos e a imposição de um código sexual castrador (no art. 38, por exemplo, o marido é autorizado a matar a mulher em caso de adultério); o resguardo das convenções religiosas e a correlata confirmação da soberania do poder real (p. 58).

10 Legislação reformulada durante séculos, em vigor em Portugal desde 1603. As Ordenações

Filipinas, ou Código Filipino, são assim denominadas por terem sido promulgadas por Felipe I, rei de Portugal e Espanha (Gusmão, 1914, apud Salla, p. 33).

11 Racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas em preconceitos raciais, os

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Outro aspecto peculiar do Livro V, que por tanto tempo norteou as ações do corpo político administrativo colonial, era a distribuição de penas segundo a condição social do transgressor. Se o indivíduo era escravo ou peão, poderia ser recolhido à prisão, pagar multa ou ainda ser açoitado ou condenado à morte. Se fosse um indivíduo de “maior condição”, pagava apenas as multas ou então era degradado para o Brasil ou África, recebendo sempre tratamento distinto.

Há um exemplo curioso, na cidade de São Paulo, da forma racista de lidar com o crime e a punição segundo a qualidade do seu autor. Salla (1999) narra que em setembro de 1810, o governador da capitania, Antônio José da Franca e Horta, expediu uma proclamação que proibia as mulheres de andare com as cabeças cobertas e, ao mesmo tempo, fixava as penalidades no caso de infração:

Portanto, pondo em seu inteiro vigor a lei que prohibe ás mulheres semelhantes rebuços novamente ordeno que toda a mulher que for achada rebuçada por qualquer maneira que traga a cara coberta (pois a devem trazer inteiramente descoberta) sendo nobre das quaes não espero a contravenção das reaes ordens, seja recolhida por qualquer official militar, ou de justiça a casa decente, e se mandará immediatamente parte para a mandar a sua casa com decencia devida á sua qualidade e pagará vinte mil réis para o Hospital dos Lazaros desta cidade se for mulher ordinária, e mulata ou preta forra pagará oito mil réis da cadeia applicados na mesma forma com oito dias de prisão. As escravas porém não poderão trazer baeta pela cabeça, e as que assim forem achadas serão castigadas corporalmente na cadeia a meu arbitrio (RGCSP, 1810, 305-6, apud Salla, 35).

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A arquitetura punitiva a partir do discurso da inferioridade negra, “o manejo do sistema penal, principalmente pela difusão do medo e de seu poder desarticulador, cumpriu um papel fundamental nos processos de naturalização da subalternidade”

(Flauzina, 2008, p.62). Entende-se, portanto, que os mecanismos de controle, mais do que manter a população negra na posição de submissão, deveriam ser capazes de fazer com que os negros internalizassem a inferioridade como parte da constituição de seu caráter.

O sistema penal colonial-mercantilista consolidou sua identidade a partir do projeto que regulamenta os destinos da população negra, tendo desde então mudado seus contornos sem nunca perder de vista essa função primordial. Nesse primeiro momento, atendendo diretamente os interesses de uma elite aristocrática, o aparato penal foi funcional à conservação da propriedade de terras e gentes. Finalmente, atravessado pelos postulados racistas que presidiam o mundo colonial foi, sem dúvida, um dos principais instrumentos para instaurar e manter as assimetrias raciais no país (Flauzina, 2008, p.64).

2. Sistema imperial-escravista e emancipação política

A luta pela organização de um aparato jurídico-político próprio começou a ganhar corpo, especialmente na área da justiça, quando a Corte portuguesa retornou a Portugal, que, por sua vez, acentuou as pressões contra os avanços ocorridos no Brasil.

Salla (1999) conta que, em 1821, o príncipe regente, D. Pedro, por meio de um decreto de 23 de maio, ordenava algumas modificações significativas nas práticas das autoridades policiais e judiciárias, marcadas ainda pela arbitrariedade. Essas heranças das Ordenações não mais se coadunavam com a fachada liberal que o momento político exibia.

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paradoxo da convivência entre liberalismo e escravidão no Brasil” (Flauzina, 2008, p.66).

A Constituição de 1824, no seu artigo 179, apontava a necessidade de organização, quanto antes, de um código criminal, para que fossem substituídas as Ordenações do Reino e se fizesse a adequação da legislação ao espírito constitucional que passava a vigorar no país. Além disso, abolia os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as penas cruéis. No entanto, o que viria estipulado na constituição em termos de abolição das penas cruéis, degradantes e de açoites não se aplicaria aos escravos (Salla, 1999, p. 43 e 44).

Afirma Flauzina (2008) que “o império foi arquitetado para evitar as rupturas com a ordem social, sedimentar os privilégios e dar o sinal definitivo de que o projeto do controle somar-se-ia o do extermínio” e que - sem enxergar no segmento negro nada além de sua “vocação” para o trabalho forçado - “as elites construíram o Império como forma de preparar as condições para gerenciar aquele contingente e o inviabilizar coletivamente em termos sociais” (p.65, 66).

Daí, então, emergiu um medo branco que atribuía ao segmento negro o estatuto de inimigo inconciliável. Foi movido por esse caldeirão de insegurança que o projeto liberal se converteu em um projeto policial que, como uma espécie de mantra, teve seu principal mote na obsessão do controle dos corpos e do modo de vida da população negra.

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com a estrutura social escravista e pelas diferenças e distâncias no acesso dos indivíduos à lei.

A transferência dos açoites das ruas para as prisões, evitando-se o desencadeamento de uma reação em massa aos abusos do poder punitivo, elaborou um sistema penal “subterrâneo”, indispensável à manutenção do poder hegemônico, que seria assumido em definitivo na arquitetura punitiva republicana.

Como reflexo dos interesses da aristocracia rural, o Império passou a resguardar a instituição escravista em toda a sua extensão. Nesse contexto, nada mais natural do que a persistência de um sistema de base corporal, que, associado a uma estrutura pública mais bem consolidada, guardava grande semelhança com o regime colonialista que o precedeu.

De instrumentos destinados a garantir o controle sobre os indivíduos que deveriam ser julgados, banidos, açoitados ou ainda que deveriam pagar multas, as prisões passariam a ocupar um novo papel no cenário das penas. Polarizaram-se nos EUA e Europa, entre 1830 e 1850, os debates sobre sistemas penitenciários mais eficientes. Salla (1999) expõe que “o isolamento contínuo, diurno e noturno, com trabalho na própria cela, adotado em Filadélfia, opunha-se ao de Auburn, onde o isolamento noturno era seguido de trabalho diurno em conjunto sob o silêncio dos condenados” (p. 59, 60).

A Lei imperial de 1º de outubro de 1828, artigo 56, previa a formação de comissões de cidadãos “corretos” para visitar os diversos tipos de prisões para informarem do seu estado e dos melhoramentos que precisavam. Um dos relatórios das visitas empreendidas na Cadeia da cidade de São Paulo observa o problema da mistura de presos. Além de acusar a danosa prática da distribuição de não-sentenciados e condenados no mesmo espaço, critica a mistura dos indivíduos pela sua idade, raça e cultura distinta que possuem.

As representações preconceituosas revelam algo que permeia a reflexão sobre o encarceramento no Brasil, praticamente dos primórdios de nossa história aos dias de hoje: a condição diferente na hierarquia social determina a situação igualmente diferenciada sob a qual estarão submetidos os indivíduos no cárcere (Salla, 1999).

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direto do projeto político de vigilância assumido pelas elites” (p.67). Interessante é a constatação de que o escravizado, considerado como objeto para todos os demais ramos do direito (sobre ele incidiam taxas, impostos, e se seqüestro era considerado um furto), era tomado como pessoa ante o direito penal. Na esteira do medo de uma eventual ruptura com os termos da ordem vigente, o crime de insurreição, previsto no artigo 113 do referido instrumento legal, previa pena de morte para as lideranças.

Com a intensa urbanização e a grande concentração de pessoas negras nas cidades, foi indispensável arquitetar uma rede mais complexa de controle, dotada de um aparato institucional mais consolidado. Investindo sobre essa realidade, o direito de ir e vir dos negros, escravizados ou não, passa a ser objeto de normas cada vez mais rígidas (idem, p.68).

A autora comenta que outro aspecto relevante foi a vedação constitucional e infraconstitucional à profissão dos cultos de origem africana e das manifestações culturais próprias desse contingente, considerados perturbadores da ordem pública e, portanto, contrários à moral e aos bons costumes.

Pela manutenção da ordem, o arcabouço jurídico foi se armando para gerir a movimentação da massa negra nas cidades, dizer onde e quando poderiam circular e professar seus cultos, que tipo de atividades lhes eram cabíveis. A atividade policial, herdeira da truculência do vigilantismo privado, garantia a superlotação de prisões e a “limpeza” das cidades (idem).

Através de uma desconfiança generalizada e criminalização das alternativas de vida da população negra que a polícia garante o recrutamento da delinqüência no interior do Império. Eis a base da afirmação – contemporânea e verdadeira – de que, afinal, “todo camburão tem um pouco de navio negreiro” (Flauzina, 2008, p. 71).

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Outra característica do século XIX é o governo ser entendido como o intérprete da vontade divina e para tanto criava instituições para atender os desgraçados de toda sorte, como os órfãos, os loucos, os pobres, os doentes, os criminosos.

Tratava-se de recompor uma moral pública combatendo e corrigindo, de um lado, os que abandonam às “paixões violentas” e sucumbem à ociosidade, à libertinagem, à embriagues, ao crime. (...) De outro lado, o governo, enquanto instrumento e intérprete dos desígnios de Deus, também não poderia abandonar os que tiveram a desventura de serem órfãos, pobres, incapazes. Neste sentido a “desordem” é entendida como a ruptura de um mundo hierarquizado onde cada qual tem o seu lugar. Negros rebeldes no mundo do trabalho deveriam ser corrigidos para se adaptarem e aceitarem o seu papel de escravos na sociedade. Índios, ex-escravos, mestiços em geral são alvos das investidas dos poderes locais igualmente com o intuito de manter esses grupos confinados ao lugar subalterno que ocupavam na sociedade imperial. A forte presença da religião católica no Brasil reiterava as concepções hierarquizantes a partir das quais se entendia a ordem social. Não são poucas as vezes que chefes de polícia ou mesmo ministros da Justiça colocavam os problemas do crime na falta de orientação religiosa, no distanciamento do povo das práticas ditadas pela igreja (Salla, 1999, p. 64).

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Neste sentido, as casas de correção, inauguradas na década de 50, além de impotentes para a reversão do quadro e para a imposição de um novo padrão ao encarceramento no país, serviram de depósitos, melhor construídos e mais organizados, para “um variado leque de indivíduos que para lá eram recolhidos, envolvendo não só os condenados propriamente a pena de prisão com o trabalho, mas também os vadios, menores, órfãos, escravos, africanos ‘livres’ ” (Salla, 1999, p. 66).

2.1 -Casa de Correção de São Paulo

A obra “As prisões em São Paulo, 1822-1940” é utilizada como referência para fundamentar o que ocorrera, à época, pelo país afora na experiência da Casa de Correção de São Paulo.

Inaugurada em 1852, havia nas dependências da Casa de Correção de São Paulo, o calabouço. Lá ficavam os escravos que eram recolhidos ali por seus senhores, para serem castigados, ou fugitivos que eram capturados. Quando criado, o calabouço destinava-se ao recolhimento de escravos presos policialmente, fugidos e os que fossem remetidos por seus senhores, e administradores, ou pelas autoridades judiciárias em depósitos.

Os escravos deveriam ficar sujeitos às mesmas regras disciplinares e castigos impostos aos demais sentenciados e, mais, a pancadas com palmatórias e chibatadas por qualquer falta grave e especialmente insubordinação contra os guardas e outros empregados da casa.

As principais ocorrências na Casa de Correção, até meados da década de 1860, ficaram mais por conta dos escravos do calabouço e dos africanos livres que ali residiam.

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descabido considerar que, neste período, a Casa de Correção desempenha um importante papel no controle dos escravos rebeldes e fugitivos, bem como na administração da vida e do trabalho dos africanos ditos livres, mas que na verdade estavam sob tutela do estado (Salla, 1999, p. 77).

O autor elucida que a questão destes africanos remonta às exigências que a Inglaterra fazia ao governo brasileiro em favor da abolição do tráfico de escravos, desde as primeiras décadas do século passado. Salla (1999), seguindo a reflexão de Perdigão Malheiro (1976), diz que a condição de africano “livre” surge a partir de uma legislação de 1831. Ao considerar ilícito o tráfico, esta legislação determinava que seriam livres todos os escravos que dessem entrada nos portos do Império e também que deveriam ser reexportados para a África.

A dependência da economia brasileira ao trabalho escravo tornou o contrabando de africanos, desde então com grandes riscos, “um negócio ainda mais lucrativo e que não cessou apesar das pressões e da vigilância que mantinha a Inglaterra” (idem).

Quanto à reexportação dos escravos apreendidos, Malheiro, citado por Salla (1999), diz que o governo tentou realizá-la algumas vezes, mas abandonou-a pelas dificuldades com o local para estabelecê-los e principalmente pela enorme despesa a fazer e dificuldade de transporte. Enquanto aguardavam uma solução, os africanos eram mantidos pelo governo. Foram estas limitações e o ônus com o sustento que fizeram com que o governo, em meados da década de 1830, permitisse que os africanos tivessem os seus serviços arrematados a estabelecimentos públicos, sob a proteção dos juízes de órfãos, porém, neste caso, sem salário. Fora criado o cargo de Curador Especial dos Africanos exatamente para defendê-los em juízo.

Salla (p.79) explana que

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reexportação dos escravos apreendidos. E depois, com o decreto nº 1303, de 1853, os africanos que já haviam prestado catorze anos de serviço a particulares seriam emancipados. Para não perder o ranço de tutela sobre estes africanos, o curto decreto estipulava, porém, que teriam a obrigação de “residirem no lugar que for pelo Governo designado, e de tomarem ocupação ou serviço mediante um salário”. No início da década seguinte, tal medida passou a alcançar também os africanos que estavam em estabelecimentos públicos. Até que, finalmente, em 24 de setembro de 1864, pelo decreto nº 3310, todos os africanos “livres” do Império foram emancipados.

Na contextualização da época, Flauzina (2008) evidencia que a partir de 1850, com o argumento da substituição da mão-de-obra negra por trabalhadores mais qualificados, o incentivo à imigração européia apareceu como política que teve o racismo entre suas motivações, numa tentativa de “clarear” o país (na substituição dos corpos negros pelos brancos) e fazer acreditar que, na mistura das raças, o elemento branco prevaleceria.

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para que a suposta irracionalidade da escravidão fosse explicada tanto em termos do caráter compulsório de seu regime de trabalho quanto pela inferioridade racial dos escravos africanos. Essa convergência entre liberalismo e racismo se explicita principalmente a partir da segunda metade do século XIX, quando um posicionamento especificamente imigrantista começa a se formar no Brasil (Azevedo, 2004, apud Flauzina, p. 74 e 75).

Flauzina (2008) entende que “o imigrante europeu foi, nesse sentido, o antídoto à intoxicação negra, que a essa altura já começava a sufocar as elites locais” (p. 75) e que, tampouco, “o conjunto de leis promulgadas entre a década de 1850 e a década de 1888 não deve ser considerado, a nosso ver, na perspectiva de uma abolição gradual” (idem).

Assim,

A Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, que extinguiu o tráfico de escravos, a Lei do Ventre Livre, de 1871, que “libertou” os filhos das escravas, a Lei dos Sexagenários, de 1885, que libertou os escravos a partir da idade de sessenta anos, para citar apenas dispositivos mais célebres, constituíam uma base simbólica funcional aos interesses das elites imperiais. Esticando a vida dessa instituição agonizante, a aristocracia criou a imagem de uma classe senhorial benevolente, além de dar respostas às pressões inglesas, cada vez mais fortes. Por meio desse tipo de mecanismo que não visava a libertar aos poucos, mas ao contrário, a aprisionar um pouco mais, as elites brancas ganharam o tempo necessário para construir o novo fenótipo do país (idem, p.76).

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documentação da Casa de Correção de São Paulo consultada, que esses indivíduos eram colocados em vários serviços do governo provincial. Assim, alguns moravam na Casa de Correção, inclusive com as suas famílias, onde prestavam serviços internos (limpeza, cozinha, lavagem de roupas) e também dali saiam para serviços “externos” como, por exemplo, no Palácio do Governo ou no Jardim Público; outros moravam e trabalhavam nas obras das estradas de Cubatão; outros residiam em instituições como o Seminário de Educandos, Hospício de Alienados, Seminário de Educandas. Em todos estes locais a prestação de serviços e sua circulação era rigorosamente controlada pelo governo como se fossem trabalhadores escravos.

É assim que, muito provavelmente, a Casa de Correção tenha se transformado num ponto de convergência para o remanejamento destes africanos à medida que eles apresentavam “problemas” nos locais onde trabalhavam.

O autor diz que dentre as formas mais usuais de que se utilizavam os escravos para resistir ao confinamento no calabouço, certamente, a fuga era a principal. Depois de um escravo ter tentado uma fuga e ter sido ferido por uma sentinela do calabouço, o diretor da Casa de Correção, em dezembro de 1876, reclama ao presidente da província que estas tentativas eram comuns e que exigiam, portanto, medidas destinadas a “melhorar o Regulamento”.

Uma das sugestões indica

(...) a necessidade de os escravos usarem o argolão no pescoço, a substituição dos escravos por pessoal livre nos serviços do estabelecimento e providências em relação aos escravos que ficavam ali detidos por mais de dois ou três anos, sem que fossem reclamados por seus senhores (que eram os responsáveis pelo acerto das despesas de manutenção do escravo no calabouço) (Salla, 1999, p. 86 - 87).

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colocados de castigo. Dessa forma, vale a pena apresentar algumas das anotações deixadas nos documentos para se poder avaliar as formas de rebeldia dos presos e as punições que eram impostas (idem, p.73).

O castigo mais imposto aos presos consistia no confinamento em cela própria para punição. Por vezes aparecem as expressões “castigo na prizão escura”,

“castigo com prizão solitária”, “prizão obscura e jejum de pão e agoa”. Mas nem sempre eram explicitados os motivos que provocavam estes castigos, limitando-se as observações a frases como “por infracção do Regulamento”, “por infracção da disciplina”, “por insubordinação” (Salla, 1999, p. 73).

Os estudos apontam que nas duas primeiras décadas de funcionamento da Casa de Correção, prestou-se ela a um intenso e bastante diversificado encarceramento. Salla constata que, “embora tivesse sido criada para abrigar os condenados à pena de prisão com trabalho, só raramente o seu uso para o confinamento de outros indivíduos, condenados ou não, foi questionado” (p. 91).

Para rematar a exposição sobre a Casa de Correção de São Paulo, desde seu o início, ao lado dos sentenciados àquela pena, eram sistematicamente para ali recolhidos os escravos e os africanos “livres”, que ficavam no calabouço.

2.2 - Novas percepções do encarceramento

As causas dos crimes, as motivações do indivíduo para cometê-los e a busca das formas de a sociedade punir os criminosos a partir da década de 1870 ganharam novos contornos no Brasil. A prática dos crimes ganhou atribuições sociais, psicológicas, raciais e biológicas, ao invés dos referenciais religiosos e morais, que antes predominavam. A falibilidade, o erro, a tentação são tópicos que começam a ser substituídos pela condição miserável do criminoso, pelo local de sua moradia, pela sua filiação ao grupo étnico, pelas suas características psicológicas a até pela disposição de seus traços físicos e biológicos. “As prisões, por sua vez, deveriam deixar de ser meros depósitos de presos, para tornarem-se locais de um verdadeiro tratamento, no sentido médico” (Salla, 1999, p. 115).

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torno de alguns pontos de vista relativos ao crime, aos tipos de pena e às formas de sua aplicação. Sugestões para o funcionamento dos órgãos encarregados da administração da penas emergiram no intervalo entre as décadas de 70 e 90.

As transformações econômicas e sociais foram lentamente provocando, para as elites que dirigiam o país, novos desafios na medida em que começavam elas a viver de modo mais próximo do estilo europeu urbano (inglês e francês principalmente) e ao mesmo tempo tinham que dividir o espaço da cidade com uma nova composição da sociedade. Sintoma deste estranhamento que as elites demonstravam eram os reclamos de uma criminalidade cada vez maior que a cidade apresentava – imigrantes, pobres, negros forros eram visto com os responsáveis pelo número cada vez mais de prostitutas, de ladrões, de vadios e de mendigos (idem, p. 118).

Outro aspecto realçado diz respeito às “preocupações mais intensas com a vadiagem, ao longo da década de 1870, aparecem também, e até mais intensamente, nos relatórios dos chefes de polícia da Corte” (idem, p. 119).

Na cidade do Rio de Janeiro, houve intensa repressão policial e diversos reclamos dos chefes de polícia, associando a vadiagem, a desordem, à prática da capoeira, reconhecida como contravenção no código de 1890, no ápice da “discussão”.

De acordo com o Salla (1999), neste mesmo momento é que foram se intensificando também as idéias acerca do vínculo entre crime e camadas pobres da população. Os territórios da criminalidade começavam a ser identificados com as moradias pobres e deterioradas da cidade.

Mais do que a relação exposta no parágrafo anterior, Flauzina (p. 79) diz que

“no final do período colonial, o racismo dá o tom de nossas relações, divide os espaços, dá ou retira a humanidade das pessoas, diz das possibilidades coletivas em termos sociais”.

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É possível perceber que, no final da década de 1860 e ao longo da de 1870, tem início a conformação de um discurso em torno do crime e do encarceramento que apontaria para uma negação sutil do indivíduo genérico, universal, contemplado pela lei. Ao criminoso como cidadão que rompe, de seu livre-arbítrio, o pacto legal, sucede o criminoso portador de uma enfermidade. Os traços biológicos, psicológicos e sociais específicos, particulares a um determinado indivíduo, ganham realce e começam a fundamentar não só uma teoria sobre o crime e o criminoso, mas, também, as formas de atuação de instituições como a polícia e a prisão. No entanto, embora esse discurso comece a ganhar corpo nesse período, só depois, com a presença das correntes criminológicas positivistas, é que ele consegue substância e poderosa influência junto aos juristas (p. 128 - 129).

Nas últimas décadas do século XIX há um intenso, porém desarticulado, conjunto de novas concepções sobre o crime, o criminoso e as formas de puni-lo. A este cenário juntaram-se dois movimentos que determinaram os rumos do encarceramento no Brasil. Em primeiro lugar, as idéias republicanas e o próprio movimento que depôs o imperador colocaram na ordem do dia a recomposição do Estado. Nesta nova sociedade, as formas de controle social assumiram um papel muito mais relevante do que tiveram até então. Uma rede de instituições de controle para menores abandonados, loucos criminosos, vagabundos ocupa importante espaço na agenda republicana. A elite que assumiu o país realçou estas instituições, dentre elas a penitenciária. Em segundo lugar, o outro movimento foi o da forte presença das idéias da escola penal positiva que, apesar de todas as contradições que pudessem apresentar com o Brasil republicano, foram ferramentas importantes para as elites. Os principais representantes desta escola buscavam incansavelmente formular seus argumentos calcados na ciência.

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qualquer possibilidade para rupturas. E foi com a sensação de dever cumprido que, em 1889, esse sistema entregou às mãos da República um edifício de controle de corpos negros que, uma vez, seria preservado (Flauzina, 2008, p. 80).

3. Proclamação da República, advento da democracia racial

Distintos são os destaques dados pelos autores que fundamentam esta dissertação quanto às primeiras experiências do período republicano. Flauzina (2008) entende que

A arquitetura punitiva republicana desse primeiro período visa, fundamentalmente, à incorporação da massa urbana e dos episódios do escravismo no campo ao projeto de desenvolvimento industrial e produtivo carrega, portanto uma dimensão racial de base. Se a ocupação da mão-de-obra é o pano de fundo, a disciplina dos trabalhadores brancos estará vinculada a uma tentativa de estabilização e acomodação da vida proletária, enquanto sobre o segmento negro incide um controle que almeja, além de garantir a mão-de-obra para o projeto modernizador, resguardar a cor do poder, tolher qualquer esperança de uma equalização advinda do fim do processo escravista, definir, enfim, o espaço de subserviência a ser ocupado pela massa negra nesses novos tempos. Desde esse primeiro momento, as disposições do sistema punitivo republicano assumiram um controle diferencial para lidar com as especificidades dos grupos a serem gerenciados (p. 86).

Imagem

Tabela 1 - Quantidade de presas por cor de pele/ etnia – Brasil
Tabela 2 - Quantidade de presas por cor de pele/ etnia – São Paulo  Jun.07  Dez. 07  Jun.08  Dez

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