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NOMEANDO O INDIZÍVEL: “BRANCA PARA CASAR, MULATA

3 AINÁS, NZINGAS, NGAMBELES E OUTRAS MENINAS LUAS

3.8 NOMEANDO O INDIZÍVEL: “BRANCA PARA CASAR, MULATA

Em abril entrevistei Conceição, mulher negra de 15 anos. Ela é mãe solo de uma bebê e mora na casa de sua avó, onde foi criada. Conceição está na 7ª série e deixa sua filha com sua avó para frequentar as aulas. Ela me relatou que sentia medo de ser julgada quando estava grávida e que as professoras de sua escola ficavam fazendo comentários como “menina nova de barriga”. Logo no início da entrevista, quando perguntei como foi a descoberta da gravidez, ela me relatou que “não queria a criança” e que tentou realizar um aborto tomando um remédio, mas obteve sucesso. O pai de sua filha tem 20 anos. Conceição me contou que ele trabalha, mas não sabe aonde. Muito calada e de voz baixa, dificilmente Conceição respondia às minhas perguntas a respeito do pai da menina: “Quando eu falei para ele, ele ia me dar remédio para me tomar. Mas só que eu não quis não”, me contou ela.

Conceição e o pai da bebê não se falam mais e ela não sabe dizer nenhuma informação sobre ele, se estudou ou estuda, aonde trabalha e nem onde reside atualmente. Ele morava no

bairro São Miguel com sua mãe. Conceição também não sabe dizer aonde no bairro, “mas eles foram embora e venderam a casa”, contou ela. Quando perguntei onde eles se conheceram ela disse que foi “na rua”, palavra que aparece diversas vezes no seu relato quando menciona o contato com o homem. Conceição afirma ter conhecido o pai de sua filha em uma festa no centro da cidade, sozinha. Ela não conhece nenhum amigo ou conhecido dele.

O pai da filha de Conceição nunca lhe procurou. Segundo ela, já faz um “tempão” que eles não se vêm e ela não lembra seu nome. Na última vez que eles se encontraram foi na rua em uma praça. Quando ela estava com três meses de gravidez, o pai de sua filha lhe disse que se ela “tivesse de barriga” não ia criar. “Eu falei que não precisava de nada dele. Aí ele me bateu uma vez, aí eu não quis mais”, relatou ela. Na época ela estava com três meses de gravidez e ele lhe agrediu em suas costas. Conceição ainda me relatou que uma pessoa viu o ocorrido, mas não fez nada. “Foi aí eu não quis nada, nem eu, nem minha avó. Por isso que a gente registrou no meu nome mesmo”, disse ela.

A avó de Conceição era marisqueira. Atualmente ela é aposentada e lhe ajuda com R$100,00 mensais. A única renda de Conceição é R$60,00 oriundos do Bolsa Família. Sua avó também recebe a mesma quantia do programa. De acordo com ela, sua avó “retou” quando descobriu que ela estava grávida, “mas depois deixou”. O sonho de Conceição é encontrar um trabalho: “qualquer coisa que tivesse trabalho seria bom. Eu arranjei um trabalho, mas não consegui não. Na minha rua é difícil arranjar trabalho”, conta ela. Mesmo enfrentando essa dificuldade financeira, ela e sua avó não querem “ajuda” do pai de sua filha: “minha avó não quis também. Porque minha irmã também tem um filho, aí quando registrou o nome dele, aí ele só queria bater na minha irmã. Por isso que minha avó não quis. [...] Eles namoraram juntos os dois, só que ele só batia nela. Quebrava ela no pau todo dia. Batia nela todo dia”. Ao final da conversa, Conceição me fez perguntas sobre amamentação pois seu peito estava muito inchado lhe causando incômodos. Encaminhei-a então para Fátima Soares, enfermeira obstetra e consultora de aleitamento materno, que estava no dia no núcleo para lhe orientar melhor.

O esquecimento que Conceição alega, quando questionada sobre o nome do pai da criança, pode ser compreendido como um mecanismo de defesa de uma experiência traumática. Esta chave interpretativa aborda a relação entre trauma, memória e esquecimento e vem sendo amplamente explorada em termos conceituais nos campos da Psicanálise e da

Filosofia da História. Partindo desta abordagem normativa, para pensar as correlações possíveis entre trauma e esquecimento, a experiência do não lembrar vivida por Conceição não se apresentaria, neste caso, como uma luta pelo esquecimento. Trata-se de uma busca inconsciente por alojar a experiência traumática fora do seu tempo histórico, isto é, fora da memória, por meio da ausência de uma relação direta entre as imagens que a memória produz e o conjunto de classificações que as representaria, orientados pela linguagem (RICOEUR, 2007). A expansão daquilo que se quer esquecer manifesta uma relação dicotômica entre memória e esquecimento, uma vez que “o esquecimento pode estar tão estreitamente confundido com a memória, que pode ser considerado uma de suas condições”114.

Conceição não verbalizava as respostas para as perguntas sobre o pai de sua filha, mas balançava a cabeça baixa de forma negativa, evitando contato visual. Portanto, esta relação se expande e se manifesta, senão pela linguagem verbal, mas pelos signos produzidos pelo seu corpo. Para Grada Kilomba (2019, p. 161), “a necessidade de transferir a experiência psicológica do racismo para o corpo expressa a ideia de trauma no sentido de uma experiência

indizível, um evento desumanizante, para o qual não se tem palavras adequadas ou símbolos

que correspondam”. Podemos dizer que Conceição passou por uma experiência indizível, como categoriza Kilomba, pois sendo uma uma mulher negra, está posicionada em uma encruzilhada de avenidas identitárias, o que lhe torna mais vulnerável a colisão dessas estruturas e fluxos (AKOTIRENE, 2019). Sua experiência, apesar de não ser restrita à mulheres negras, é significativamente mais recorrente entre nós devido aos arranjos entre estruturas inseparáveis como racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado que moldam o imaginário social sobre a mulher negra no Brasil: “Branca para casar, mulata para f... e negra para trabalhar” (PACHECO, 2013, p. 258).

Ativistas e intelectuais do Feminismo Negro como Stephanie Ribeiro, Claudete Alves (2010) e Djamila Ribeiro vêm apontando que “a mulher negra não é vista como um sujeito para ser amado”115estando em uma espécie de celibato definitivo. De acordo com os Censos

do IBGE de 2010116as mulheres negras não são somente a maioria entre as mães solos, as

maiores vítimas de agressões e abandono dos parceiros como também são as que menos casam: 70% dos brasileiros se casam com parceiros de mesma cor, mas 52,52% das mulheres

114 Ibid. p. 435.

115Informação disponível em: <https://claudia.abril.com.br/sua-vida/a-mulher-negra-nao-e-vista-como-um-

sujeito-para-ser-amado/21>. Acesso em 21 de jan. de 2020.

116 Censo IBGE 2010. Informação disponível em: <https://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html>. Acesso em 21 de jan. de 2020.

negras, principalmente aquelas de pele mais escura, estão vivendo fora da união estável (IBGE, 2010). Mediante a esta situação,

[a] mulher negra e mestiça estariam fora do “mercado afetivo” e naturalizada no “mercado do sexo”, da erotização, do trabalho doméstico, feminilizado e “escravizado”; em contraposição, as mulheres brancas seriam, nessas elaborações, pertencentes “à cultura do afetivo”, do casamento, da união estável (PACHECO, 2003, p. 25).

Apesar da vulnerabilidade socioeconômica, neste relato, a defesa contra a violência de gênero aparece como uma prioridade para preservação da saúde física e mental da mãe. Mas esta, só foi possível, mediante ao apoio da avó que concordou com a vontade de Conceição. Mães em situações como esta, que soma desemprego, menoridade e baixo grau de escolaridade, possuem uma tendência a depender de terceiros em uma conjuntura de baixíssimas políticas para mães e para a primeiríssima infância, políticas de prevenção de gravidez na adolescência e criminalização do aborto. Em um cenário sem a avó, Conceição possivelmente seria forçada a depender financeiramente de seu agressor.

3.9 “SE EU ME SEPARAR DELE PARA ONDE EU VOU?”

A dependência financeira pode se apresentar como um grande impasse para a liberdade de mulheres, principalmente de jovens mães que nunca trabalharam anteriormente, como no caso de Mirela, jovem mãe negra de uma bebê de 2 meses, moradora do bairro Basílio. Entrevistei Mirela no núcleo espírita no dia 27 de abril. Ela me contou que estava com o pai da criança pois não tinha para onde ir. Mirela ainda não se cadastrou no Bolsa Família e nunca trabalhou na vida. Ela me disse que não ama o pai da criança, mas que não poderia voltar para a casa de sua mãe porque seu padrasto não gosta dela e que seu pai “tem problemas”. O mesmo com relação a sua tia: “minha tia não vai me querer porque tem uma filha. Ela fala que não vai cuidar de mim nem da minha filha, que eu tenho de ficar com ele. E meu irmão mais velho não tá aqui”, disse ela. Quando Mirela fez 13 anos, sua mãe lhe mandou para casa de seu pai por causa dos ciúmes de seu padrasto. Depois de um tempo, ela narra que seu pai acabou “ficando doido” e ela foi morar com sua tia. Mirela relata que também tem

“problema”. Ela bateu com a cabeça em uma pedra quando era criança por isso esquece das coisas rapidamente.

Mirela me contou que quando descobriu que estava grávida, achou “muito esquisito”, sentiu muito medo, mas que agora “se sente um pouco melhor”. Ela acredita que a maternidade tem sido estranha e difícil. Durante toda a entrevista, Mirela demonstrava bastante dificuldade em explicar como se sentia nesse período de puerpério: “cada palavra difícil”, disse ela. Quando sua tia descobriu que ela estava grávida brigou com Mirela que acabou indo morar na casa de sua sogra com o pai da sua filha. Ele por sua vez, não possui um emprego fixo, faz alguns “bicos” como descarregar caminhão.

Mirela me relatou que frequentou a escola apenas duas vezes durante a gravidez, depois que pariu, foi “mais umas três vezes”. Ela não continuou indo à escola pois estava dando leite de gado para sua filha, o que acabou trazendo problemas para sua bebê que “se sentia mal”, fazendo um cocô “verde e bem fedorento”. Mirela levou sua filha na pediatra que, segundo ela, disse que o leite “estava estragando” sua filha “por dentro”. Quando perguntei porque ela decidiu dar o leite de vaca para sua filha, ela me disse que pensava que seu leite “estava fraco” e que sua sogra sempre lhe falava que o leite não estava sustentando sua filha porque ela chora demais. Mesmo após a orientação da médica, sua sogra ainda fazia chá para sua filha. Mirela me disse que seu sonho é ser médica, mas que acha que agora mediante sua maternidade, será mais difícil.

No final da entrevista, assim como Conceição, Mirela me fez perguntas sobre amamentação. Ela estava incomodada com um peito maior que outro. Avaliando os casos das mulheres assistidas pelo projeto Sementinha percebi junto com Fátima Soares como as mães são pouco/não são orientadas para a amamentação. Este cenário, junto com a tutela da mulher mais velha da casa onde ela reside, no caso sua sogra, passa a mensagem para Mirela que ela está falhando em amamentar sua filha, sendo “insuficiente”, o que, como foi visto, pode gerar consequências graves como mastite na mãe e diarreia e alergias no bebê recém-nascido que ainda possui um sistema digestivo imaturo.

Mirela passou por diversas casas de parentes antes de sua gestação. Diferente da relação de Cris com sua mãe, Lúcia, o que aqui é contado, é uma história de abandono. As mulheres da vida de Mirela não possuem o que Lúcia chamou de “ponto de vista humanitário, fraternal” para com mães. Sem praticamente nenhuma rede de apoio e ao lado de um homem que ela diz não amar, o sonho de Mirela “está adormecido” como o de Amanda. Nesta situação, sendo a

maior responsável por sua filha, Mirela não consegue dar continuidade aos estudos. Uma política que possa acolher mães gestantes - vale ressaltar que gestantes sofrem violência psicológica de professores e estudantes - e com filhos em escolas públicas têm se apresentado como essencial para que mulheres possam alcançar seus sonhos e independência financeira.

3.10 MULHERES NEGRAS E ABORTO: “ME DERAM BASTANTE CHÁ PRA ME