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1. CONSIDERAÇÕES CIENTÍFICAS

1.6 Norma Jurídica: um assunto necessário

1.6.1 Norma Jurídica em Sentido Estrito e Incidência Jurídica

Apesar de utilizado à exaustão em inúmeras e inusitadas ocasiões, a voz “em sentido estrito”, quando se trata de “norma jurídica” o termo é daqueles que se mostram oportunos. A redução do campo objetal daquilo que, comumente, se chama “norma” pela referida adjetivação introduz o estudioso no campo das proposições jurídicas que, de fato, se manifestam como aptas a regular condutas humanas. Sobre o tema, são oportunas as lições do Professor Paulo de Barros Carvalho:

A despeito disso, porém, interessa manter o secular modo de distinguir, empregando “normas jurídicas em sentido amplo” para aludir aos conteúdos significativos das frases do direito posto, vale dizer, aos enunciados prescritivos, não enquanto manifestações empíricas do ordenamento, mas como significações que seriam construídas pelo intérprete. Ao mesmo tempo, a composição articulada dessas significações, de tal sorte que produza mensagens com sentido deôntico-jurídico completo, receberia o nome de “normas jurídicas em sentido estrito”.40

A norma jurídica, é um juízo hipotético-condicional. Com isso, expressamos a noção de que essa realidade é construída pelo intérprete (juízo) e, por consequência, só se forma, só existe, na mente daqueles que se propõem a extrair do sistema de direito positivo significações deonticamente estruturadas.

A expressão norma jurídica, quanto utilizada nesse sentido restrito, designa a estrutura dual, formada por um primeiro termo que a doutrina chama antecedente ou hipótese, ligado a outro termo, a que é conferido o nome de consequente ou tese. Essa estrutura dupla, que é unida por uma relação implicacional de causalidade jurídica, é que será objeto de exposição.

Em termos de linguagem formalizada, a estrutura sintática da norma jurídica em sentido estrito pode ser representada pelo arquétipo: “D (H → C)”. Em linguagem não formalizada teríamos a seguinte compostura: “ deve ser que, se ocorrer a hipótese H, instaura-se a consequência C.

A título exemplificativo, poder-se-ia elencar as seguintes normas jurídicas: i) se for proprietário de imóvel, deve ser o pagamento de IPTU; ii) se for a prática de homicídio, deve ser a aplicação de pena de privação de liberdade; iii) ser for a prática de ato ilícito, deve ser o dever de indenizar o dano41.

Observa-se que a conformação de uma estrutura linguística, formada a partir das unidades isoladas que compõem o sistema de direito positivo, sempre será expressa sob a forma “D (H → C)”. Em termos mais analíticos, a relação implicacional pode, ainda, ser descrita da seguinte forma: “se ocorrer o fato F, instala-se a relação jurídica entre sujeitos de direito, que tem como objeto a regulação de uma conduta como proibida, permitida ou obrigada”. Aqui está a homogeneidade sintática do direito positivo: uma hipótese que, se verificada, desencadeia uma consequência jurídica, instaurando uma relação entre dois sujeitos de direito.

Assim, com “homogeneidade sintática” queremos dizer que a mensagem deonticamente estruturada sempre se manifestará nos termos acima expostos, em que uma proposição antecedente, liga-se a uma proposição consequente, fazendo surgir uma relação jurídica entre sujeitos.

Retomando o trajeto semântico, os termos antecedente e consequente da norma jurídica são ligados por uma relação implicacional de causalidade jurídica, não de causalidade natural. Não é a “ordem natural das coisas” que determina que, “se for proprietário de imóvel, deve ser o pagamento de imposto”. É o direito que assim determina as consequências.

A queda de uma árvore sobre um veículo traz inúmeras consequências, tais como a quebra do para-brisas, danos sobre a lataria do veículo, o furor do proprietário. Tudo

41 Os exemplos foram sintéticos e para serem capazes de, efetivamente, regular conduta humana,

ainda seriam necessários mais alguns elementos, tais como coordenadas de tempo e espaço e, também, a indicação do outro sujeito que integra a relação jurídica do consequente e a delimitação do objeto da relação jurídica.

isso ocorre dentro de uma relação causal-naturalística, em uma relação de causa e efeito.

A mesma queda da árvore, sob o ponto de vista jurídico, no entanto, deflagra outros tipos de relação, tais como: i) o dever de a seguradora reparar o prejuízo; ii) a obrigação de o Município indenizar o proprietário do veículo. Essa relação causa- efeito somente existe porque o sistema jurídico assim o prevê.

Sobre o tema, são oportunos os ensinamentos de Lourival Vilanova:

Na lei da causalidade natural, a relação entre hipótese e consequência é enunciativa, descritiva. Podemos esquematiza-la no seguinte modo: “é assim que (it is so) se H, então C”. Modalizando com functores aléticos, diremos: “é possível, é necessário, é impossível que se H, então C”. [...] Na lei da causalidade jurídica há sequências regulares, iterativas, cuja expressão lógica é a implicação formal (que leva em conta a conexidade da conotação entre H e C). Mas é o sistema jurídico que estatui, preceitua, preestabelece dentre as possíveis hipóteses e as possíveis consequências as relações que devem ser.42

Aqui, faz-se necessária uma importante observação. Ao contrário do que se parece sugerir, não é a ocorrência do fato no mundo físico que faz nascer a relação contida no termo implicado da norma jurídica. A queda de uma árvore sobre um veículo, por si só, não faz surgir o dever de indenizar ou a obrigação de a seguradora ressarcir os prejuízos sofridos pelo proprietário.

Apesar de ser comum a afirmação de que a ocorrência, no mundo das coisas, do evento conotativo previsto no antecedente da norma jurídica deflagraria, automaticamente, a incidência normativa, não é isso que se verifica.

A título exemplificativo, tomemos como hipótese a norma jurídica que prevê o dever de a seguradora indenizar se for a ocorrência do sinistro. No mundo dos fatos, se a árvore cai sobre o veículo e causa danos, juridicamente, ainda não ocorreu o sinistro que instaura a relação jurídica indenizatória entre o proprietário do veículo e a seguradora.

A verificação, jurídica, do dever de indenizar fica na pendência do recolhimento dos fatos ao antecedente de uma norma concreta que transforme em linguagem o evento juridicamente relevante e determine o desencadeamento da relação jurídica de cunho indenizatório prevista no contrato de seguro, tudo feito pelo sujeito competente para criação dessa nova norma jurídica.

Assim, não prospera a ideia segundo a qual “uma vez ocorrido o fato, a norma jurídica incidiria automática e infalivelmente”. As normas jurídicas não incidem pela mera ocorrência do evento previsto em seu antecedente no mundo dos fatos. Se não houver um ato de vontade, oriundo de uma autoridade competente, criando uma nova norma jurídica, inexiste “fato jurídico”. Sobre essa temática, leciona Eurico Marcos Diniz de Santi:

(...) parece sedimentar-se (para nós) numa visão jusnaturalista, segundo a qual o direito funcionaria como a natureza, como as nuvens carregadas de hipóteses de incidência e mandamentos que, consolidados no mundo fático, incidiriam qual raios, fulminando seus suportes. Ora, sem nuvens e numa perspectiva realista, necessário se faz admitir: até que a autoridade aplique o direito, quer dizer, juridicamente, nada há; nem fato nem obrigação.43

Em consonância com o que foi exposto, denominamos “fato jurídico” o evento que, recolhido em linguagem competente, foi juridicizado e passou a integrar o antecedente da norma jurídica concreta (ou seja, é a descrição normativa de um “fato ocorrido”44).

Em suma, temos a norma jurídica45 em sentido estrito como um juízo hipotético-

condicional, que traz, de um lado, a descrição de um evento de possível ocorrência e de outro a relação jurídica que será instaurada entre sujeitos de direito, deonticamente modalizada.

43 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e Prescrição no Direito Tributário. 4ª ed. São Paulo:

Max Limonad Ltda., 2005. p. 57.

44 Embora a expressão “fato ocorrido” seja redundante, já que estabelecemos a diferença entre

“evento” e “fato”, queremos enfatizar que a norma concreta se diferencia da norma abstrata, justamente, por trazer em seu antecedente a descrição de um acontecimento (enunciado denotativo), ao passo que a norma concreta traz em sua hipótese a descrição de um evento de possível ocorrência (enunciado conotativo).

45 O termo “evento de possível ocorrência” somente se aplica às normas abstratas. Se estivéssemos

tratando de normas concretas, o antecedente normativo estaria preenchido por um fato jurídico, nos termos explicitados no parágrafo anterior.