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Parte I: Reflexão teórico-metodológicas: a produção do discurso pela interculturalidade

1.2. Norman Fairclough: discurso como prática de mudança social

Semelhante a Fairclough (2001) advogamos o discurso como prática política de mudança social. Mas é preciso saber:

O discurso como prática política estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas (classes, blocos, comunidades, grupos) entre as quais existem relações de poder. O discurso como prática ideológica53 constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder. (...) O discurso como prática política é não apenas um local de luta de poder, mas também um marco delimitador na luta de poder (idem, p. 94).

Do modo exposto acima, a prática discursiva não se opõe a prática social:

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Para Pêcheux, conforme Paul Henry (1997, p. 24) “a ideologia é um processo que produz e mantém as diferenças necessárias ao funcionamento das relações sociais de produção em uma sociedade dividida em classes, e, acima de tudo, a divisão fundamental entre trabalhadores e não-trabalhadores. Neste caso, a ideologia tem como função fazer com que os agentes da produção reconheçam seu lugar nestas relações sociais de produção”. Segundo Eagleton (1997, p. 106), a ideologia é uma maneira de assegurar o consentimento por meio de lutas de poder levadas a cabo no nível do momento discursivo de práticas sociais.

a primeira é uma forma particular da última. Em alguns casos, a prática social pode ser inteiramente constituída pela prática discursiva, enquanto em outros pode envolver uma mescla de prática discursiva e não- discursiva. A análise de um discurso particular como exemplo de prática discursiva focaliza os processos de produção, distribuição e consumo textual. Todos esses processos são sociais exigem referência aos ambientes econômicos, políticos e institucionais particulares nos quais o discurso é gerado (Idem, p. 99).

Subentendendo o discurso como prática discursiva ele deve ser inserido num tempo e espaço, sendo assim, não há discurso sem prática discursiva e não há prática discursiva que não seja gerada por práticas socais (ORLANDI, 1999; FAIRCLOUGH, 2001).

De acordo com a perspectiva de Fairclough (2001) existe uma indissociável correlação entre o estudo de mudanças no discurso e o próprio debate sobre mudança social, ou seja, a compreensão, interpretação e análise de uma determinada prática discursiva, leva em consideração tanto as pessoas quanto os espaços onde realizam-se processos de produção/ intervenção social, podendo ser textual, de consumo, institucionais, econômicos ou políticos. Nesse quadrante, uma prática discursiva pode de igual forma corroborar com a manutenção/reprodução da sociedade, como favorecer operacionalmente com sua transformação, seja ela geral ou específica. Porquanto, o discurso

contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e restringem: suas próprias normas e convenções como também relações, identidades e instituições que lhes são subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado. O discurso contribui para construir as relações sociais entre as pessoas (...) contribui para a construção de sistemas de conhecimento e crenças (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91).

Por perplexo que possa parecer, os discursos denotam sinais diacríticos com relação à representação de mundo sob os quais representam, pois ao se posicionar seguem sempre uma perspectiva de acontecimento discursivo, sendo assim seus efeitos são cumulativos afetando, porquanto, as ordens de discurso. A esse respeito, argumenta Fairclough (2001, p. 128-9):

À medida que os produtores e os intérpretes combinam convenções discursivas, códigos e elementos de maneira nova em eventos discursivos inovadores estão, sem dúvida, produzindo cumulativamente mudanças estruturais nas ordens de discurso: estão desarticulando ordens de discurso existentes e rearticulando novas ordens de discurso, novas hegemonias discursivas. Tais mudanças estruturais podem afetar apenas a ordem de discurso “local” de uma instituição, ou podem transcender as instituições e

afetar a ordem de discurso societária. O foco de atenção na investigação da mudança discursiva deveria manter a alternância entre o evento discursivo e tais mudanças estruturais, porque não é possível avaliar a importância do primeiro para os processos mais amplos de mudança social sem considerar as últimas, da mesma forma que não é possível avaliar a contribuição do discurso para a mudança social sem considerar o primeiro.

Com Fairclough (Idem), nesse quadrante, aparece a necessidade de se entender o funcionamento do discurso na vida social de modo histórico e dialético, ou seja, expor a interrelação entre ordens de discurso e a prática discursiva ou mesmo o evento discursivo. Esse tipo de análise segue uma dupla perspectiva. De um lado, buscam-se compreender, detidamente, os processos de mudança como acontecem nos eventos discursivos; do outro, conferi, metodicamente, uma orientação relativa à maneira como tais processos atingem as ordens de discurso. Segundo o autor,

a posição contraditória dos indivíduos no eventos discursivos e os dilemas que disso resultam originam-se em contradições estruturais nas relações de gênero nas instituições e sociedade como todo. Entretanto, o que decisivamente determina a forma como essas contradições se refletem em eventos específicos é a relação desses eventos com as lutas que se desenvolvem ao redor das contradições. (...) um evento discursivo pode ser uma contribuição para preservar e reproduzir as relações e as hegemonias tradicionais de gênero e pode, portanto, ligar-se a convenções problematizadas, ou pode ser uma contribuição para a transformação dessas relações mediante a luta hegemônica (...). Os próprios eventos discursivos têm efeitos cumulativos sobre as contradições sociais e sobre as lutas ao seu redor. Assim (...), os processos sociocognitivos serão ou não inovadores e contribuirão ou não para a mudança discursiva, dependendo da natureza de uma prática social. (FAIRCLOUGH, op. cit., pp. 127-8).

Uma mudança na ordem do discurso implica novos apelos discursivos sob a base da própria mudança discursiva, isto é, depende diretamente da natureza da prática social com possibilidade de conferir determinada hegemonia à esfera do arcabouço discursivo.

De modo “esquemático” Fairclough (2001, p. 101) apresenta o discurso sobre uma concepção tridimensional54, esquematizada na figura abaixo.

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Para uma análise aprofundada em relação à concepção tridimensional em Fairclough, vide Resende & Ramalho (2004). As autoras acrescentam a “análise de discurso crítica” o caráter emancipatório, destacando nesse tipo de abordagem o comprometimento com a sociedade, mais precisamente, a disposição de uma prática de pesquisa engajada verdadeiramente com os problemas sociais. Nesse caso, uma prática em particular que envolve diferentes configurações de elementos da vida social. Isso supõe compreender não o particular dos eventos individuais, mas a série de eventos instados conjunturalmente, ou seja, relacionados na sustentação e transformação de determinadas práticas sociais.

(Fonte: Fairclough, op. cit., p. 101).

O modelo tridimensional de Fairclough (2001), condensado por Iñiguez (2004) pode ser entendido da seguinte maneira:

a) o discurso enquanto texto (o resultado oral ou escrito de uma produção discursiva); b) o discurso como prática discursiva engastada em uma situação social concreta; c) o discurso como um exemplo de prática social que não só expressa ou reflete identidades, práticas e relações, como também as constitui e configura (IÑIGUEZ, op. cit., p. 119).

Estas representações de uma discursividade manifesta apoiadas por opiniões em movimento proporcionam compreender o “formato” de formações discursivas latentes. Entendê-las, por sua vez, corrobora com a compreensão das dessimetrias que a relação com o interdiscurso é capaz de apresentar. Nesse caso, ajuda saber que há formações discursivas em constante enfrentamento e que, mantendo-se no campo de certas lutas, podem compartilhar discursos semanticamente comuns, embora envolvidas em controvérsias oblíquas e diferenciadas. Não se deve, portanto, negligenciar essas situações. No campo do discurso e interdiscurso55, a crítica realizada pelos professores/as indígenas do Estado de Pernambuco, no que diz respeito à natureza da política de educação formatada pela Secretária Estadual de Educação, emerge de um conjunto intercorrentes de questões: gestão administrativa, currículo próprio, calendário diferenciado, formação continuada, estrutura física das escolas, merenda, transporte escolar, plano de carreira etc., pressupondo, assim, algo que se pode chamar de

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Fairclough (2001, pp. 95-96) diz que o interdiscurso “é a entidade estrutural que subjaz aos eventos discursivos e não a formação individual ou de código”.

TEXTO PRÁTICA DISCURSIVA

(produção, distribuição, consumo)

processos discursivos, ou seja, são sentidos de discursos já realizados, imaginados ou possíveis (ORLANDI, 1999). Esses, digamos, contra-discursos, pautados numa tradição de articular lutas anteriores, predizem o movimento constante de novos discursos. Além disso, permitem postular sob quais condições se têm avançado determinadas situações face à produção de outros acontecimentos no campo político-pedagógico.

Não obstante, o jogo das formações discursivas e das situações estruturais temporalmente disponíveis, supõe a existência de fraturas sobre o campo das afinidades entre os projetos que cada instância considera necessário estabelecer. Trata-se, portanto, de tentar desvelar como por dentro dos conflitos discursivos, existem limites sobre a função dos sujeitos, expressas sob recorrências de problemas, decomposição de interesses e armadilhas político- ideológicas. Ou seja, sob determinada perspectiva interdiscursiva pode haver dizeres que afetam o modo como cada sujeito significa uma dada situação discursiva (ORLANDI, 1999). Nesse quadrante a AD presume, de modo geral, que o discurso não se encontra determinado pelas instituições56 e estruturas sociais, mas que é parte constitutiva delas. Supõe, entre outras coisas, que o discurso constrói o social (IÑIGUEZ, op. cit.) e nele se renova. No intercruzamento das situações abertas pelas necessidades de coesão entre discurso e interdiscurso, torna-se pertinente perceber, como dentro dos espaços de projeção da educação escolar indígena Pankará, colocam-se os predicados de outras formações discursivas, também operantes (o dito e o não dito). Nesse caso, os sentidos pedagógicos dos discursos em educação escolar indígena, carecem ser compreendidos pela relação que estabelecem com suas exterioridades. Conforme Fairclough (2001)57, o discurso é um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação. Porquanto, o discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado. Desse modo, o discurso contribui para construir as relações sociais entre as pessoas, e também contribui para a construção de sistemas de conhecimentos, crenças e poder (Idem, p. 91).

Os obstáculos, advindos das veredas dessa intersecção teórica, germinadas em determinadas condições, são variações comparativas e representacionais. Pois, de acordo com

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Iñiguez (2004, p.130-1) afirma que não devemos entender por “instituições” unicamente estruturas formais como a igreja, a justiça, a educação ou outras semelhantes. Trata-se de considerar como instituição, conforme argumenta, todo aquele dispositivo que delimite o exercício da função enunciativa, o status do enunciado e dos/as destinatários, os tipos de conteúdos que podem ser ditos, as circunstâncias de enunciação legítimas para tal posicionamento.

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Iñiguez (op. cit., p. 249) a legitimação das representações construídas pelos falantes no discurso em relação aos diferentes acontecimentos e agentes sociais

é um movimento discursivo que desempenha um papel essencial na transmissão persuasiva e na implantação das representações sociais. Essa transmissão persuasiva contribui para que sejam consideradas apropriadas determinadas ações ou políticas, de acordo com uma determinada interpretação dos acontecimentos.

Por conseguinte, favorecer o acesso as zonas temáticas dentro desse horizonte teórico tem por finalidade, otimizar um melhor suporte a armadura dos conceitos que se instalam na AD a partir dos deslocamentos perceptíveis na produção do discurso. Dessa forma, estamos de acordo, que para determinar fronteiras entre educação escolar indígena e o modo como os seus consecutores a representam, se faz necessário saber como aparecem num mesmo plano discursivo, filiações de dizeres, dispostas pelas situações da prática pedagógica escolar, no sentido simbólico, operativo e estrutural.

Mormente as escolhas de ações pedagógicas são “lapsos” classificatórios, embora quase sempre, não se tenha total domínio sobre suas conseqüências. Sendo assim, a mutação dos obstáculos interdiscursivos não deve torna-se algo sociologicamente sem possibilidade de análise, mas apenas, desdobramentos de elementos representáveis, advindos de situações concretas em seu movimento incessante.

Certamente o contexto e definição das opções pedagógicas se imbricam com o sentido de representação58. A representação, segundo Silva (1999, p. 35)

é um sistema de significação. Utilizando os termos da linguística estruturalista, isso quer dizer: na representação está envolvida uma relação entre um significado (conceito, ideia) e um significante (uma inscrição, um marca material: som, letra, imagem, sinais manuais). Nessa formulação, não é necessário remeter-se à existência de um referente (a “coisa” em si): as “coisas” só entram num sistema de significação no momento em que lhes atribuímos um significado – nesse exato momento já não são simplesmente “coisas em si”.

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Diferente de Silva (Op. cit.), Moscovici (1987, p. 26) curvado sob a perspectiva da psicanálise, diz que “uma representação fala tanto quanto mostra, comunica tanto quanto exprime. No final das contas, ela produz e determina os comportamentos, pois define simultaneamente a natureza dos estímulos que nos cercam e nos provocam, e o significado das respostas a dar-lhes. (...) a representação (...) é uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos. (...) Uma representação é sempre uma representação de alguém ou de alguma coisa”. Para o autor as representações sociais não são simulacros ou resíduos intelectuais sem imbricação direta com o comportamento humano. Possuem função constitutiva da própria realidade.

Postular, porquanto, a representação é dizer que ela está diretamente relacionada ao domínio de práticas de significação de sentidos. Nesse caso, estamos de acordo, no que se refere à representação em termos de prática escolar indígena, que uma proposição temática pode oferecer coerência as categorias a ela afiliada, na medida em que revele à dimensão de ação e significados, inerentes às interpelações arroladas pelos sujeitos. Não queremos dizer com isso, que as pessoas se movem à base de regras inalteradas; dependam da uniformidade das situações abertas no campo das relações sociais, e suas ações revelem apenas uma tentativa de superar a instrumentalidade dos valores dominantes. Sob diversos aspectos, toda prática pedagógica encontra-se impregnada (interior/exterior) de uma fisionomia conflitante de imagens, de discursos e representações, provocadas pelo modo de indagar as questões sob as quais se depara ou afilia.

Assim sendo, o conteúdo da reflexão em educação escolar indígena, sob o crivo de representação em prática de discurso político, na perspectiva da diversidade cultual, agrega diferentes gradações no domínio do discurso intercultural, coexistindo tanto as impressões dos atores mediante à especificidade do trabalho escolar, como o modo de tornar possível organizá- las.

Não nos interessa nessa pesquisa, se fosse possível fazê-lo, encontrar uma harmonia predisposta aos mecanismos representativos adotados pelos professores/as indígenas com relação, ipso facto, aos seus modelos de representação. De fato, é muito delicado oferecer unidade ao lastro das representações, pois elas estão num nível de tênue constituição, organizadas de maneira bastante diversas e, em muito dos casos, indeterminadas.

Uma questão podemos defender a partir desses argumentos. Os sujeitos estão numa mesma proporcionalidade de intercorrência: de pessoa-a-pessoa e de pessoa-a-grupo. E isto estabelece o elo do sujeito consigo mesmo e dele com seus pares. Por paradoxal que pareça, o trabalho de representação consiste, como assegura Moscovici (op. cit., p. 61) “em atenuar as estranhezas, introduzi-las no espaço comum, provocando encontro de visões, de expressões separadas e díspares”. Essa imbricação do insólito numa esfera irregular exprime tensões de posições. Decorre de situações construídas a partir do que se tornou tangível ou substancialmente possível. Em contrapartida, predizer algo supõe experienciar a consciência de alguma coisa, pela significação e mediação de mundo. Uma experienciação (permita-nos os eufemismos) substancialmente simbólica, fenomenologicamente conceitual, historicamente situada e pedagogicamente mista. Mas, tantas proposições sobrecarregariam a visão dos sujeitos a par da percepção que constroem sobre os objetos? Provavelmente sim. Embora o que importe para o escopo da AD seja voltar-se para o entendimento da produção e profusão de

dizeres que dialoguem para além do seu campo circunscrito. Para nosso caso em particular, um tratamento que não quer ser filtragem de imagens ou réplica de vozes preditivas. Apenas acolher e analisar as impressões inventariadas nos espaços pedagógicos de educação escolar entre os índios Pankará, do Estado de Pernambuco. Semelhante a Pêcheux (1997), estamos atrás das “falas que vêm de baixo”.