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1 BUSCANDO ENTENDER A EXPERIÊNCIA DO GRUPO DOS QUARENTA

1.4 NOSSO GRUPO E A PASTORAL DE JUVENTUDE

1.4.3 Nosso Grupo e a Igreja Católica

Nessa asa que a igreja abria para os movimentos sociais ela também apresentava limites, contradições, problemas. Pedro A. Ribeiro de Oliveira analisa o aparelho religioso com a ótica de Gramsci e fala do papel da religião. A religião constrói ou solidifica uma hegemonia:

Um aparelho de hegemonia funciona na medida em que veicula representações, isto é, na medida em que as idéias e práticas simbólicas que ele produz ou sistematiza são transmitidas e incorporadas à consciência e à prática dos atores sociais. Veiculando representações religiosas, o aparelho age sobre a consciência, a vontade, os sentimentos de indivíduos e grupos, de modo a guiar os seus comportamentos. Por isso ele é um aparelho de hegemonia: exerce uma direção intelectual e moral sobre grupos sociais, atuando pela adesão da vontade, e não pela força e pela repressão física.95

Isso deixa claro que a igreja pode provocar ou segurar os avanços sociais. Pode provocar práticas sociais, no plano simbólico, que provoquem avanços significativos, mas também freá-las. Estar sob o controle ideológico e doutrinal de uma igreja pode ser uma limitação séria. O Movimento dos Sem Terra, gerado pela

94 Petrini, João Carlos. CEBs: um novo sujeito popular. p.184.

Comissão Pastoral da Terra, no meu entender avançou muito mais quando se desligou da igreja. Era muito contraditório estar numa igreja que acolhe a todas as classes, que vê as injustiças sob a ótica da ganância sem analisar as estruturas que provocam a miséria. Mesmo que o MST estivesse ligado aos sacerdotes que tinham outra visão, essa não era a visão hegemônica, o que dificultava e paralisava os avanços. Estar sob controle ideológico e doutrinal compromete os movimentos. A igreja tem necessidades a serem supridas. Manter a sua autoridade e pseudo neutralidade impede as lutas populares na sua luta de mudança das relações sociais e reprodução da vida. Não podemos negar a grande contribuição da igreja católica aos movimentos. Mas do mesmo modo não podemos esconder o quanto ela também impediu a autonomia desses movimentos. Vivemos esse conflito no Grupo dos Quarenta. Luiz Alberto no seu livro Classes Populares nos Caminhos da História fala dessa ambigüidade da igreja, mostrando que ela tanto fortaleceu a hegemonia das classes dominantes como também a tornou mais precária. Para ele a igreja procurou modernizar a instituição para “pô-la em dia com o mundo urbano e capitalista das classes dominantes e de suas aliadas históricas, as classes médias”.96 Para ele os movimentos da Ação Católica nos anos 30 e 40 e as transformações do Vaticano II se destinavam a melhor adaptar a igreja a

uma modernidade da qual estava defasada, já que sua história se ligava tanto às classes tradicionais da aristocracia rural quanto às populares, mas pouco tinha a ver com os novos atores que tentavam exercer a dominação e a direção da sociedade(...) Setores avançados na igreja das últimas décadas nada mais eram que adaptadores da instituição ao mundo moderno.(...)Há aí um progressismo ambígüo, radicalmente diferente daquele que rejeita e quer superar o mundo moderno.(...) Assim houve, na década de 50, setores da Igreja do Brasil interessados numa pastoral do desenvolvimento que pareciam estar na vanguarda. Logo depois eles seriam adversários da Teologia da Libertação e da nova pastoral popular.97

O regime militar escancarou essa dualidade da igreja. De um lado clero, leigos, movimentos, posicionando-se ao lado dos reprimidos, exilados, encarcerados e de outro a Marcha da Família com Deus para a Liberdade que preparava triunfalmente a entrada da ditadura em cena.

96 Idem.p.296

Na ditadura os lugares de culto transformaram-se em lugares de encontro, graças ao poder da instituição. Os agentes pastorais se comprometem com as classes populares. São “intelectuais orgânicos” dos setores populares. Surgem as CEBS, a Pastoral da Terra, do índio, do operário e da juventude.

Eder Sader98 reflete que alguns setores intelectuais de dentro da igreja católica, nesse período de autoritarismo, produziram uma nova matriz discursiva “capaz de aglutinar os anseios de setores populares através da constituição de um mundo simbólico que irá direcionar esses anseios e dar origem a novos sujeitos históricos coletivos”99. Na década de 60 e 70, a igreja buscou ler essas perseguições comparando-as às perseguições dos primeiros cristãos. Mas Sader fala que esse novo discurso vem de Medellin100, onde nasce um mundo simbólico de uma sociedade sem exploração, sem pobreza. Os conceitos teológicos tomaram outra dimensão.

O “povo de Deus” ganhava força. A expressão significou uma comunidade em torno da palavra que não era mais só da hierarquia. A salvação não era mais recompensa para a outra vida pelas boas obras praticadas nessa. Mas para muitos não era imperativo mudar a estrutura da sociedade. O pecado passava a ser social. O problema é que a miséria era vista como um fato coletivo, mas fruto do egoísmo das pessoas. No nosso grupo não aceitávamos a idéia defendida pelos grupos espiritualistas que diziam que era preciso transformar os corações para daí mudar o mundo. A nosso ver isso impedia as pessoas de perceberem que era preciso mudar as estruturas injustas. Era o mesmo que dizer que a mudança da sociedade se daria pela via subjetiva. Na linha espiritualista, o egoísmo das pessoas é que era responsável pelo desequilíbrio social. Víamos que muitos sacerdotes e leigos incorporavam referenciais marxistas nas suas análises, mas nos sermões e falas afirmavam que era preciso “converter o homem para mudar a sociedade”. Além disso usavam uma linguagem de exclusão das mulheres.

98

Sader, Eder. Quando Novos Personagens entram em cena.Rio de Janeiro.Paz e Terra,1988.

9999 Weber, Normélio Pedro. Pastoral da Juventude em Santa Catarina e a gestação de militantes do

Movimento Popular.Dissertação de Mestrado p29. UFSC.1990.

100 Essa Conferência visava adequar as decisões do Concílio Vaticano II à situação concreta vivida

A salvação que se dá em comunidade, tendo a Eucaristia como centro, como local de partilha, tem um significado profundo para os sujeitos coletivos populares de que fala Éder Sader. O lugar de salvação era na comunidade que buscava a solução dos problemas imediatos e estruturais. Há uma identidade onde “se organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender interesses e expressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas enquanto sujeitos coletivos”.101

Havia um canto que cantávamos que dizia: “eu sou feliz é na comunidade. É na comunidade que eu sou feliz”. Outro canto enfatizava a vida em comunidade:

“Somos gente nova, vivendo a união

Somos povo: semente de uma nova nação Somos gente nova, vivendo o amor

Somos comunidade, povo do Senhor102.”

Em Medellin aparece essa contradição: de uma lado havia aqueles com espírito crítico e que queriam a mudança e de outro aqueles que seriam polícia da doutrina. A citação de Gramsci cabe:

“A força das religiões e, principalmente, da Igreja Católica consistiu e consiste em que elas sentem fortemente a necessidade da união doutrinal de toda a massa religiosa e lutam para que as camadas intelectualmente superiores não se separem das inferiores103.”

Sem dúvida, após Medellin, conclui Normélio, os movimentos surgidos em torno da igreja expressaram seus pedidos não mais como pedidos de favor, mas como direitos negados.

Sobre a dualidade da igreja, Éder Sader fala como os interpretes desses movimentos falavam com insistência do “cotidiano” como lugar de resistência.. “base

101 Sader, Edér. Quando novos personagens entram em cena. p.145-155 102 Canto nº 4 - anexo

de onde se gesta um projeto autônomo das classes subalternas”, o que contrastava “com as manifestações de conformismo, da vida repetida, da reiteração não crítica de uma opressão silenciosa”, e convocava-nos a ver o cotidiano em sua ambigüidade, como local de “conformismo e resistência expresso numa consciência fragmentada da cultura popular104.”

Normélio Pedro Weber em sua dissertação105 comenta que na Pastoral da Juventude e mesmo nas demais pastorais:

dá a impressão de estarmos lidando com uma forte tendência messiânica. O sagrado quase sempre representa a legitimação das reivindicações. São grupos de pessoas, em geral, da mesma posição social, negativamente privilegiados. No dizer de Max Weber, ‘camadas sociais páreas’. Mas há também pessoas oriundas dos setores intermediários da sociedade inconformados com a degradação da vida humana e desejosos da instauração de uma nova ordem social106.

No nosso grupo, tínhamos sonhos, utopias. Nela percebemos como as pessoas se apropriam do canto. Indagado sobre que imagens lhe ocorriam quando se cantavam essas canções, nosso entrevistado, P.E. responde:

Acho que são frases, são... o que vinha na mente era uma nova sociedade. Aquela: “era chegar um novo dia , um novo céu, uma nova terra, um novo mar”. Então assim, vinham visões na mente de uma nova sociedade, de um mundo diferente daquele, que a gente tinha a responsabilidade de chacoalhar o povo, pro povo compreender a importância disso. Porque tu saías da reunião do grupo, tu chegava fora quando conversava com outras pessoas, ninguém tinha essa visão. Então as músicas na época eram músicas de ruptura, porque criavam na cabeça da gente essa imagem de um novo mundo que é possível, que esse sonho tinha que, essa utopia, que é uma palavra que a gente aprendeu o significado naquela época, utopia, porque hoje a gente entende utopia como uma coisa que não vai acontecer. Né? E naquela época a gente entendeu a outra, o outro significado da utopia. Então, o que vem na cabeça é isso, assim, a participação e a necessidade de estar junto uma luta coletiva, porque a nossa vida não é individual e que dentro dessa vida coletiva é possível a construção de uma sociedade diferente.

Sobre o messianismo, percebo que nosso grupo afirmava e reafirmava essa idéia de sonho de um mundo melhor. É também verdade que muitos grupos ditos progressistas ficavam muito nesse messianismo. Mas me parece que conseguíamos apresentar instrumentos para que isso se tornasse realidade já nessa

103

Souza, L. A . G . de. A JUC: Os estudantes Católicos e a Política. Petrópolis.Vozes. 1984.

104 Sader, Éder. P.141

105 Pastoral da Juventude em Santa Catarina e a gestação de militantes do movimento popular.

Universidade Federal de Santa Catarina. Abril de 1990.

vida. Ao dizer que acreditávamos noutra vida, colocávamos sempre o risco de nas entrelinhas deixar transparecer a idéia que os poderosos um dia serão castigados. Era um risco. Queríamos isso, sim, mas isso era algo muito subjetivo. Essas forças tinham que ser destruídas objetivamente. Esse desejo devia se tornar realidade com as forças que pudéssemos aglutinar, com os instrumentos que tínhamos. Entendo que nosso grupo tinha essa clareza.

O sonho de um mundo melhor era concreto. Quando falamos em movimentos sociais, como vimos, falamos de organização coletiva. Acreditávamos nisso. Nosso esforço ia sempre no sentido de juntar pessoas que pensassem o mundo e que pensassem junto o que fazer para mudá-lo:

Sonho que se sonha só Pode ser pura ilusão Sonho que se sonha juntos É sinal de solução

Então vamos sonhar companheiro Sonhar ligeiro

Sonhar em mutirão107.