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1 BUSCANDO ENTENDER A EXPERIÊNCIA DO GRUPO DOS QUARENTA

1.5 PROJETO DE UM NOVA SOCIEDADE

A Conferência de Medellin em 1969 propunha adaptar as resoluções do Vaticano II, como vimos. Nasce daí a Teologia da Libertação. O pecado deixa de ser pessoal. Passa a ser social. A igreja se comprometia com o povo. A Pastoral de Juventude da década de 70 foi influenciada pela Teologia da Libertação. Em 1979, a Conferência de Puebla confirmava que a fé é compromisso social e legitimava a Teologia da Libertação. Puebla fez uma opção preferencial pelos jovens e pelos pobres. Formou-se então a nova pastoral, mais orgânica. Eram grupos de jovens que saíam do campo meramente emocional e pessoal, e partiam para se organizar em bairros e vilas, onde sentiam os problemas concretos e se engajavam na solução. Havia um projeto de sociedade: A pobreza não se justificava; O autoritarismo do Estado e da hierarquia não se justificava. Essa reflexão levava à conclusão de que a sociedade capitalista era a causa da miséria. Propunha-se a construção de uma nova sociedade. Buscava-se a libertação dos oprimidos e a

defesa dos direitos humanos, para a criação de uma nova sociedade sem classes e nem discriminação, onde o poder fosse exercido como um serviço.

Nosso grupo encontrou uma dificuldade, que foi o abandono da igreja na hora em que o engajamento era mais fortemente realizado. Parece que a pastoral sentia-se impotente para levar até o fim o projeto de sociedade. Os assessores da Pastoral de Juventude em 1985, em reunião consideraram que a juventude é uma idade em transição e aconselharam a militância aos jovens que avançavam no processo de conscientização. Eles pretendiam que os jovens mais conscientes, os que estavam mais comprometidos participassem de ações mais concretas para a transformação da realidade. Para eles a pastoral não consistia em ser a vanguarda da transformação da sociedade, mas em oferecer indivíduos teoricamente bem preparados e conscientes, para levar avante o processo de transformação da sociedade. Os jovens tinham através da pastoral um novo referencial de reflexão, a partir da indignação com a injustiça, com a opressão, e com a pobreza. Mas a pastoral se julgou incapaz de liderar o processo de transformação, e os jovens foram encaminhados para que militassem em setores mais decisivos e capazes de assumir a vanguarda das transformações.

Os assessores disseram ainda nesse encontro que

o ponto fraco da pastoral sempre foi o fato de o seu ponto forte residir no nível das utopias (idéias) e o ponto fraco no nível das mediações (projetos históricos). Recomendam que esse projeto deve-se ir construindo a partir das experiências concretas e da reflexão acumulada na caminhada histórica. ‘As feições do novo vão depender em boa parte, de quem entrar na luta108.

Nosso grupo não via nenhum problema em gestar a idéia de uma nova sociedade na pastoral e ir para outras instâncias construí-las concretamente, historicamente. Parece que o problema era nossa permanência na pastoral.

Nosso grupo lutava por permanecer na igreja.

107 Canto nº 27 - anexo

108 Pastoral da Juventude em Santa Catarina e a gestação de militantes do movimento popular. p 82-

Não sentíamos necessidade de nos organizar como igreja dentro dos partidos. Respeitávamos as instâncias e acreditávamos que em cada lugar que participávamos tinha características próprias que se complementavam. A fé tinha a ver com a política e a política com a fé. Era possível, no nosso modo de ver, discutir e viver de tal modo que se pudesse separar e juntar os elementos, sem misturar. Mas nossa permanência na igreja ia cada vez ficando mais difícil. Penso que questionávamos a igreja, seus valores, a hierarquização das coisas, enfim. Mas queríamos permanecer dentro dela. Entendíamos como importante celebrar na comunidade e no grupo.

No entanto o sacerdote insistia em dizer que a comunidade não estava preparada. P. E., então jovem integrante do Grupo dos Quarenta e atuante líder comunitário, dá o seguinte depoimento:

Acho que quem não estava realmente preparado para enfrentar esse grupo, para debater, para dialogar com esse grupo era o padre e as lideranças da comunidade que eram totalmente influenciadas pelo padre. Sempre qualquer mudança, ela choca. Ela causa constrangimentos. Ela causa posicionamentos contrários. E eu vejo assim que nesse aspecto, no caso do padre, a própria igreja não estava preparada. Porque hoje grandes lideranças da cidade saíram do movimento religioso, da igreja. E a igreja perdeu essas lideranças porque não soube compreender, não soube dialogar com essas lideranças na época. Eu tenho certeza de que se a igreja tivesse tido um outro comportamento, uma outra postura, uma outra atitude, hoje a igreja da nossa cidade, pelo menos seria diferente. Então quem não estava preparado para esse diálogo, e devia estar preparado, foi a própria igreja.

Aos poucos fomos todos saindo desse espaço. Cada um ficou ocupando esse espaço ou não, de forma pessoal. O coletivo continuou noutros espaços. P.E. diz ainda: “Ainda bem que saímos da igreja”. De fato, deu uma sensação de alívio, já que muitas vezes a tensão era maior nesse espaço que na luta contra o capitalismo.

Passamos a ocupar melhor aquelas instâncias apontadas pelo documento 44. Em 86 lançamos um candidato a deputado estadual apoiado pela juventude e em seguida fomos entrando no partido político com que mais nos identificávamos: o Partido dos Trabalhadores que em 1980 nasce no ABC paulista com três forças na sua formação: sindicalistas, igreja comprometida com as classes populares e intelectuais, grupos e pessoas que lutaram contra a ditadura militar.

Mas a experiência de lançar candidato da pastoral em 1986 mostrou que também dessa pastoral saíram candidatos para vários partidos. Por isso, a idéia de “Reino” de que tanto falávamos mostrava-se ambígua. No dizer de Sanchiz109, era um projeto político. Essa idéia de sociedade justa e fraterna evoca uma caminhada, um processo, uma busca pelos mais variados caminhos. O fato de esse projeto ser difuso e ambíguo também era aproveitado pela igreja. Aglutinavam-se as mais diferentes tendências. Mas também é verdade que a expressão “Reino” tinha significado diferente para cada grupo que o utilizava. O nosso, por exemplo, dizia que o “Reino” era algo concreto. Era para ser alcançado aqui. Para nós era o socialismo. Aliás, íamos mais fundo: “ a cada um segundo suas necessidades”. Para nós, o Reino não era um espaço vago onde todos entravam. Era preciso ter presente, clara, a noção de partilha. É certo que tínhamos muita dificuldade em nos fazermos entender.

Entendo que nosso grupo vai produzir e reproduzir o que Eder Sader chama de nova matriz discursiva.

“Nas lutas sociais os sujeitos envolvidos elaboram as suas representações sobre os acontecimentos e sobre si mesmos.(...) ...encontramos na sociedade agências que, embora estejam participando da cultura instituída expressam práticas de resistência e projetos de ruptura110.”

Enquanto o grupo pôde, ficou no espaço da instituição – a igreja. Depois, buscou outros espaços, numa prática de resistência, enfrentamento e apresentação de propostas. O grupo era um espaço dinâmico, de conflitos geradores de muita vida. Esses conflitos geravam alternativas, que antes acabavam esbarrando numa instituição cristalizada.

Mesmo dentro da igreja o grupo enfrentava o conflito e nunca deixou de se posicionar nos momentos de maior ou menor tensão. Mas a verdade é que solto

109 Sanchiz, Pierre. Igreja e Questão Agrária: um posfácio. In:_____.PAIVA, Vanilda (org.) Igreja e

Questão Agrária. São Paulo,Loyola,1985.

das amarras da igreja, o grupo pôde participar de forma mais efetiva na sociedade através das associações, sindicatos e partido político. No entanto, no partido político, os militantes sempre tiveram que levar em conta os referenciais religiosos da cidade de Brusque. E especialmente em época de eleição saber lidar com os ataques da direita dizendo, por exemplo, que o PT era comunista. Para nos contrapormos a esse veneno , Jesus Cristo era colocado como o exemplo extremo do comunismo. Isso de uma certa forma era um antídoto para as investidas da direita da igreja e dos partidos de direita111.