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Meu nome é Manuela. Tenho 23 anos. Nasci no Leblon e fui criada entre Jardim Botânico e Gávea. Como alma angustiada e burguesa, casei e vim parar em Santa Teresa: o máximo da associação entre vanguarda e distância a que uma burguesa da Zona Sul carioca como eu pode chegar. Mentira. Acho que poderia ir até Vila Isabel.

No Ensino Médio, estudei no Colégio Santo Agostinho do Leblon. Tenho uma amiga de lá que queria estudar jornalismo, assim como eu. Contudo, enquanto eu pregava que nós deveríamos ir para a UFRJ para nos libertarmos do circuito Manoel Carlos, ela defendia que a Urca era longe e que queria estudar na PUC. Minha justificativa, para ela, era de burguesia culpada. Para mim, a desculpa dela era ridícula. Morador do Jardim Botânico, o pai dela achou a PUC cara demais.

No meu colégio, tinha um menino que morava na Rua Rainha Elizabeth, a 200 metros do paraíso carioca: a Praia de Ipanema. A gente sacaneava ele. O motivo era que sua correspondência chegava sempre com o endereço “Rainha Elizabeth, Copacabana”. Copacabana, meu amor, é Zona Sul 2. Ipanema é Zona Sul 1. Pela controvérsia protagonizada pelos Correios, o menino corria o risco de regredir socialmente. Um perigo.

Na minha primeira semana de faculdade na Escola de Comunicação da UFRJ, engatei em uma conversa com uma menina – cuja alma, descobri depois, é muito mais angustiada que a minha – e perguntei a ela onde morava. Ela me disse “Glória, e você?”. Eu respondi “Gávea”. Ela rebateu: “você perguntou onde eu morava só para se sentir melhor do que eu?”. Eu me assustei e falei “não”, com muita certeza e pouca convicção. Nesse dia aprendi que, no Rio de Janeiro, é quase falta de educação perguntar onde as pessoas moram.

Na ECO as pessoas chamam as patricinhas e playboys da cidade de “galerinha da Gávea”. Sócio-espacialmente eu estou localizada neste grupo. Contudo, nunca me senti parte dele e sempre dei a seguinte justificativa: “minha mãe nasceu no Cachambi e, quando eu era pequena, freqüentava o parquinho da Igreja da Penha, o Xangai”. De fato, lá andei pela primeira vez em uma montanha russa e comi minha primeira maçã do amor. Hoje, não preciso mais dar desculpa. A quem quiser saber, respondo: moro em Santa Teresa.

Quando eu fui estudar na ECO, vivia bebendo cerveja em Botafogo. De vez em quando, chamava minhas amigas do colégio. Somente para escutar: “Botafogo é longe”. Quando casei e fui procurar apartamento, fiquei desesperada com os preços. Eu não queria sair da Zona Sul. Ao discutir o assunto com uma conhecida (moradora atual do Leblon, ex-moradora da Tijuca), ouvi o seguinte conselho: “é, acho que você vai ter que começar a procurar no Flamengo, em Botafogo...”. Eu ri dela, mas lembrei o que meu pai, nascido e criado em Santa Teresa sempre me disse: “sua mãe veio do lado de lá túnel e prometeu nunca mais voltar”. De repente era também o caso da minha amiga.

Como típicos moradores da Gávea, eu e minha família tínhamos uma empregada doméstica que morava na Rocinha: a Vilma. A Vilma trabalha na casa da minha mãe há mais de dez anos e mora na Rocinha há uns 20. Ela detesta a Rocinha. Queria mesmo era morar em um condomínio onde morava sua afilhada no Itanhangá. O problema dela, segundo ela mesma, não é dinheiro para se mudar: a Vilma é supercertinha e tem um namorado português. O problema é que ela teria que enfrentar um trânsito terrível para chegar até a Gávea de lá. Ela não estava disposta a fazer isso. Ainda não está.

Tenho uma amiga que mora em um condomínio na Barra da Tijuca. Seu carro é como um braço para ela. Um dos seus mais constantes motivos de reclamação é falta de espaço para estacionar na Zona Sul. “Todo prédio na Barra tem vaga de visitante!”, explica ela toda vez que toda no assunto.

Eu sempre quis freqüentar mais a Feira de São Cristóvão, a Cadeg, o Viaduto de Madureira. Meu maior obstáculo sempre foi o “como chega lá”, “como eu volto bêbada de lá” e “quem está disposto a enfrentar essa missão comigo”. Difícil. Eu nunca fui ao Viaduto de Madureira.

Eu sempre me assusto quando vou a São Cristóvão e a Benfica e vejo os dois bairros em ruínas. Parece que teve uma guerra ali. Também me surpreendo quando, por um motivo qualquer, vou ao subúrbio. Tem bairro para lá do túnel que não tem nem placa de rua. Minha boca ficou boquiaberta quando andei de trem pela primeira vez para ir visitar um amigo em Bangu: à beira dos trilhos, era favela que não acabava mais.

Quando eu fiz 18 anos, meus pais me deram uma viagem para Nova York. Meu pai morou lá durante seis anos na década de 1980 e fez um amigo. Eu fiquei dois meses na casa da família desse amigo. O que mais me impressionou sobre Nova York foi o sistema de transporte. Eu sempre fui meio obcecada por sistema de transporte. Já entrei

em um ônibus para rodar a cidade, sem destino, só pelo prazer de sacolejar e olhar a cidade evoluir e regredir pela janela.

Em Nova York, vai-se a qualquer canto da cidade sem desespero, sem missão. Se eu moro no Bronx e quero visitar um amigo no Queens às 3h da madrugada de uma quarta-feira, eu posso. Sem desespero, sem missão. O metrô é fantástico, o ônibus é fantástico. A capital do mundo está inteira ao alcance dos seus moradores e visitantes. Os nova yorkinos conhecem Nova York.

Tenho uma tia querida que mora na Ilha do Governador e eu queria visitá-la mais. Um amigo, de quem eu queria ser mais próxima, vive no Jardim Oceânico. Me dá preguiça. Minha irmã tem um filho de um ano e mora no Parque das Rosas, no meio da Barra da Tijuca. Eu a vejo muito menos do que gostaria. Levo pelo menos uma hora e meia para chegar lá.

Se nem os meus laços emocionais me fazem superar as barreiras da cidade partida, o que fará? A logística do Rio de Janeiro me irrita e entristece. Este trabalho é uma das formas que eu encontrei de lidar com esses dois sentimentos.