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2.2 TRANSEXUALIDADE

2.2.1 A despatologização da transexualidade

2.2.1.2 Novas perspectivas

A luta pelo reconhecimento de direitos no campo da transexualidade está cada dia mais forte. Isso se dá, em certa medida, pelos debates intergovernamentais sobre orientação sexual e identidade de gênero. Essa preocupação decorre dos atrasos em diversos países na consagração dos denominados direitos sexuais.

Os Princípios da Yogyakarta são resultado desses debates travados no âmbito internacional. Assinado por maioria dos países membros da ONU, o texto-base traz diversas recomendações especialmente para os países e sociedades que “impõem normas de gênero e orientação sexual às pessoas por meio de costumes, legislação e violência e exercem controle sobre o modo como elas vivenciam seus relacionamentos pessoais e como se identificam” (YOGYAKARTA, 2006). Uma dessas recomendações é pela proteção contra abusos médicos, firmando-se contraria à patologização da transexualidade. É o que fica claro no princípio 18

desse documento: “a orientação sexual e a identidade de gênero de uma pessoa não são, em si próprias, doenças médicas a serem tratadas, curadas ou eliminadas” (YOGYAKARTA, 2006). Nesse cenário, a Argentina desponta como o país mais avançado em relação aos direitos das pessoas transexuais, com a promulgação da Ley de Identidad de Genero (Ley 26.743). O diploma normativo “reposicionou o discurso médico-jurídico que ao longo dos tempos colaborou na construção de situações de vulnerabilidade, principalmente no discurso patológico” (MOLINA, 2015, p. 7). Como bem analisa Grant (2013), a iniciativa argentina rompeu, oficial e simbolicamente, com uma das mais poderosas manifestações de biopoder, que se dá pelo rígido controle dos corpos e pelo reforço da ideia da sua “inteligibilidade”.

Por trás desses avanços, há o reconhecimento da autonomia existencial dos/das transexuais. Assim, após a Ley 26.743, o exercício de direitos nela previstos não será mais condicionado a um atestado médico. É dada aos/às transexuais a capacidade de autodeterminação na busca do seu querer identitário. A despatologização da transexualidade emancipa os indivíduos para tomar suas próprias decisões e construir sua própria imagem, inclusive no que diz respeito aos procedimentos hormonocirúrgicos.

Em que pese os avanços no Brasil em oferecer uma atenção multiprofissional às pessoas transexuais, acolhendo-as gratuitamente pelo SUS e promovendo desde o atendimento psicológico até a realização de hormoneoterapia e intervenções cirúrgicas, os indivíduos transexuais não possuem autonomia dentro desse “processo transexualizador”. Acredita-se que essa postura estigmatizadora potencializa o surgimento de barreiras ao reconhecimento de direitos básicos, como o direito ao trabalho, à segurança, à educação, à liberdade, à construção de uma família, à igualdade, à privacidade etc., e tantos outros, refletindo, direta e indiretamente, a condição de subcidadania das pessoas transexuais.

Contra essa realidade, surgem lutas em prol dos/das transexuais, o que deixa a situação mais otimista. Encontra-se em tramitação o Projeto de Lei (PL) 5002/2013, apresentado pelo Deputado Federal Jean Wyllys em parceria com a Deputada Erika Kokay (BRASIL, 2013). Esse projeto foi baseado na referida Ley de Identidad de Genero argentina. Seguindo a mesma postura, o PL garante a livre determinação das pessoas sobre seus corpos, sem que haja laudos médicos e psicoterapias compulsórias. Encara os/as transexuais como protagonistas das suas próprias vidas. Desta forma, prevê o artigo 8º:

Artigo 8º - Toda pessoa maior de dezoito (18) anos poderá realizar intervenções cirúrgicas totais ou parciais de transexualização, inclusive as de modificação genital, e/ou tratamentos hormonais integrais, a fim de adequar seu corpo à sua identidade de gênero auto-percebida. §1º Em todos os casos, será requerido apenas o consentimento informado da pessoa adulta e capaz.

Não será necessário, em nenhum caso, qualquer tipo de diagnóstico ou tratamento psicológico ou psiquiátrico, ou autorização judicial ou administrativa. §2º No caso das pessoas que ainda não tenham de dezoito (18) anos de idade, vigorarão os mesmos requisitos estabelecidos no artigo 5º para a obtenção do consentimento informado. (BRASIL, 2013, grifo nosso)

O Projeto tem o cuidado ao se referir às pessoas menores de 18 anos. Nesses casos, o consentimento informado será dado por meio de seus representantes legais ou, na hipótese de negação ou impossibilidade, por autorização judicial. Em ambos os casos, será imprescindível a presença da Defensoria Pública e o conhecimento da vontade da criança ou adolescente (BRASIL, 2013). O processo será guiado observando a capacidade progressiva e o interesse superior da criança ou adolescente. Além disso, todo o “processo transexualizador” será oferecido gratuitamente pelo SUS, o que incluem as intervenções cirúrgicas (neocolpovulvoplastia, neofaloplastia, implante de seis, cirurgias plásticas, depilações a laser, etc.), as terapias hormonais, as psicoterapias (não compulsórias), o uso de bloqueadores hormonais etc. (BRASIL, 2013)

Outro ponto de destaque é a possibilidade de retificação registral de sexo e a mudança do prenome e da imagem registradas na documentação pessoal, sempre que não coincidam com a sua identidade de gênero autopercebida. Pessoas menores de 18 anos precisarão, também, do consentimento dos seus representantes legais ou de autorização judicial. De acordo com o art. 7º, essas mudanças não alterarão a titularidade dos direitos e obrigações jurídicas dos/as transexuais, nem daqueles que provenham das relações próprias do direito de família em todas as suas ordens e graus, os quais se manterão inalterados, incluída a adoção (BRASIL, 2013).

O PL 5002/2013 encara a transexualidade, em sua construção identitária, como uma experiência complexa e particular, não se baseando em critérios de diagnóstico do/da “verdadeiro/a transexual”. Em sentindo amplo, pode trazer alterações significantes no campo médico, jurídico e social. Em primeiro lugar, desconstruirá o discurso médico-científico em torno da patologização da transexualidade. Junto a isso, a imagem de incapacidade cederá espaço ao reconhecimento de sua autonomia existencial. A emancipação do/a transexual como sujeito de direitos refletirá no ambiente de trabalho, nos hospitais, das ruas, nas escolas etc, exigindo que as instituições rediscutam suas posturas diante das questões de identidade de gênero e sexualidade.

Os debates em torno da transexualidade requer uma (re)discussão médica e jurídica sobre o corpo no campo da bioética, para que se “possa estabelecer uma linguagem da saúde e

do direito, compatível com a noção contemporânea de autonomia sexual, e de deveres de proteção do Estado àqueles mais vulneráveis” (SILVA, 2007, p. 96). Essa (re)discussão leva à compreensão do corpo como uma construção identitária, que se dinamiza quando da complexidade que envolve as noções de sexo, gênero, orientação sexual, performatividade e imagem.

A medicina e as práticas médicas têm o compromisso ético e social de rever suas ações diante das atuais mudanças mundiais em torno da transexualidade. Afinal, de Herculine - até mesmo antes dela - à atualidade, a sociedade tem se mostrado dinâmica e requer o esforço médico para acompanhar essa dinamicidade. Os posicionamentos herméticos da medicina estão na contramão das novas construções identitárias, por isso, sua visão social precisa estar sempre atenta às novas conjunturas sociais. Jurar pela vida é, também, jurar pela qualidade de vida. E não há que falar em qualidade de vida sem a compreensão do sujeito em sua autonomia, capaz de dar significados próprios à sua existência.