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Novas propostas expográficas

No documento clararochafreesz (páginas 169-180)

Foi visto inicialmente neste capítulo que o Museu Mariano Procópio, durante os longos anos em que expôs os trajes do imperador, explorou-os sobretudo por vinculação biográfica com D. Pedro II, no intuito de evocar e celebrar sua memória no circuito expográfico que se manteve praticamente sem alterações durante décadas.

Ulpiano T. Meneses (1992) entende que a celebração e a evocação da memória devem estar presentes nos museus, não como objetivos, como foi visto no MMP, mas como meios de conhecimento. É nos museus que o olhar pode ser induzido a ver o que deixamos escapar cotidianamente, pois nesses ambientes os objetos importam enquanto objetos, e não como coisas úteis ou mercadorias como nos supermercados. Lugar próprio de coletar, organizar e estudar as coisas, que podem fruir de diversas maneiras, como ―sonhos, contemplação estética ou expansão da afetividade‖, há uma característica que deveria ser ―marca registrada‖ das instituições de acordo com o autor: o conhecimento.

Desde a aquisição das roupas de D. Pedro II, realizada em 1926, até os dias de hoje, a concepção de museu e suas atribuições vêm sofrendo uma série de modificações e ―neste fim de século pode-se conceituar o museu como a forma pela qual nossa sociedade institucionalmente transforma objetos materiais em documentos‖; por isso torna-se interessante pensar em novas ideias expográficas para os trajes em questão, explorando seu potencial crítico (MENESES, 1992, p. 4).

O tipo de exposição realizada através das vestimentas de D. Pedro II resultou no que Meneses (2010, p. 34) considera como uma ―fetichização do objeto na exposição‖, uma tendência comum nos museus que naturalizam as atribuições de valores construídas historicamente que nada têm a ver com suas propriedades físico-químicas. Dessa forma, esvaziam-se, na exposição, as forças e os sujeitos que ao longo de suas vidas os produziram, movimentaram, consumiram, preservaram e descartaram.

Se é limitador, para a exposição, fetichizar objetos, é, ao contrário, de extremo interesse procurar registrar e explicar a fetichização, estudar e dar a conhecer o objeto-fetiche. Em consequência, ao invés de eliminar os ―objetos históricos‖, as relíquias, o museu deve inseri-los no seu quadro de análise e operações, procurando desvendar sua construção, transformações, usos e funções. (MENESES, 2010, p. 34)

Partindo dos próprios objetos é que se pode desfetichizá-los, de modo a tornar os museus ―Laboratórios da História‖ e não simplesmente lugares em que a ―História se encontra

apresentada‖229

(MENESES, 2010, p. 48). Como visto, de acordo com Costa & Júnior (2011), foi essa História não problematizada que predominou na expografia do MMP, marcada por uma visão sem conflitos sociopolíticos do passado imperial em que os objetos-semióforos, símbolos de luxo e riqueza mostravam-se como marca de uma história ―gloriosa‖230.

Através de um folder produzido do ―Projeto Restauração do Acervo‖, realizado em 2007 - entre os objetos incluíam-se os fardões da maioridade e do casamento de D. Pedro II - , nota-se uma ação promissora do MMP em direção a uma História problematizada, ideias interessantes que poderiam ser incluídas em uma futura expografia dos fardões.

Ilustração 52-Folder do ―Projeto restauração do acervo‖. Fonte: Acervo MMP.

229Segundo Meneses (2010, p. 48), ―a História não pode ser visualizada. A História não é algo que possa ser apreendido sensorialmente – modo padrão de estímulo na exposição – sem detrimento de que o sensorial possa desempenhar papel relevante nesse processo. Exclui-se, portanto, da responsabilidade do museu, preservar ou restituir o passado [...]. Tudo que se fizer nessa direção estará, inelutavelmente, permeado de ideologia e mascaramentos.‖

230De acordo com Costa & Júnior (2011), apesar de uma tentativa de ―desmitificação de personagens históricas‖ requerida pela Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (Funalfa/órgão ligado à prefeitura de Juiz de Fora) em 1986 e da existência de textos com debates historiográficos atualizados nos arquivos da instituição (como por exemplo, a exclusão popular do processo de independência do país e a situação dos escravos – praticamente ignorados pela expografia), o MMP manteve uma versão gloriosa do período monárquico.

Além de apresentar informações educativas sobre a conservação do acervo que, de acordo com o folder, ―é determinada por vários fatores, como local de armazenamento, condições climáticas e de manuseio‖, ao lado de uma fotografia do interior de um dos fardões em mau estado de conservação, antes da restauração, o texto apresenta cantigas da época da declaração da maioridade (1840), com visões políticas opostas:

―Queremos D. Pedro II, embora não tenha idade/A nação dispensa a lei / E viva a maioridade.

E para os menos otimistas...

Quem põe governança/Na mão de criança/Põe geringonça/No papo da onça‖

Esse texto do MMP vem ao encontro às sugestões de Meneses (2010, p. 49) de uma expografia que poderia, a partir do mesmo tipo de material, chegar a pontos divergentes da história. Mesmo os processos de restauração poderiam ser incluídos, sobretudo, pois partes não autênticas foram costuradas às peças, no caso, os novos forros em seda. Através de um material complementar, como fotografias dos forros originais e do processo de construção das ―réplicas‖ a partir de fragmentos, o visitante poderia compreender sobre a passagem do tempo nos objetos e suas degradações, como também sobre o trabalho de restauração de indumentárias.

Ilustração 53-Processo de reconstrução dos bolsos a partir de fragmentos originais. Fonte: <http://jussaracestari.blogspot.com.br>

Cabe às exposições um trabalho mais efetivo no sentido de abordar a história dos próprios objetos e de seus vestígios materiais, através dos quais podem se abrir novas

perspectivas. No Palazzo Pitti, em Florença (Itália), encontra-se em exposição um traje do século XVI que pertenceu a Don Garzia de Medici, localizado durante uma exumação arqueológica de seu túmulo em 1947. No processo de restauração, emendas e reparos originais foram encontrados nas peças, indicando que Don Garzia não foi enterrado com um traje mortuário especial, mas com uma roupa de uso diário. Todas essas informações estão presentes na legenda da exibição, junto a desenhos e dados sobre o complicado processo de restauração231. Dessa forma, a história da roupa vai além de sua vinculação biográfica, incluindo seu percurso como coisa que teve uma circulação social e que séculos depois se tornou objeto arqueológico.

Ilustração 54-À esquerda, traje de Don Garzia. À direita schaube (capa curta), forma de expografia atual, não localizamos fotografias do traje em exposição. Fonte: <http://amberbutchart.com/2012/10/17/track-the-trend- trunk-hose-to-bloomer-shorts/>

Cabe pensar, nesse aspecto, a própria trajetória das roupas de D. Pedro II, que antes de serem objetos de museu foram herança e posteriormente mercadorias disputadas no início do século XX. Seria interessante expor essa história no circuito, através da qual novas informações poderiam ser fornecidas, como a relação entre D. Pedro II e Paulo Barbosa da Silva e seu papel na conservação das roupas; as políticas patrimoniais no Brasil no período de compra das peças (ainda não regulamentadas), ou ainda o envolvimento de outros personagens na negociação, como Affonso de Taunay e Pedro Calmon. Para isso, outros

231De acordo com Taylor (2002), o traje de Don Garzia (shaube, gibão, calção e codpiece) foi encontrado aos farrapos e apenas anos depois foi restaurado por Janet Arnold que através de vários desenhos conseguiu entender a construção original da roupa, de modo a colocar novos suportes adequados.

documentos presentes na instituição e fontes externas poderiam compor o circuito, como, por exemplo, cartas e artigos de periódicos.

Segundo Meneses (1992), por meio dos objetos uma história do cotidiano e da sociedade pode ser colocada, o autor dá o exemplo de um vestido de batizado do século XIX que pode ser pensado em seu conteúdo religioso, de vínculos familiares e simbolizando os ciclos de vida, como o nascimento. Na exposição temporária do MHN, ―Com a palavra D. Leopoldina, Imperatriz do Brasil‖232

, viu-se uma curadoria instigante, dois vestidos do século XIX foram expostos lado a lado; um tinha como texto explicativo dados sobre as modistas da Rua do Ouvidor que eram indicadas à Marquesa de Santos por D Pedro I. O outro texto exibiu trechos de uma carta entre Leopoldina e sua irmã, agradecendo-a por não lhe enviar nenhum vestido, temendo desagradar D. Pedro I que ―imagina que quando alguém se veste segundo a moda é porque tem segundas intenções‖ e, por isso, ―para manter a querida paz doméstica‖, a imperatriz preferia se ―calar com paciência‖. Assim, através de dois objetos semelhantes, duas versões sobre as relações com a moda são suscitadas, provocando o visitante a pensar questões sobre o casamento, sobre as relações entre as mulheres e os homens com a moda feminina, além do próprio status da mulher na sociedade. Por que não explorar o fardão de casamento também dentro de uma problemática dessas relações matrimoniais?

Ilustração 55-Vestidos da primeira metade do século XIX em exposição no MHN, 2015. Fotografia da autora.

232 A exposição ocorreu de outubro de 2014 a abril de 2015. Ver em

Para Meneses (1992), os objetos na exposição também poderiam engendrar discussões sobre o universo do trabalho. Nesse sentido, as informações levantadas durante esta pesquisa (que serão apresentadas no capítulo seguinte) a respeito da confecção dos trajes do imperador, como local de fabricação e artesãos envolvidos - até então desconhecidos -, se incluídos na expografia, podem explorar os antigos modos de fazer, a história das técnicas e dos artesãos brasileiros envolvidos com a fabricação de roupas do século XIX.

Lou Taylor (2004) propõe ainda para as roupas em exposição nos museus novas experiências que extrapolam a observação visual dos objetos. A partir de reconstruções de peças históricas, o visitante poderia experimentar a sensação das roupas sobre o corpo, vivenciando os modos de vestir de outros períodos históricos, como a sensação de usar uma crinolina vitoriana, disponível nas galerias do Victoria & Albert Museum em 2002.

Ilustração 56-Estudante de História da moda no British Galleries no V&A Museum experimentando uma reconstrução de crinolina, 2002. Fonte: TAYLOR (2004, p. 303).

Nos diários de D. Pedro II, o imperador relatou o seu incômodo em vestir seus pesados trajes de gala, que lhe moíam o corpo nos cortejos públicos. Por que não oferecer ao visitante a experiência de vestir casacos com o mesmo peso dos fardões do imperador, com tecidos e estruturações internas semelhantes, que causariam reações ao corpo, como o calor, por exemplo?

Foi visto anteriormente neste capítulo que, ao ser exposta no museu, sem o corpo vivo em movimento que um dia a habitou, a roupa sempre será incompleta, e parecerá descontextualizada. De acordo com Horsley (2014), geralmente os debates sobre a curadoria das indumentárias giram em torno de questões sobre a conservação adequada da peça e a problemática da descontextualização, enfoca-se na substituição na criação de um manequim que recrie a tridimensionalidade original do corpo. Questões sobre o realismo dos manequins (se deve ou não ser adotado) também permeiam os debates. No tipo ―realista‖ há uma maior associação com o corpo humano ao possuírem cabeças, penteados, braços ou uma postura que dê a ideia de movimento, como na imagem abaixo. Para manequins não realistas, evita-se a associação com o corpo real, em que geralmente são construídos sem cabeças ou membros (do tipo não-realizados, a escolha para os trajes pesquisados ao longo o tempo).

Ilustração 57-Traje de casamento de James II da Inglaterra (1633-1701) exposto no V&A Museum. Fonte: <http://www.vam.ac.uk>

De acordo com o autor, as recomendações de Lou Taylor (2002) para a expografia de indumentárias é usualmente praticada nos museus233, por acreditar que um manequim ideal não é aquele que somente preencha a função física de dar suporte tridimensional às roupas, devendo considerar também uma postura particular e um senso de corpo contemporâneo à ela, já que em cada época há um modo de ficar de pé, caminhar e sentar; todos esses aspectos

juntos, integrarão o look de um período, pois caso o suporte não reflita fielmente este vestir, a roupa parecerá ―errada‖ (HORSLEY, 2014, p. 79).

Contudo, Horsley (2014) propõe que a expografia ultrapasse essas questões, pois a ausência do corpo vivo no museu pode ser encarada como uma grande oportunidade para diversas formas de representação do corpo, que vai além dos manequins convencionais, abrindo espaço ao expectador para refletir sobre sexualidade, política, identidade, etc. O autor elenca cinco formas dessa representação que podem ser utilizadas nas instituições sem trazer prejuízo à conservação dos acervos, são as representações do corpo: iconográficas; esculturais (tridimensionais); audiovisuais; performáticas (que se utilizem de dramatizações); e digitais (através de novas mídias, como por exemplo, imagens holográficas), que provêm de técnicas artísticas. Nessas inovações, o MoMu (ModeMuseum Provincie Antwerpen) assume importante papel, por ter laboratórios de livre experimentação com abordagens interdisciplinares.

Optamos por expor sugestões de representações iconográficas e esculturais, por considerarmos talvez mais possíveis a uma realidade local e que podem servir como inspiração não só à exibição dos trajes de D. Pedro II, mas também para a expografia de outros acervos dos museus brasileiros. Em algumas propostas, as roupas não integram a exibição, o que se torna interessante para o MMP que atualmente encontra-se fechado ao público e que esporadicamente expõe seus acervos (principalmente a pinacoteca e o acervo fotográfico) em ambientes como shoppings e universidades, através de reproduções de imagens234.

Apresentam-se três propostas de representações iconográficas. Primeiramente, a exposição ―Katharina Prospekt: The Russians by A. F. Vandervorst‖ que ocorreu em 2005 (MoMu) em que entre outras ideias, como a construção de um guarda-roupa gigante com peças feitas em pele (xales, lenços, cobertores e etc), material tradicionalmente russo, houve também a exibição de fotografias que foram tiradas em túneis do metrô, onde reconstruções das roupas do acervo foram utilizadas. Para Horsley (2014, p. 82), mais do que complementos na expografia que apenas apresentaram a forma de utilização das vestimentas, essa ideia foi capaz de mostrá-las em um diferente contexto sociocultural específico, explorando novas narrativas dos objetos.

234Em março de 2015, ocorreu em um shopping aberto da cidade a exposição ―Mulheres do Museu Mariano Procópio‖ que apresentou através de imagens (quadros e fotografias) a trajetória de Geralda Armond, Viscondessa de Cavalcanti, Maria Pardos, Maria Amália e Alice Lage.

Na exposição ―Maison Martin Margiela ‗20‘ The Exhibition‖ (MoMu, 2008), houve através de manequins de papel vestidos com as roupas da marca, impressos em tamanho real com os olhos cobertos por faixas pretas (fotografias de pessoas), a montagem de um ambiente com balões e glitter no chão, onde os personagens interagiam, bebendo, acendendo um cigarro e posando para fotos (ilustração 59). O acesso às indumentárias foi suprimido para dar lugar a uma representação pictórica que foi capaz de recontextualizar roupa e corpo, em um evento que lembrava a festa de lançamento de uma coleção de moda, incluindo os processos e as pessoas que foram envolvidas na produção dos objetos (Ibid., p. 83).

Por fim, a mostra ―Malign Muses: When Fashion Turns Back‖ (MoMu, 2004), explorando o tema do passado nas criações de moda atuais, criou em um dos ambientes a ―Avenida das silhuetas‖ que foram representadas através de placas que iam até o teto do espaço, com a forma de modas passadas, de maneira distorcida. Essas grandes silhuetas que pareciam sombras ou vultos, foram elaboradas para que se propusessem reflexões sobre nostalgia e memória que temos sobre essas modas antigas, que, de certa forma, sempre chegam até nós permeadas pelas camadas do tempo e das sucessivas interpretações, não podendo, portanto, ser originalmente apreendidas.

Como sugestão de uma representação tridimensional do corpo, Horsley (2014, p. 88) traz o exemplo da exposição ―Katharina Prospekt‖, mencionada acima, em que trajes russos tradicionais do final do século XIX e do século XX foram apresentados ao público, dentro de formas de acrílico que lembravam a matryoshca (tradicional boneca russa), o que, além de servir como um invólucro adequado à conservação das peças, também foi capaz de representar simbolicamente o corpo. Dentro desses invólucros, elas foram exibidas em manequins sem cabeça ou mãos, inteiramente cobertos, o que, de acordo com o autor, pôde suscitar questões sobre as modificações impostas pela roupa ao corpo, ao lado de discussões identitárias sobre a cultura tradicional russa.

Ilustração 58-MoMu, exposição ―Katharina Prospekt: The Russians by A. F. Vandervorst‖. Observa-se o invólucro das roupas expostas que remete à boneca russa e que os manequins de suporte não são vistos. O chão da exibição foi coberto por diversas bonecas que maneira lúdica ―replicam‖ os trajes expostos. Fonte: http://agnautacouture.com/2015/03/15/a-f-vandevorst-other-projects-besides-cool-collections/

Ilustração 59-Exposição ―Maison Martin Margiela ‗20‘ The Exhibition‖ (MoMu, 2008). Fonte: HORSLEY (2014, p. 83).

Após a apresentação da forma como as roupas, em especial os fardões de gala do império, foram exibidas ao longo do tempo nos museus históricos nacionais, que até certo ponto ainda mantêm elementos da época de suas inaugurações na década de 1920, as propostas de Horsley (2014) podem parecer distantes e até mesmo ―descabidas‖ ou impensáveis, principalmente quando se trata das roupas do imperador ou dos conselheiros de Estado que, nos museus ainda têm seus ―passos graves ecoados‖. Entretanto, apenas através de novas sugestões ou provocações, que esses objetos poderão ser interpretados a partir de questões mais complexas.

Acredita-se que, na ocasião da reabertura do MMP ao público, as roupas pesquisadas possivelmente integrarão o circuito expositivo novamente, por estarem entre os destaques da coleção. Muitas são as possibilidades de os objetos serem trabalhados, mas optamos por apresentar apenas algumas janelas que possam servir a novas trajetórias para estas antigas roupas, de modo a inaugurá-las como documentos, vetores importantes de outros saberes, em uma fase em que poderão ser, de fato, ―conhecidas‖.

CAPÍTULO III

No documento clararochafreesz (páginas 169-180)