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Percurso 3: Abordagens de ethos

3.3. Novas textualidades

Kellner (2001), em A Cultura da Mídia, defende que a cultura da mídia “transcodifica as posições dentro das lutas políticas existentes e, por sua vez, fornece representações que, por meio de imagens, espetáculos, discursos, narrativas e outras formas culturais, mobilizam o consentimento a determinadas posições políticas” (KELLNER, 2001, p. 86). Com isso, o autor apoia-se no conceito de ideologia para delimitar que é preciso ler politicamente a cultura de modo a não só estabelecer relações com dada “ideologia dominante”, mas que esta reproduz lutas de classes existentes em imagens. O teórico, no entanto, critica a acepção tradicional de ideologia, idealizada sobretudo por Marx e Engels, em Ideologia alemã, pois esta estava alicerçada no conjunto de ideias promotoras dos interesses econômicos da classe dominante, deixando de lado discussões como sexo, raça e outras formas de dominação. Sendo assim, Kellner defende que a sociedade é um campo de batalha e que lutas heterogêneas se consumam nas telas da mídia. Portanto,

a ideologia contém discursos e figuras, conceitos e imagens, posições teóricas e formas simbólicas. Tal expansão do conceito de ideologia obviamente abre caminho para a exploração do modo como imagens, figuras, narrativas e formas simbólicas entram a fazer parte das representações ideológicas de sexo, sexualidade, raça e classe no cinema e na cultura popular (KELLNER, 2001, p. 82).

Como é sabido, a Análise do discurso irrompeu como campo e se difundiu nos anos 1960, em uma lógica ainda estruturada entre dualidade oral/escrita. O desenvolvimento de novas tecnologias da comunicação fez surgirem novas práticas, além de modificar profundamente modalidades tradicionais do exercício do discurso. Com isso, aos analistas do discurso, cabe reavaliar seu aparato teórico-metodológico de forma a fazer com que suas categorias de análise deem conta das inovações que afetam a distribuição dos textos. Nesse sentido, tendo em vista que boa parte da comunicação atual é multimodal, ou seja, “mobiliza

simultaneamente diversos canais” (MAINGUENEAU, 2015b, p. 159), o estudo da/na Web se faz relevante, uma vez que a multimodalidade é característica inerente da Web. O autor faz a ressalva de que, se enquanto nos gêneros do discurso ditos “clássicos” a hierarquia de planos da cena de enunciação é tida por cena englobante > cena genérica > cenografia, o mesmo não ocorre na Web, uma vez que os gêneros clássicos têm como cerne a cena genérica, e a Web tem na superposição de hiperlugares o nivelamento de cenas genéricas. Com isso, recebe destaque a cenografia – encenação da enunciação – e, consequentemente, os materiais multimodais aos quais ela mobiliza. Sobre o fortalecimento da cenografia em detrimento da cena englobante e cena genérica, Maingueneau ainda sinaliza a possibilidade de categorizar a noção em dois tipos: a cenografia verbal e a cenografia digital. Enquanto a cenografia verbal é implicada na enunciação, a cenografia digital

reveste a cenografia propriamente verbal: ela será ao mesmo tempo uma imagem na tela, um suporte de operações (por exemplo, pode-se clicar sobre determinada palavra ou grupo de palavras), um constituinte da arquitetura do

site no qual ela figura. A cenografia digital pode, então, ser analisada em três componentes:

- um componente iconotextual (o site mostra imagens e ele mesmo constitui um conjunto de imagens na tela);

- um componente arquitetural (o site é uma rede de páginas acionada de uma determinada maneira);

- um componente procedural (cada site é uma rede de instruções destinadas ao internauta) (MAINGUENEAU, 2015b, p.162-163).

Além da questão da interação entre cenografias, Maingueneau ainda destaca que a textualidade, compreendida pela hierarquização de texto principal e paratexto, também é implicada nas transformações genéricas da Web. Isso ocorre devido ao fato da quebra da linearidade do texto como o conhecemos para dar lugar a um “mosaico de módulos”, em outras palavras, não se tem, em uma página da web, apenas um texto que deve ser lido da esquerda para a direita, de cima para baixo, abrir uma página é ter diante de si um conjunto de diferentes “portas” – sinais, diagramas, slogans – que dão acesso a outro espaço. “Não podemos falar aqui de microtextos, de textos curtos (...) mas de uma subversão generalizada da lógica do texto” (MAINGUENEAU, 2015b, p. 164).

Ainda que tenhamos dedicado todo um capítulo à questão, ainda é preciso pensar, no âmbito do discurso, nas relações entre redes sociais e imagens de si, sobretudo no tocante ao Facebook, a rede social mais utilizada do Brasil. É preciso definir o campo das redes sociais como redes de discurso, espaço retórico por natureza, pois é nesse espaço em que a palavra se faz ação. Nele se pode encontrar tudo o que se encontraria em universo e espaços discursivos:

“múltiplas formações discursivas, relações interdiscursivas dinâmicas, diferentes gêneros do discurso, e o dialogismo em todos seus estados” (EMEDIATO, 201550). Além disso, o Facebook tem como uma de suas principais características a interação entre códigos semiológicos, em especial, a verbo-visualidade:

Raramente um post no facebook vem sem um suporte visual, que pode ser produzido pelo próprio sujeito ou pela captação de imagens na própria rede ou outros suportes, o que implica um trabalho importante de busca ou por via do compartilhamento comentado. A verbo-visualidade é, assim, um aspecto constitutivo do dispositivo de uma rede social eletrônica. (EMEDIATO, 2015)

Emediato51, associando atitudes enunciativas (modalidade subjetiva, intersubjetiva e objetiva) às finalidades pragmáticas, propõe defini-las como atitudes egocentradas, alocentradas e heterocentradas, sendo estas verificáveis no Facebook. As atitudes egocentradas são aquelas voltadas para a exibição de si e também de sua família; “sua finalidade (visada) pragmática é “exibir-se” ou “mostrar-se”, isto é, uma finalidade de “egomostração”. Como se trata de uma egomostração dirigida ao outro, espera-se do outro uma atitude responsiva apreciativa” (EMEDIATO, 2015). As atitudes alocentradas estão voltadas para o tu (geralmente coletivo e indeterminado) e este tem, para o sujeito, uma finalidade pragmática diretiva de fazer-fazer, o que, no Facebook, representa “solicitações de publicações, de implicar o outro em uma atitude de adesão e de aliança na forma de uma ação” (EMEDIATO, 2015). As atitudes heterocentradas têm como referência o mundo e os discursos dos outros, “e é por meio via dessa atitude que o sujeito exibe sua competência axiológica, suas formações discursivas e ideológicas, seus posicionamentos sobre temas e aspectos da realidade social, política, cultural, econômica, religiosa, mundana, etc.”. O autor assevera que todas as atitudes são, de alguma forma, voltadas para a exibição de si ou, em outras palavras, para a constituição de uma imagem de si:

Se assim for, todas as faces do face estarão, em certo sentido, voltadas para o

self e não apenas a face self propriamente dita, aquela que se autoexibe sem complexos. A finalidade principal de um sujeito-usuário do facebook seria, portanto, exibir-se, mostrando o seu corpo, o seu rosto, o seu pensamento, a posição que ocupa na topografia social em todos os seus sentidos (EMEDIATO, 2015).

50 Sem numeração de páginas.

51 Embora o autor adote outra perspectiva para descrever e analisar seu objeto, acreditamos que há pertinentes

Portanto, o Facebook se mostra como um dispositivo que suporta os mais diversos discursos. No entanto, dado o seu caráter intrinsecamente expositivo, a rede leva, inevitavelmente, à construção de imagens de si que, por sua vez, levam à adesão em forma de curtidas e compartilhamentos. Tal engajamento on-line se mostra, como vimos em capítulo precedente, bastante eficaz em termos de divulgação eleitoral. Mais do que isso, discursivamente, a rede eleva de maneira significativa a circulação e produção de discursos, fazendo com que a adesão do usuário/eleitor a um efeito de verdade e a um mundo éthico adquira outras formas e proporções. Em síntese, uma vez verificado o caráter verbo-visual inerente das redes sociais, presente no discurso da mídia de maneira geral, mas que em redes encontrou primazia, as campanhas eleitorais divulgadas por meio do Facebook nos pareceu importante alicerce para se pensar as imagens de si; mais ainda, as imagens de si que emergem de materiais imagéticos.