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Percurso 4: Corporificando análises

4.1. Aécio Neves

4.1.2. O ethos de virtude

A honestidade, sem dúvida, é uma virtude muito valorizada socialmente. No entanto, dado o lugar de destaque que ocupou na campanha, para fins metodológicos, separamo-la de outras. Aqui, como estratégia interpretativa, damos espaço a outras imagens virtuosas que foram constituídas no discurso de Aécio. Conforme já afirmamos e reafirmamos ao longo da escritura deste texto, os caracteres morais do ator político em campanha tendem a ser valorizados por um grupo específico de eleitores que deverão aderir àquele discurso e ao imaginário específico daquele mundo éthico.

Figura 17: Post de Aécio Neves em 16 de outubro

De mim, a senhora receberá sempre um olhar altivo, de um homem de bem, honrado, pronto para dar ao Brasil e aos brasileiros um destino melhor do que eles estão tendo.

Nele, o sujeito atribui certas características a si mesmo, em um processo de constituição do ethos dito. A fala proferida em debate possui as marcas da interlocução, não trazendo o apagamento do outro candidato. Assim, mais uma vez, a oposição entre eles fica clara, sobretudo quando o sujeito enuncia eu sou isso, não sou aquilo. Três caracteres morais, então, são trazidos à cena: a altivez, a benevolência e a honradez. Na tentativa de negação do embate, o sujeito afirma que o outro sempre terá dele uma postura virtuosa, digna de quem está pronto para governar um país. Com isso, o ethos da virtude passa a ser constituído, em primeiro lugar, pelo ethos dito, no qual o sujeito se impõe como portador de características indispensáveis àquele que quer governar um país. Tais caracteres, dessa forma, são associados ao poder fazer do candidato, aliando virtudes e credibilidade para governar, fazendo emergir sua imagem na anteposição com o outro: suas virtudes o tornam pronto para dar ao povo um destino melhor do que eles estão tendo – ênfase em branco e negrito nessa frase, enquanto o restante se mantém em amarelo sem negrito. Ethos dito e mostrado, somados, geram então o eu sou isso, não sou aquilo e o outro é aquilo e não é isso. Mais uma vez, é importante deixar claro que o ethos discursivo só é constituído no e pelo discurso do sujeito, mas uma imagem prévia pode ser constituída no discurso do outro, que deve ser validada no seu próprio discurso.

A exaltação de tais características vem de encontro à afirmação de Charaudeau em relação ao ethos de virtude:

O ethos de “virtude” é uma resposta a expectativas fantasiosas da instância cidadã, na medida em que esta, ao delegar um poder, procura fazer-se representar por um homem ou por uma mulher que seja modelo de retidão e de honradez, ao menos, em uma visão nobre da política. (CHARAUDEAU, 2008, p. 124)

O homem de bem, honrado, assim, é chamado à cena para validá-la. No post ainda vemos sua imagem destacada, trazida de certo momento do debate. O candidato, agora, usa terno, vestimenta considerada adequada para a cena genérica, apresenta rosto e corpo em atitude de fala, recriando o efeito de interação do texto-fonte ao qual pertencia. Além disso, o semblante e o gestual parecem indicar tensão, atribuindo um tom ao exato momento de enunciação do enunciado destacado: o homem da fala e corpo fortes, que se impôs na defesa de acusações, retorna para a cena. No campo do visível, portanto, o ethos semiotizado passa a

ser constituído como o homem forte e sério que chama o outro para a interlocução para defender-se e atacar.

É ainda preciso destacar do HGPE de 21 de outubro:

(8) Eu acredito em valores, esses valores eu a gente aprende em casa, muito cedo, valores como a decência, o respeito, a honradez. Um governo sem esses valores perde o rumo, não vai a lugar algum. E quem paga a conta é o cidadão. Foi o que aconteceu no Brasil nos últimos anos. Faltou generosidade, faltou respeito, faltou ouvir os brasileiros.

A questão dos caracteres morais que fazem parte do imaginário de certa parcela da população, nos HGPE, fica ainda mais clara com o uso e escolha de palavras. É importante salientar que sobre o partido ao qual está ligado o candidato, o PSDB, Roma (2002) afirma que este é um partido conservador66:

O perfil das lideranças políticas do PSDB delineia uma visão ou conservadora ou reformista pró-liberalismo, com considerável adesão de parlamentares com experiências partidárias anteriores, em grande parte, originária de partidos de direita. Este perfil enquadra-se em um tipo de estrutura partidária na qual não houve a preponderância de carreiras políticas vinculadas a grupos trabalhistas. (ROMA, 2002, p. 88)

Decorre do que precede que muitos “valores” destacados no enunciado podem ser, de fato, associados a uma postura política conservadora. Em (8), “valores” tradicionais são defendidos, por meio da afirmação de que são “aprendidos em casa”. Tais valores seriam a decência, o respeito e a honradez. Assim, o bom político, o político virtuoso, é aquele que possui respeito pelo próximo ou pelo país, além de honradez: é preciso ser honrado, entendendo por isso aquele que tem observação rigorosa dos valores morais. Em outras palavras, o bom político seria aquele que possui altos valores morais e não se submete a ações de baixa ordem como o outro.

No entanto, a palavra que nos chama a atenção analiticamente, também por conta se sua repetitividade nos enunciados, é “decência”, entendida pela conformidade a valores morais e éticos de certa sociedade e cultura. O uso da palavra, porém, circulado religiosamente, sobretudo pela Igreja Católica, ainda atribui palavras como “decoro”,

66 Assim como ocorre com quase todos os partidos brasileiros, a definição de partido de direita ou esquerda,

conservador ou não, não é unânime na Ciência Política. Não nos cabe aqui discorrer sobre o assunto, adotaremos a posição defendida por Roma (2002), que faz largo estudo sobre a institucionalização do PSDB.

“virtude”, “recato” ou “pudor” à noção de decência, uma vez que homem e mulher devem, de forma decente, trazer novos seres humanos ao mundo, por meio de um casamento legal. Portanto, não é possível desvincular a palavra de sua memória, que a faz circular criando efeitos de sentido diversos. Por isso, recuperando seu contexto de circulação, enunciado a partir de uma formação discursiva conservadora, o sujeito atribui a decência a valores tradicionais.

Ainda é preciso destacar que, em 2006, o slogan de campanha do tucano Geraldo Alckmin foi “Por um Brasil decente”. Não é possível, desse modo, dissociar o sujeito de certa regularidade em seu partido, seja ela em termos de formação discursiva ou de ethos, como tentou provar Miqueletti em sua tese (2002). Acreditamos, a partir do exposto no capítulo um, em um ethos coletivo partidário que perpassa e fia o discurso de campanha. No entanto, tal afirmação carece de um estudo aprofundado que a legitime.

(9) E a você, que ainda não tomou a sua decisão, que está avaliando a proposta dos dois candidatos, eu te faço um convite: venha com a gente, que você vai se orgulhar muito de um governo decente e eficiente, um governo que vai mudar de verdade o Brasil! Em (9), a decência não é apenas atribuída a um sujeito, mas a todo plano de governo que se quer executar, aliando, assim, decência e eficiência para mudar o Brasil. Tanto em (8) quanto em (9), enquanto um ethos de virtude é constituído, a imagem do governo do outro, que esteve no poder na última gestão, também é constituída. Em detrimento dos altos valores morais aos quais o sujeito está ligado, o governo anterior (relacionado a 12 anos de PT), na contramão, justamente por não possuir tais caracteres, perdeu o rumo e prejudicou o cidadão, pois não agiu com generosidade e respeito. Constituindo seu ethos por meio do que o outro não é, ou do que o outro não fez, o homem de virtude é decente, honrado, altivo, respeitoso e generoso.

Ainda sobre o discurso da decência, dada sua regularidade no discurso de campanha, temos em 22 de outubro:

(10) Eu enfrento porque eu sei que no final a verdade vai prevalecer e essas mentiras só fortalecem a minha vontade de ganhar essa eleição, para dar ao Brasil e a cada um de vocês o governo decente que nós merecemos.

Em uma confluência de ethé, o homem honesto se encontra com o homem virtuoso sob a mesma cenografia antes já exposta: o guerreiro. Com isso, haverá um enfrentamento no qual, no fim, a verdade ganhará e um governo decente será dado ao povo porque o povo

merece isso. Na antítese de palavras e ideias, a verdade prevalece em detrimento da mentira, um ganhará e outro perderá; assim, mais uma vez, se institui o eu sou isso e o outro é aquilo, numa polarização semântica em que só um pode ter as características morais necessárias para fazer um governo decente.

Do HGPE de 24 de outubro ainda podemos destacar:

(11) Bem-vindos a um novo jeito de governar, bem-vindos a um tempo de mais união, de mais decência, eficiência e verdade. Bem-vindos porque é assim que nós somos, acolhedores, solidários, generosos. Isso é o que nós, brasileiros, temos de melhor, de mais profundo, o nosso caráter. Algo que não se pode abandonar nunca, nem mesmo em uma disputa eleitoral.

(12) Valores importantíssimos na vida de todos nós, como justiça, verdade, honestidade e respeito, estão se perdendo. Recuperar esses valores tão fundamentais também é parte da mudança que nós queremos fazer. A mudança que vai trazer de volta ao Brasil o bom governo.

Mais uma vez, valores são associados não só ao sujeito, mas a sua forma de governar, ligada a um tempo de decência, eficiência e verdade. Assim, três dimensões dos ethé aqui estudados estão interligados: a virtude, a credibilidade de um poder fazer e a honestidade. Ainda se destaca o uso do “nós” inclusivo, no qual são inseridos o sujeito e todos os brasileiros, sob as características de acolhedores, solidários, generosos, que é o que o brasileiro tem de melhor: seu caráter. Passa a se constituir, no fio do discurso, que a necessidade de valores é de todo o povo, no qual o sujeito se inclui. Em (12), tais valores, como justiça, verdade, honestidade, respeito são exaltados como sendo perdidos no atual governo e que devem ser recuperados por meio da mudança de uma nova liderança, que trará de volta o bom governo.

Por meio do ethos dito e do ethos mostrado, nos enunciados verbais, o homem dotado de muitas virtudes – decência, honradez, altivez, generosidade – necessárias para um bom governo passa a se constituir. Fiadas pela formação discursiva conservadora, que acompanha o partido, tais palavras constroem a imagem da figura política virtuosa que o povo merece e a qual deve aderir.

O tom empregado nesses enunciados, associados a um ethos de virtude, vai na contramão do tom do ethos de honestidade. Se, por um lado, nos enunciados em que emergiu o ethos de honestidade, o tom empregado era forte, dando ênfase a palavras como “mentiras”, “calúnias”, “terrorismo”, enquanto seu semblante fechado e seu gestual atestavam sua indignação com as atitudes que nomeava de “covardes”; por outro, nos enunciados do ethos de virtude há um tom muito mais ameno, com ênfase em palavras positivas atribuídas ao

“bom caráter”. Em tom ameno e destacando palavras semanticamente positivas, o rosto se dá a ver sorrindo:

Figura 18: Montagem com imagens do HGPE de 21 de outubro

Figura 19: HGPE de 22 de outubro

Figura 20: Montagem com imagens do HGPE de 24 de outubro

Primeiramente é preciso destacar, mais uma vez, que o ethos está sempre ligado à cena de enunciação. Nossa primeira análise de ethos semiotizado, neste subtópico, era uma imagem destacada de sua cena genérica – debate – inserida em seu contexto de recepção – post em rede social -. Em se tratando de um debate, é evidente que seu caráter de enfrentamento gera sobre o corpo, o tom e os gestos do sujeito seus efeitos, produzindo, mesmo sob a exaltação de valores morais, o ethos semiotizado do homem forte, enérgico. Desse modo, apesar da retirada do seu texto-fonte, não há um apagamento da instância polêmica do discurso, na qual,

por meio da situação de conflito, se instaura o debate. Nesse sentido, não podemos então intitular o enunciado ou a imagem como aforizações, uma vez que para isto seria preciso o desligamento com seu texto primeiro, sendo, portanto, uma frase ou imagem sem texto e autossuficiente.

No capítulo dois ressaltamos o efeito de realidade criado pela televisão. Tal efeito é amplificado pelo enquadramento da câmera da campanha no HGPE de Aécio: nas três destacadas, a câmera está muito próxima ao rosto, criando o efeito de conversa face a face. Todas dão a ver o busto do candidato; entretanto, na figura 18, de 21 de outubro, assim que o sujeito enuncia “acredito em valores”, um close é dado em seu rosto, aproximando ainda mais o telespectador. Corroborando essa aproximação, o cenário da figura 18 e 20 são os mesmos, dando a ver, possivelmente, a casa do candidato. Criando o efeito de uma conversa íntima na casa desse ator político, tem-se o tom ameno e o sorriso do diálogo espontâneo, que só se fecha ao enunciar, por exemplo, que os valores estão se perdendo. Portanto, o ethos semiotizado, construído a partir de elementos não verbais, traz um homem tranquilo. Na figura 19 se observa o mesmo cenário da figura 16, em que o tom de azul clareia até criar um contorno de luz em volta do corpo do político, criando efeitos de sentido na ordem do iluminado, da clareza; contudo, agora essa clareza vem seguida por um sorriso e tom também mais ameno. É preciso então destacar que os índices não verbais, no contra fluxo dos elementos não verbais do ethos de honestidade, trazem elementos visuais da ordem da tranquilidade, da afabilidade, corroborados pelo tom e composição de cenário. Assim, outras virtudes ainda são construídas por meio da multimodalidade do ethos que não caberiam, por exemplo, no ethos anterior.

Por fim, ao voltarmos para o nosso esquema de ethos proposto, a interação entre o ethos dito e mostrado do homem virtuoso, e também a interação entre o ethos mostrado e o ethos semiotizado constituem o ethos discursivo da virtude, reunindo em sua multimodalidade diversos caracteres morais do bom político.