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Uma das primeiras decisões legislativas do novo governo Provisório, saído da proclamação da República a 5 de Outubro de 1910, teve como objectivo regular o estatuto legal das congregações religiosas no país. Para isso, seria promulgado o Decreto de 8 de Outubro que se fundava em duas directrizes. Primeiro, os seus artigos 1.º e 2.º afirmavam que as leis de 1759 e 1767, referentes à Companhia de Jesus e aprovadas por Sebastião José de Carvalho e Melo, e o Decreto de 28 de Maio de 1834, de Joaquim António de Aguiar e aplicável a todas as congregações religiosas, ainda se encontravam em vigor. Em segundo lugar, a norma republicana suspendia o controverso Decreto de 18 de Abril de 1901, de Hintze Ribeiro. Se por um lado, os republicanos, chegados ao poder, confirmavam uma legislação monárquica cuja proximidade ao seu ideário era inegável, por outro declinavam uma lei repudiada por diversos sectores da própria Monarquia.297

Enquanto uma das primeiras decisões políticas do novo regime, o decreto anticongreganista deixa transparecer parte das intenções dos recém-chegados governantes acerca das mudanças que pretendiam para a sociedade portuguesa, pelo que, aquilo que sustentava esta resolução tinha um âmbito iminentemente metropolitano, mas com consequentes efeitos no ultramar, por causa da presença de congregações religiosas no império e do lugar que a religião ocupava no próprio projecto colonial do país. Porém, a realidade ultramarina não estava dependente, apenas, da intervenção decisória do governo em Lisboa por causa da dimensão internacional e transnacional da actividade missionária, protegida por um conjunto legislativo extranacional.

Neste sentido, a actuação da República na questão missionária, não obstante, os discursos e as construções ideológicas dos seus representantes, teve de se adaptar ao meio colonial, tal como os monárquicos haviam feito, pois a conjuntura imperial não tinha sofrido nenhuma mudança significativa, ao contrário do que ocorrera com Portugal. A percepção de que o império representava uma realidade própria e                                                                                                                

297 Os Decretos de 3 de Setembro de 1759 e 28 de Agosto de 1767 determinaram a expulsão dos

membros da Companhia de Jesus de todos os territórios de domínio português e o Decreto de 28 de Maio de 1834 (publicado a 30 de Maio) extinguiu as congregações religiosas existentes. Sobre a realidade da Igreja em Portugal no início do século XX: Neto, O Estado, 342-361 e 401-455.

diferente da metropolitana, impôs a continuidade de uma estratégia política ambígua, onde a ideologia se confrontou com as obrigações internacionais e as necessidades imperiais do Estado. A missionação religiosa continuou a ser entendida como um instrumento essencial à afirmação e consolidação da soberania portuguesa em África.

4.1 – Os limites da Legislação

Com o Decreto de 8 de Outubro de 1910, os republicanos esperavam superar a polémica que rodeava os termos da legislação congreganista de início do século, que tinha possibilitado às congregações uma existência, mais ou menos, legal, perante o protesto dos meios anticongreganistas. Os novos líderes do país haviam conseguindo aquilo que alguns críticos do decreto regenerador haviam reclamado. O diploma republicano estendia-se a todas as congregações religiosas católicas existentes no país, sem distinção de nacionalidade, pelo que não abrangia apenas cidadãos portugueses.

No imediato, a norma dispunha a expulsão de todos os jesuítas, nacionais e estrangeiros, e dos clérigos regulares de origem estrangeira das restantes congregações (art. 5.º). Aos regulares portugueses era-lhes imposta a vida secular, impedindo-lhes o uso de vestes talares, e a proibição de viverem em comunidade religiosa, ou seja, viverem em determinada casa em número superior a três (art. 6.º §1). Os bens das congregações deveriam ser arrolados e avaliados, sendo os da Companhia de Jesus declarados, de imediato, propriedade do Estado.

É necessário referir que, não obstante o decreto ter sido obra do governo republicano, parte do seu disposto era esperado há muito, e por muitos. Nas vésperas do 5 de Outubro, num dos últimos actos administrativos da monarquia, o governo de António Teixeira de Sousa ordenara o encerramento da célebre casa da Rua do Quelhas, sede da Companhia de Jesus em Portugal. A decisão tomada a 3 de Outubro parecia antecipar a própria expulsão dos jesuítas, que o governo regenerador já não conseguira decretar, certamente por causa dos acontecimentos dos dias seguintes e não por falta de intenção na medida. O antijesuítismo longe de ser uma prerrogativa do ideal republicano era um sentimento filiador de determinados sectores da sociedade portuguesa da época, alimentado por um pendor nacional em oposição à ideia de subordinação a poderes externos, neste caso, simbolizados pela Cúria romana e pelo Papa.

A dimensão do decreto era, essencialmente, metropolitana. Nenhum dos seus artigos fazia referência a aspectos coloniais, apesar dos seus pressupostos terem óbvias implicações na vida religiosa do ultramar. A preocupação não estava na questão missionária, mas no contexto mais vasto da questão religiosa, da qual as missões, na sua associação às congregações, eram apenas uma parte. Porém, a sua aplicação tinha incidência no além-mar, particularmente no caso dos missionários jesuítas. Quanto aos outros regulares, especialmente em África, poucos eram aqueles que poderiam desrespeitar o requisito previsto no art. 6.º § 1, pois o número de missionários por missão dificilmente atingia o número de três ou mais congreganistas, o que lhes possibilitava uma certa permanência dentro da legalidade.

Contudo, a expulsão indiferenciada de regulares portugueses e estrangeiros deixava em aberto possíveis reacções contra a decisão legislativa. O governo Provisório, parecendo demonstrar poucos conhecimentos da complexidade do mundo colonial, esqueceu que os missionários de todas as nacionalidades, independen- temente da sua confissão religiosa, estavam protegidos tanto por acordos internacionais, que Portugal assinara, como pelos seus próprios governos. Foi neste contexto que se desenrolaria o processo de saída dos jesuítas de Moçambique.

De um modo geral, a aplicação da normativa não foi linear. Cerca de três anos após a sua publicação, o governador-geral de Angola, José Norton de Matos, informou o ministro das Colónias de então, Artur de Almeida Ribeiro, que o decreto não chegara “a ter completa execução”, em virtude dos “compromissos de carácter internacional” a que as autoridades estavam obrigadas, mas também “porque não existiam à data” jesuítas ou outras instituições “sob cujos nomes se disfarcem”. Indicava que na província não estavam sediadas “congregações religiosas ou ordens monásticas” e que na província existiam “apenas missões estrangeiras, ao abrigo de actos internacionais [...], constituídas por membros de congregações religiosas com sede na Europa e na América” e “missões portuguesas formadas pelos padres de Cernache do Bonjardim”.298 Norton de Matos parecia esquecer que algumas missões, como as da Lunda, integradas no sistema padroeiro, e eclesiasticamente subordinadas ao bispo de Angola e Congo, eram compostas por espiritanos, nacionais e estrangeiros. Aliás, o seu discurso colocava as missões católicas espiritanas das prefeituras apostólicas, dependentes da Propaganda Fide e eventualmente alvo da                                                                                                                

protecção do governo francês, na mesma posição das missões protestantes, ao vê-las apenas como estrangeiras. Para ele, as únicas missões portuguesas eram as missões seculares formadas pelos antigos alunos de Cernache. Era uma visão, obviamente, adaptada da realidade missionária na colónia, que desvirtuava a estrutura existente: havia missionários congreganistas portugueses em Angola. O já referido José Joaquim Magalhães, um dos epicentros geradores da polémica que acabaria no modus

vivendi de Barbosa Leão, ainda era prefeito apostólico do Baixo Congo e vigário-

geral de Cabinda.

O espírito presente no Decreto de 8 de Outubro seria revalidado pelo conteúdo do principal elemento teórico da política republicana sobre religião: a Lei da

Separação do Estado das Igrejas de 20 de Abril de 1911.299 Assim, o art. 25.º afirmava que nenhuma corporação, existente ou a existir no futuro, poderia tomar “o carácter nem a forma de qualquer ordem, congregação ou casa religiosa regular”. Por outro lado, o art. 40.º estipulava que seriam extintos os organismos que viessem a admitir indivíduos que tivessem sido antigos membros de congregações religiosas. Adaptar este ponto ao espaço ultramarino seria, sem dúvida um interessante exercício legal. O seu estrito cumprimento levaria à impossibilidade dos missionários regulares puderem criar uma instituição que os agregasse de outra forma. Parece-nos que os receios de se repetir os “erros” do Decreto de 18 de Abril de 1901 e as suas “associações”, vistas como fachadas para dar às congregações legitimidade legal, terão presidido à feitura deste artigo.

Mas contrariamente ao texto de Outubro, a Lei não excluiu explicitamente, a questão missionária do sistema que se inaugurava no país. Todavia, apenas dois dos seus 196 artigos eram dedicados ao tema: o art. 189.º, sobre o Colégio das Missões e o art. 190.º sobre a aplicação da lei às colónias.

O art. 189.º enunciava:

“É autorizado o governo a reformar os serviços do Colégio das missões

ultramarinas, de modo que a propaganda civilizadora nas colónias

portuguesas, que haja de ser ainda feita por ministros da religião, se confie

                                                                                                               

299 Sobre a Lei da Separação: Sérgio Ribeiro Pinto, Separação como Modernidade. Decreto-lei de 20 de Abril de 1911 e modelos alternativos (Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa, 2011);

Sérgio Ribeiro Pinto e Bruno Cardoso Reis, «República e religião, ou a procura de uma separação», em Outubro: A Revolução Republicana em Portugal (1910-1926), org. Luciano Amaral (Lisboa: Edições 70, 2011), 141-183; Luís Salgado Matos, A Separação do Estado e da Igreja. Concórdia e

exclusivamente ao clero secular português, especialmente preparado para esse fim em institutos do Estado.”

O objectivo por detrás desta intenção era antigo. Desde meados do século anterior que diferentes governantes e individualidades ligadas aos assuntos ultramarinos tinham reclamado por um instituto capaz de formar convenientemente os missionários religiosos necessários para as missões coloniais. A reforma de Cernache teria como plano principal a formação de um corpo missionário saído exclusivamente do clero secular português, possibilitando que se prescindisse, de vez, dos regulares e dos estrangeiros. Esta preocupação estava tão presente em certos meios republicanos, como estivera em meios monárquicos. Era o desejo antigo de uma missionação portuguesa sob responsabilidade de padres seculares portugueses, que contribuíssem para um trabalho de civilização, isto é, nacionalização das populações indígenas. Era a idealização de um funcionalismo instrumentalizado e especializado que trabalhasse junto das populações locais em nome do Estado e não necessariamente em nome de um processo evangelizador, que poderia comportar níveis de adesão a entidades externas.300

Por seu lado, o art. 190.º estipulava:

“O presente decreto com força de lei será aplicado, por meio de decretos especiais, a cada uma das colónias portuguesas, continuando, no entretanto, a cumprir-se nelas a legislação actualmente vigente, mas de maneira que as despesas do Estado e dos corpos administrativos, relativas ao culto, sejam reduzidas, desde já, ao estritamente indispensável; se extingam ou substituam, no mais curto espaço de tempo, as igrejas e missões estrangeiras, sem prejuízo do exacto cumprimento das obrigações assumidas por Portugal em convenções internacionais e se façam respeitar os direitos de soberania da República Portuguesa em relação ao Padroado do Oriente.”

O disposto agregava um conjunto de pressupostos que permitem uma compreensão do entendimento português (não apenas republicano) sobre o lugar e a                                                                                                                

300 Apesar da letra do art. 189.º, a reforma do Colégio das Missões Ultramarinas de Cernache do

Bonjardim que se efetivou não correspondeu ao esperado. Em 1912, o então ministro das Colónias, Cerveira de Albuquerque e Castro, anunciava que a reforma do instituto iria ser “em bases diferentes, [...] desaparecendo completamente o seu aspecto jesuítico e católico”. DCD, n.º 143, 22 de Junho de 1912, 23. A decisão legislativa apenas chegou a 8 de Setembro de 1917 e transformou o Colégio de formação missionária religiosa no Instituto das Missões Coloniais planeado para a instrução dos missionários civilizadores laicos (Decreto N.º 3352). Para uma visão dos debates parlamentares associados à questão religioso-missionária: Maria Cândida Proença, org., A Questão Religiosa no

Parlamento (1910-1926), Vol. II (Lisboa: Assembleia da República, 2011) e A Questão Colonial do Parlamento (1910-1926), Vol. II (Lisboa: Assembleia da República, 2008).

dimensão da missionação no espaço ultramarino e a dificuldade do governo português optar por uma posição clara sobre a questão. Este artigo poderia ter sido aprovado durante o regime monárquico com as mesmas preposições, pois aí estavam condensadas as principais preocupações e intenções do projecto missionário português oitocentista.

Numa lei que estabelecia a separação entre o Estado e a Igreja, afirmava-se a

necessidade de “respeitar os direitos de soberania da República Portuguesa em relação ao Padroado do Oriente”, isto é, defendia-se a manutenção de um regime de privilégio a respeito do funcionamento do culto, que filiava a Igreja ao Estado, em vez de a desligar. Durante a discussão sobre a Lei da Separação na Assembleia Nacional Constituinte de 1911, Bernardino Machado, ministro dos Negócios Estrangeiros, justificando a permanência de um representante português junto da Santa Sé, declarava:

“a representação de Portugal significa que, além de termos interesses na metrópole e no ultramar, fora mesmo dos nossos domínios territoriais, precisamos de manter a nossa influência por toda a parte, não a comprometendo, nem diminuindo nunca”.

O Padroado não parecia negociável ou prescindível.301 Mas esta premissa apenas era válida para o Oriente, que estava sujeito a um acordo concordatário oficial e diplomaticamente reconhecido. Quanto a África, as inúmeras tentativas de acordo entre Portugal e a Santa Sé, intentadas desde os anos de 1880, não tinham conseguido para o império africano aquilo que a Concordata de 1886 estabelecera para a Ásia. E mesmo que Lisboa se tenha esforçado para provar que o Padroado ainda tinha validade na época, o legislador não alimentou a discussão e excluiu qualquer referência a esse em África. O Padroado africano permanecia no campo da disputa argumentativa dos seus direitos históricos, pelo que o espaço africano não poderia adquirir o mesmo estatuto particular do espaço padroeiro asiático, que englobava,                                                                                                                

301 Todavia, no que importa a este trabalho, a questão oriental apresenta outras premissas de análise,

pelo que não se desenvolverá a inusitada situação de um Estado defensor de um sistema de separação mas reclamante de prerrogativas padroeiras. Sobre a questão do Padroado do Oriente e a República, Célia Reis, O Padroado Português no Extremo Oriente na Primeira República (Lisboa: Livros Horizonte, 2007), 90-105. Quando em Novembro de 1911, a Nunciatura informou a Secretaria de Estado das intenções do governo republicano aprovar uma lei de separação entre Estado e Igreja, de Roma a proposta foi vista com algum agrado, propondo-se inclusive alguns pontos a serem considerados pelas autoridades portuguesas, entre eles a ideia de abolição do Padroado. Manuel Oliveira de Sousa, «A Afirmação da Igreja Católica (em Portugal) na laicidade do Estado – Exigência da laicidade da sociedade (no contexto da Lei da Separação)», tomo 1 (tese de mestrado, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2004), 82-83. Discurso de Bernardino Machado, DANC, n.º 32, 27 de Julho de 1911, 6.

entre outros, os territórios sob soberania política portuguesa na Índia e Macau, mas não abrangia Timor.

Porém, a Lei não especificava o modo de aplicação dos seus termos às colónias, pelo que a legislação existente manter-se-ia em vigor, até que fossem elaborados os “decretos especiais” para cada uma das colónias, o que deixava transparecer uma determinada percepção das autoridades políticas às particularidades de cada província ultramarina, das suas realidades religiosas e das suas necessidades missionárias.302 O governo Provisório deixava para mais tarde a definição clara dos termos em que a Separação deveria ser aplicada no ultramar, mas frisava-se a necessidade imperativa de se reduzir as despesas do “Estado e dos corpos administrativos relativas ao culto”. A realidade ultramarina clamava por outras exigências.

O texto ainda sugeria que se extinguissem ou substituíssem, “no mais curto espaço de tempo, as igrejas e missões estrangeiras, sem prejuízo do exacto cumprimento das obrigações assumidas por Portugal em convenções internacionais”. Era um dos pontos mais complexos do intricado artigo. O legislador, na velha tradição portuguesa, pretendia a exclusão dos elementos missionários estranhos ao império, mas salvaguardando as obrigações externas do Estado. A sugestão não parecia fácil de cumprir, sem pôr em causa exactamente o cumprimento dessas obrigações. Os governos-Gerais das colónias teriam de encontrar os argumentos certos para justificar a decisão de terminar com a presença de missões “estrangeiras” dentro dos limites dos Actos Gerais de Berlim e de Bruxelas e do Tratado Luso- Britânico de 1891. Esta intenção estivera tão presente durante o regime monárquico como a sua incapacidade de concretização, mas os republicanos assumiam novamente essa necessidade como um dever irremediável. Como vimos, as tentativas de aplicar normas legais que diminuíssem a presença protestante não haviam tido o resultado esperado, isto é, a redução do número de missionários e o bloqueio à expansão das suas missões.

                                                                                                               

302 Em Outubro de 1912, Norton de Matos defendeu que “as leis coloniais tem de ser aprovadas na

metrópole, nos termos da Constituição Política, mas é de absoluta necessidade que elas sejam da iniciativa das colónias, que nas colónias sejam elaboradas e discutidas pelas pessoas que mais de perto conhecem o meio em elas terão de vigorar e de produzir os seus efeitos”. Contudo, neste texto o governador-geral, ao enumerar os assuntos que o governo deveria tratar com urgência, não refere a questão religiosa, missionária ou eclesiástica”. Norton de Matos, Projectos de Lei Orgânica da

Província de Angola e de organização de alguns serviços provinciais (Luanda: Imprensa Nacional,

Além disso, o termo “igrejas e missões estrangeiras” não se referia simplesmente a missões protestantes, que eram habitualmente vistas como não portuguesas. O disposto teria, também, em vista as missões católicas dependentes da Propaganda Fide, que por estarem fora da alçada do episcopado português, eram entendidas como estrangeiras. Essas eram, aparentemente, mais fáceis de extinguir, uma vez que a contestação viria da Santa Sé e não de nenhum estado subscritor dos acordos internacionais que pudesse fragilizar o novo regime. A concretizar esta intenção, seria o cumprimento do velho objectivo português de pôr fim à presença de missões na dependência directa do Papado. Mas as missões católicas estrangeiras contavam evidentemente com o trabalho de missionários estrangeiros, nomeadamente os espiritanos franceses, que poderiam sempre recorrer ao governo de Paris para salvaguardar a sua actividade missionária. Tudo isto considerado, a realização da medida não seria de fácil execução.

Na Assembleia Nacional Constituinte, aquando da discussão do projecto de Constituição e a introdução de um artigo referente à expulsão dos jesuítas e à legalidade das congregações religiosas, o padre deputado Casimiro de Sá avisou que as disposições do artigo poderiam “trazer à República grandes dificuldades” e “de grave delicadeza”, por serem “de real alcance internacional”, lembrando os eventuais prejuízos para o país, “quer sob o ponto de vista político, quer no tocante aos [...] interesses no ultramar”. Advertia ser de “uma infantilidade quase ridícula, uma acção quase pueril votar na Constituição preceitos que só em parte do território da República” haveriam de ser cumpridos, pois sabia-se que o disposto no artigo não poderia ser cumprido em Angola e Moçambique, sublinhando a impossibilidade de alterar a realidade legal que existia nas colónias, assegurada pelo Direito Internacional. Uma tal observação não estava longe da exposição feita por Enes na sequência da assinatura do Acto de Berlim e a inevitável inconstitucionalidade do seu art. 6.º. Partindo destas premissas, Casimiro de Sá insistia na necessidade de uma missionação portuguesa capaz, patrocinada pelo Estado, pois o país estava obrigado a “consentir, patrocinar e defender a acção missionária de todas as confissões religiosas”, afirmando que não seria possível expulsar o “elemento missionário estrangeiro”. Mesmo sendo pessoalmente contrário à presença estrangeira, ele assinalava que os signatários dos Actos de Berlim e Bruxelas “jamais [...] permitiriam essa injúria ao direito das gentes”. Pairavam sobre os meios políticos portugueses e o próprio governo a necessidade de afirmação externa do país e o contexto

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