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O afeto e a paternidade socioafetiva

3. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

3.1. O afeto e a paternidade socioafetiva

O novo Direito de Família surgido após as transformações na sociedade, como a emancipação feminina, refletiu nas relações paterno-filiais, que agora são baseadas em vínculos que ultrapassam o critério biológico já mencionado. Observa-se que:

A família patriarcal perpassou a história deste país e marcou, profundamente, a formação do homem brasileiro. Suas funções mais evidentes eram econômico- patrimoniais, políticas, procracionais e religiosas. A função de realização da comunidade afetiva, que passou a ser determinante ao final do Século XX, era secundária. A filiação biológica, desde que originada na família matrimonializada, era imprescindível para o cumprimento dessas funções e papéis, notadamente de preservação da unidade patrimonial.33

A palavra afeto, de origem latina, affectus, significa “feitos um para o outro”, representa o sentimento, afeição, afinidade de uma pessoa para com a outra. Hoje, o critério da paternidade socioafetiva já está presente nas decisões dos tribunais, no entanto há divergências sobre o tema, o que será mostrado no capítulo seguinte. Esse instituto decorre não apenas do sentimento do pai para o filho, mas também do reconhecimento social e da convivência familiar. É considerado, portanto, um verdadeiro parentesco, pois prevalece diante da filiação biológica em determinados casos.

O afeto é ligado ao princípio da solidariedade, presente na CF/88 no art.229, nas relações entre pais e filhos, no dever de mútua assistência. Para Paulo Luiz Netto Lôbo, “O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, e não do sangue”.34

O princípio da afetividade nas relações familiares já existe mesmo antes da atual Constituição, o exemplo clássico é a adoção, modalidade de filiação socioafetiva, como veremos a seguir, que se funda em laços de afeto e na vontade, pois não há vínculo consanguíneo.

33 LÔBO, Paulo. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 41, 1

maio 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/577>. Acesso em: 9 out 2013.

34 LÔBO, Paulo. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Jus

Navigandi, Teresina, ano 9, n. 194, 16 jan. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4752> Acesso em: 9 out.2013.

Esse princípio não está explícito na Carta Magna, mas possui seus fundamentos inseridos nela. Primeiro ao falar da igualdade entre os filhos, proibida qualquer designação discriminatória a eles, art. 227, §6º. Do segundo fundamento, presente no art.227, §§ 5º e 6º, depreende-se que a adoção é uma escolha afetiva e o filho adotivo conseguiu a igualdade de direitos com os demais. O terceiro elemento que fundamenta a afetividade é a proteção da família, incluindo a monoparental, art.226, §4º.35

Um dos grandes desafios que envolvem a temática é conciliar o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, desvinculada da paternidade de fato, com o direito a relação de parentesco, base da filiação socioafetiva. O presente estudo defende o direito ao reconhecimento da filiação socioafetiva, mesmo que implique atribuição de uma paternidade diferente da biológica, quando resultar de um ato voluntário de quem pretende ser pai ou mãe, incluindo os requisitos necessários para que ocorra a filiação socioafetiva, conforme será exemplificado nesse capítulo.

Sobre a paternidade socioafetiva, para Paulo Luiz Netto Lobo: “Toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não; ou seja, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a não biológica”.36

Vários questionamentos podem ser feitos em torno da filiação socioafetiva, como no caso do homem que registra filho de sua mulher, sabendo ser de outro; poderia esse pai socioafetivo pleitear a posterior anulação do registro em caso de arrependimento? Outro exemplo é quando o filho socioafetivo deseja anular o registro de nascimento em que consta pai não biológico.

Diante disso, Washington de Barros Monteiro37 e Maria Berenice Dias38

defendem que a paternidade assumida sem vício de consentimento (erro ou dolo) não poderá ser desfeita. O presente trabalho também defende que a paternidade deverá ser reconhecida e mantida, quando não haja vício de consentimento, erro, dolo ou coação, sempre que estiverem presentes os elementos ensejadores da “posse de estado de filho” perpetrados através do tempo e o pai biológico for desconhecido. Ademais, caso haja vício, a pessoa enganada poderá propor uma ação de reparação por danos morais contra o cônjuge ou ex-cônjuge que omitiu a verdadeira filiação da criança.

35 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Jus Navigandi, Teresina, ano 5,

n. 41, 1 maio 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/527>. Acesso em: 9 out 2013.

36 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A paternidade socioafetiva e a verdade real. Revista CEJ, n.34, jul./ set.

2006. p.16.

37 MONTEIRO. op. cit., p. 386.

Deve-se ressaltar que a paternidade socioafetiva não excluirá a biológica, até porque isso estimularia a paternidade irresponsável. A verdade socioafetiva deve ampliar os laços de filiação e não restringi-los. Se o pai biológico sabia da existência do filho e não o assumiu deverá arcar com seus deveres, caso o filho necessite, mesmo que esse já possua um pai socioafetivo. O filho não poderá ser prejudicado por um ato de terceiro, seja pai ou mãe e poderá buscar a verdade biológica quando souber da sua real condição de filho afetivo. Ademais, o filho socioafetivo de pai biológico desconhecido, morto ou sem condições de sustentá-lo poderá manter a filiação sociológica, caso ela exista.

Quando houver vício de consentimento, defendemos o desfazimento registral, conforme jurisprudência do Tribunal de Justiça de Sergipe:

Civil - Ação negatória de paternidade cumulada com anulação de registro civil - DNA excludente de paternidade - Registro realizado sob vício de consentimento - Impossibilidade de reconhecimento de paternidade sócio-afetiva - Decisão mantida. I - Configurado o vício de consentimento por parte do apelado, que registrou a criança pensando que era sua filha, caracterizado está o impedimento ao reconhecimento da paternidade sócio-afetiva; II- Recurso conhecido e desprovido.(TJ-SE - AC: 2012201346 SE , Relator: DESA. MARILZA MAYNARD SALGADO DE CARVALHO, Data de Julgamento: 09/04/2012, 2ª.CÂMARA CÍVEL).

Quando há ausência de vício de consentimento e o pai socioafetivo registra espontaneamente a criança como sua, o entendimento que coadunamos é no sentido de manter a paternidade registral:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE. PEDIDO DE RETIFICAÇÃO DO REGISTRO. AUSÊNCIA DE PROVA DO ALEGADO VÍCIO DE CONSENTIMENTO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CONFIGURADA. PRECEDENTES. 1. Inexistindo demonstração do vício de consentimento quando do reconhecimento da paternidade por meio de registro do nascimento dos filhos, não há que se falar em anulação, tampouco retificação registral. 2. Caso concreto em que a instrução processual cabalmente demonstrou a existência da posse de estado de filho. APELAÇÃO DESPROVIDA. (TJ-RS - AC: 70043071695 RS , Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Data de Julgamento: 29/09/2011, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 04/10/2011).

A impossibilidade de desconstituição da paternidade socioafetiva, é um efeito jurídico do reconhecimento voluntário da filiação socioafetiva, que será tratado com mais detalhes no capítulo 3 desse trabalho.

Diante de conflito de jurisprudências, é inegável a necessidade de reconhecimento pela lei do conceito de “posse de estado de filho” como ensejador da verdadeira filiação, a fim

de unificar as decisões. Nota-se que, somente a ausência de vínculo biológico, não é suficiente para desconstituir uma paternidade, caso existam elementos ensejadores da paternidade socioafetiva.

As decisões deverão reconhecer valor jurídico ao afeto, valorizando o novo modelo de filiação em detrimento até mesmo da comprovação por meio de DNA, da não paternidade biológica.

Foi firmado entendimento doutrinário sobre o reconhecimento da paternidade socioafetiva através dos enunciados 103 e 108, da I Jornada de Direito Civil39, coordenada

pelo ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Ruy Rosado de Aguiar Júnior, realizada pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ) do Conselho da Justiça Federal (CJF), com as seguintes redações:

103 – Art. 1.593: o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.

108 – Art. 1.603: no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consanguínea e também a socioafetiva.

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