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O alcance do caráter universalista da Declaração de Viena

3 A QUESTÃO DOS REFUGIADOS NO PLANO DAS RELAÇÕES

3.1 Sobre a proteção internacional aos refugiados

3.1.3 O alcance do caráter universalista da Declaração de Viena

No novo desenho mundial que se esboçou a partir do final da Guerra Fria, surgiu o fenômeno da globalização que se estabelecia como o resultado da crescente relação de interdependência, à qual já se aludiu no item 3.1.1. A globalização abriu as fronteiras estatais às trocas de informações, de mercadorias, de capitais e de tecnologia, mas manteve as portas fechadas para as pessoas. Os meios para excluí-las são vários, indo desde as condições restritivas para a obtenção de vistos até as medidas mais drásticas como deportação e detenção.124 Esses movimentos de abertura e fechamento foram bem compreendidos por

Clóvis Brigagão e Gilberto Rodrigues (2004, p. 88) para os quais é muito claro que

[...] a migração, voluntária ou forçada, alinha-se entre as questões mais delicadas do processo atual de globalização. Ela pode ser considerada como um barômetro que revela, em poucos casos, nossa abertura e, em muitos outros casos, nosso fechamento, em termos de uma nova concepção e política de segurança internacional, compartilhada e democrática.

De fato, verifica-se muita ambigüidade no discurso sobre a globalização e as migrações. Se, por um lado, as teorias econômicas e liberais pregam a livre circulação das pessoas, dos capitais e das mercadorias, por outro, fecham-se essas mesmas fronteiras àqueles que estão em busca de melhores condições de vida. O exemplo mais bem acabado dessa dicotomia seria a União Européia.

Não cabe, no escopo deste trabalho, uma análise do fenômeno chamado globalização, com todos os significados e implicações dele decorrentes, o que, por si só, implicaria trabalho

124 Nos Estados Unidos essas medidas se enrijeceram após os atentados do 11 de setembro, havendo uma

verdadeira caça a suspeitos, sobretudo estrangeiros. “Proibida internacionalmente (para estrangeiros ou cidadãos nacionais) pelo Artigo 9º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e regulamentada também pelo Artigo 9º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (de que os Estados Unidos são parte), a interdição desse tipo de ‘detenção arbitrária’ de qualquer pessoa somente é passível de suspensão, perante o Direito Internacional, em casos excepcionalíssimos (e os atentados do Onze de Setembro os configurariam facilmente), devendo o Estado, porém, dar ciência dessa suspensão e de suas causas aos demais Estados partes do pacto [...]”, o que não foi feito (LINDGREN ALVES, 2005, p. 174). Essa política foi em seguida adotada pelos países europeus: “Aparentando estarem todos numa ‘guerra mundial contra o terrorismo’, os próprios países europeus, que sempre haviam enfrentado o desafio de atos terroristas nos respectivos territórios sem modificar sua concepção do Estado de Direito, passaram a adotar novas medidas internas de vigilância, investigação e detenção inspiradas naquelas dos Estados Unidos” (LINDGREN ALVES, 2005, p. 183)”. Entretanto, a guerra anti-terrorismo, engendrada nos EUA e na Europa e levada a cabo sobretudo pelo primeiro é um fato complexo, relacionando-se a muitos outros elementos, além da imigração e dos estrangeiros. No terreno específico dos refugiados e asilados, as políticas restritivas remontam à década de 70: nos Estados Unidos com a idéia de que o país estava sendo invadido pelos pobres do mundo; na França (e outros países da Europa Ocidental), que adotara uma política de atração de mão-de-obra estrangeira após 1945, procura, a partir da recessão da década de 70, formas de restringir os fluxos de migração. Cabe aqui a advertência de que este inserto sequer chega a ser um resumo simplificado da política anti-imigratória nesses dois países, limitando-se à menção de seus marcos originários. Para uma análise desse processo, aconselha-se a leitura do livro de Rossana Rocha Reis (2007), sobretudo os capítulos segundo e terceiro.

de muito mais alcance daquele aqui proposto. Ademais, prefere-se acompanhar o pensamento de Sadako Ogata125 para quem “a globalização é um assunto que faz gastar muita tinta”,

preferindo, naquele momento, examinar o ângulo oposto, “uma tendência tão marcada quanto”, por ela denominada “localização”, política extrema e que suscita a mais viva preocupação das instituições humanitárias como o ACNUR.

É evidente que, conforme assinala a alta comissária, a ação das forças locais e a utilização das fontes locais podem ser uma tendência positiva. “Uma administração descentralizada, por exemplo, permite tratar localmente, mais pontualmente, os problemas concretos das pessoas”. Entretanto, “o localismo pode também assumir formas diferentes, exclusivas e muito radicais” (OGATA, s.d.). Na sua forma extremada, o localismo:

- nega a coexistência étnica, - diaboliza as minorias,

- alimenta um nacionalismo ou um regionalismo exacerbado e engendra a xenofobia, o ódio aos estrangeiros,

- às vezes conduz à implosão dos Estados ou ao seu deslocamento,

- em outros casos, particularmente nos países ricos, as sociedades se isolam, voltando-se para elas mesmas. Seus governos não têm nenhuma motivação política para assumir responsabilidades internacionais (OGATA, s.d.).

O último tópico da análise de Ogata incide diretamente sobre dois antigos temas, estreitamente ligados à problemática dos refugiados, a saber, a soberania e a segurança dos Estados, o que será mais detalhado no item 3.2.1. Neste momento, basta lembrar, com os dizeres de Brigagão e Rodrigues (p. 88), que cada Estado é soberano e estabelece suas próprias regras.

Se, por um lado, apregoam defender a liberdade do mercado, os fluxos do capital e o uso de tecnologias para todos, por outro, os Estados criam barreiras, medidas de ‘segurança’ e ‘cinturões sanitários’ – guetos étnicos – desde a chegada de migrantes em suas respectivas fronteiras, portos e aeroportos (BRIGAGÃO e RODRIGUES, 2004, p. 88).

Realmente, o universalismo constante da Declaração dos Direitos Humanos de 1948, reafirmado na Convenção de Teerã (1968) e confirmado na Convenção de Viena (1993), continua a ser ignorado. Por este caráter universalista, lembra Norbert Rouland (2004, p. 10), “certos direitos dizem respeito a todos os homens, o que estabelece em toda parte a obrigação dos Estados de respeitá-los e de permitir seu florescimento”. Mas essa aspiração, advinda do

125 Alta Comissária das Nações Unidas para os Refugiados (1999). Discurso proferido no Centro Católico de

Estudos de Lausanne em 25 de março de 1999. Disponível em: http://www.unhcr.fr/cgi- bin/texis/vtx/admin/opendoc.htm?tbl=ADMIN&id=416fe78d4. Acesso em: 05 nov. 2007. Original em francês. Adaptação e tradução livres da autora.

Iluminismo e de inspiração francesa, encontra, evidentemente, muitos obstáculos, alguns dos quais de caráter pontual, já foram relacionados. Em análise mais ampla, pode-se dizer que todas essas manifestações levam às seguintes considerações:

- constatação de uma outra universalidade: a do mal que um homem pode infligir a seus semelhantes. Por muito tempo se quis explicar tudo pelos excessos do Ocidente e pelos erros do colonialismo. Mas, em nosso século, sabemos, a partir dos genocídios do Camboja e de Ruanda, que o horror é possível em toda parte (em Ruanda crucificavam-se crianças) apesar de religiões e de filosofias baseadas no amor ao próximo (Ruanda é majoritariamente cristã) e na compaixão (o Camboja é budista);

- essa ideologia universalista não é universal. [...] ditaduras e regimes autoritários alegam em seu favor a diferença ‘cultural’ para manter à distância os direitos de seus povos. (ROULAND, 2004, p. 10).

As reflexões de Rouland se fazem a partir da situação de grupos minoritários no âmbito de seus Estados. Nada impede, contudo, que sejam aplicadas aos refugiados que, pelo menos em questão de direitos, pertencem, também, à minoria. Em ambos os casos a universalidade dos direitos humanos inexiste ou é negada. Nesse sentido, Clóvis Brigagão e Gilberto Rodrigues (2004, p. 38) também apontam a falta de homogeneidade da universalização desses direitos no mundo. As próprias Conferências da ONU, já citadas, “têm demonstrado que, se, por um lado, esses direitos estão conquistando o espaço global, por outro, seguem gerando resistências de alguns Estados ocidentais ou não-ocidentalizados”.126

De outra ponta, Lindgren Alves (2007, p. 147) acredita que “o universalismo dos direitos humanos pode e deve ser concretizado. Tais direitos127 há muito deixaram de ser

eurocêntricos”, porém seria ingênuo acreditar que somente declarações ou outros documentos tivessem o condão de mudar, de uma hora para a outra, a humanidade. A história dos Direitos Humanos ainda está sendo escrita.

Isso posto, passa-se ao item 3.2 onde serão vistos alguns dos atores que têm tomado parte nesse processo de evolução dos direitos humanos e dos direitos dos refugiados.

126 Cabe considerar que, neste ponto, encontra-se superada a dicotomia Ocidente-Oriente quanto às dificuldades

da universalização dos direitos humanos. Como constatou Rouland (2004, p. 26), seguido por Brigagão e Rodrigues (2004, p. 38), diferenças e contradições podem ser encontradas no interior de todos os países e os ocidentais não fogem à regra. Estes últimos autores exemplificam esse fato com o direito ao aborto, defendido ou repudiado por uma e outra parte da sociedade civil, ONGS e Igreja Católica.

127 Pelo critério do desenvolvimento histórico, os direitos humanos são classificados em três gerações: a primeira

abrange os direitos civis e políticos (direito à vida, à liberdade, à igualdade, ao pensamento, ao voto, à iniciativa privada, à propriedade, à organização sindical etc.); a segunda comporta os direitos econômicos, sociais e culturais (direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, à segurança social); a última, mais recente, trata especificamente dos direitos difusos.