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2 O ALUNO COM ANEMIA FALCIFORME E O PROCESSO DE

2.3 O ALUNO COM ANEMIA FALCIFORME: DESAFIOS E

A questão da educação da pessoa com doença crônica aparece de forma significativa em pesquisas que têm como objetivo descrever a repercussão deste tipo de patologia no cotidiano desses sujeitos, conforme mencionamos. Contudo, quando se trata de alunos com Anemia Falciforme, ainda são poucas as referências encontradas no Brasil. Das identificadas,

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a maioria compunha discussões em monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Os principais aspectos abordados pelos autores dizem respeito ao dimensionamento do acesso à permanência e progressão escolar de crianças e adolescentes com Anemia Falciforme (BARROS et al, 2009) à inclusão escolar desses alunos (PAIVA, 2007), ao processo educacional (SOUSA, 2005), à implantação de serviço pedagógico ambulatorial para este público (BORGES, 1996; REIS, 2010) e a aspectos do desenvolvimento cognitivo e desempenho escolar dessas pessoas (SAIKALI, 1992).

A partir da revisão desses trabalhos, foram identificados os principais impactos desta doença crônica na escolarização de crianças, dentre os quais destacamos a evasão, o abandono, a distorção idade-série e a baixa escolarização, como decorrência das anteriores. Esta constatação aparece no trabalho de Kikuchi (2003), que sustenta que, no Brasil, 85% das pessoas com Anemia Falciforme têm baixa escolaridade, situação que possivelmente refletirá em sua vida quando adultos.

Convivendo com as pessoas com doença falciforme observa-se a baixa escolaridade dos adultos em decorrência da evasão escolar. Quanto às crianças que frequentam regularmente a escola, geralmente, estão atrasadas em relação à série e à idade escolar por causa da repetência. (KIKUCHI, 2003, p. 25).

O principal fator apontado pelos estudiosos em relação a essas dificuldades consiste nos afastamentos dos alunos da instituição escolar em virtude das intercorrências (crises), características da patologia, já discutidas. Estas diferem de um indivíduo para outro, podendo ser mais graves ou mais brandas.

Segundo Kikuchi (2003, p. 25), as complicações clínicas frequentes podem levar a criança a perder de 40 a 50 dias de aula ao ano, comprometendo seu rendimento e seu desempenho. Estudos mostram que a crise dolorosa é a intercorrência mais frequente e responsável pelas ausências dos alunos nas aulas (SOUSA, 2005; ASSIS, 2004; ARAÚJO, 2007; BARROS et al., 2009; PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR; ABADFAL, 2009; ALVIM et al., 2013).

Um estudo realizado por Barros e outros (2009) teve por objetivo dimensionar o acesso, a permanência e a progressão escolar de crianças e adolescentes com Anemia Falciforme na cidade Salvador-BA. Como resultado, perceberam que 76.4% dos entrevistados mencionaram as dores como empecilho a frequentar as aulas. A questão do desenvolvimento físico e a maturação sexual tardia foram apontadas por 52,9% como responsáveis pelo distanciamento desses alunos da escola. O inchaço das mãos foi apontado por 44,1%. Somado

a isto, a pesquisa mostra que 64% dos professores não entendiam a dificuldade de escrever que a criança apresentava.

A partir destes resultados, e retomando outro aspecto encontrado nos escritos mais gerais sobre doença crônica, o desconhecimento a respeito da condição de saúde dos alunos por parte da instituição escolar é um dos pontos relevantes e de consonância entre as diversas pesquisas, quando se trata da especificidade da Anemia Falciforme. A escola, ao se deparar, por exemplo, com as ausências desses alunos, muitas vezes não consegue relacioná-las às especificidades clínicas da doença. Então, o desconhecimento em relação às particularidades deste aluno pode dificultar o processo de escolarização, por requerer a construção de práticas pedagógicas inclusivas.

Paiva (2007), ao desenvolver uma pesquisa sobre o paradoxo da inclusão escolar desses alunos, verificou que a maioria dos profissionais da área de educação (professores e coordenadores pedagógicos) não dispunha de conhecimento sobre a doença, assim como não tinha informações quanto ao atendimento adequado a estes sujeitos no ambiente escolar.

A pesquisa de Sousa (2005), ao analisar o processo educacional de alunos com Anemia Falciforme, questiona sobre o que os alunos mudariam na escola. As respostas apontam para a necessidade de mudanças na metodologia, na organização e na estrutura física, de modo a atender a suas demandas. Algumas dificuldades são apontadas na relação das crianças com a escola: o absenteísmo e a quebra de vínculo; o isolamento provocado por complicações da doença que podendo afetar a autoimagem da criança (icterícia, escaras, retardo no crescimento e maturação sexual); dificuldades em acompanhar os conteúdos, em função das ausências; a reprovação.

A escola, por sua vez, de acordo com Sousa (2005), muitas vezes transfere a responsabilidade pelo desempenho escolar para o próprio aluno: é ele quem precisa se ajustar ao ritmo da escola, atualizar seus conhecimentos, recuperar o tempo perdido. Isto nos remete à perspectiva da Integração Escolar da pessoa com deficiência, incorporada à Política de Educação Especial do Brasil, na década de 60, na qual é o sujeito quem precisa se ajustar à escola para fazer parte dela e não o contrário (SASSAKI, 1997). Neste tipo de aporte, podemos observar que:

A responsabilidade pela exclusão é individual, não importando qual o contexto gerador, cabe ao aluno se adaptar à escola. Sua ausência não é sentida ou questionada, apenas não cumpriu seu papel e teve as consequências normais e naturais. Tornam-se invisíveis para a instituição, representando apenas um número a mais na lista de reprovados. (SOUSA, 2005, p. 81).

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A criança com Anemia Falciforme tem o mesmo potencial intelectual de uma que não possui a doença, com exceção das que tiveram AVC com comprometimento neurológico severo. Mas vale ressaltar que, ainda assim, embora possa apresentar déficit de aprendizagem, poderá ter, no processo de escolarização, um importante aliado para a sua recuperação (SAIKALI, 1992; KIKUCHI, 2003; SOUSA, 2005).

A criança em processo de adoecimento poderá viver experiências de aprendizagem durante as crises e episódios de internação, como mostra a pesquisa realizada por Nóbrega e outros (2010), com crianças em idade escolar hospitalizadas em virtude da doença crônica. De acordo com os autores, embora estejam afastadas da escola formal, as crianças, durante o processo de internação, constroem conhecimento acerca da sua condição de saúde, incorporando vocabulário e conceitos acerca da patologia e do tratamento necessário a elas.

Além das intercorrências clínicas e de seus desdobramentos na vida social, outra perspectiva a ser considerada no processo de escolarização desses alunos são os efeitos provocados pela desigualdade social, situação à qual a maioria destes alunos está exposta, podendo retroalimentar os episódios de crises e contribuir para o prolongamento e a reincidência das ausências escolares. Segundo Alvim e outros (2013), em estudo realizado em Minas Gerais sobre o impacto da dor no cotidiano de crianças e adolescentes, a dificuldade socioeconômica é destacada como fator que pode prolongar a ausência escolar dos alunos, por impossibilidade de deslocamento destes até a escola. Condições precárias de moradia, saneamento básico, alimentação e mobilidade aumentam ainda mais as barreiras que se colocam frente ao processo de escolarização desses sujeitos (KIKUCHI, 2003). Assim, a expectativa de escolarização das pessoas com Anemia Falciforme no Brasil aparece como um grande desafio à escola, em função da história de desigualdade no país, do desconhecimento e invisibilidade da doença e da falta de garantia das condições necessárias ao acesso e à continuidade dos estudos.

No entanto, em meio a todas as lacunas apontadas, encontramos, em experiências isoladas, a reafirmação da possibilidade de escolarização de pessoas com Anemia Falciforme. Assis (2004, p. 32), ao estudar a qualidade de vida dessas pessoas, apresenta dados referentes à situação escolar dos pacientes. A autora mostra que 73% dos pacientes com Anemia Falciforme tinham ensino médio completo, melhor do que os resultados publicados pelo IBGE em 2000, em que somente 16,3% da população brasileira conseguiam completar o ensino médio. Assis aponta, na descrição do trabalho, os possíveis elementos que contribuem para justificar este índice significativo de escolaridade. Primeiro, sinaliza para o fato dos pacientes terem podido contar, desde a sua infância, com tratamento e acompanhamento

médico num hospital especializado; em segundo, registra a presença de educadores escolares no quadro do hospital, fazendo parte da equipe multidisciplinar; por fim, acrescenta que a Classe Hospitalar estabelece um forte vínculo com as escolas de origem, contribuindo não só para a continuidade dos estudos durante os episódios de internação e tratamento, como para a reinserção deste aluno na Escola Regular. Segundo a autora, os conteúdos e as atividades avaliativas da escola oficial são desenvolvidos à distância no hospital parceiro (ASSIS, 2004). Esta experiência aponta para os possíveis caminhos à garantia da escolaridade desses sujeitos, pois torna evidente que uma ação articulada entre saúde e educação aparece como resposta prática à compreensão de algumas das diversas dimensões que os compõem. Dessa forma, a presença de educadores no hospital e a articulação entre a Escola Regular e a Classe Hospitalar são descritas como possibilidades reais de continuidade dos estudos e de manutenção de vínculo deste aluno com a escola de origem, durante o período de hospitalização, facilitando seu posterior retorno a este espaço.

Vale indagar se esta articulação tem acontecido em outros espaços, dada a lacuna de pesquisas nesse sentido, e sob quais condições vem sendo incrementada. Alguns trabalhos sinalizam para dificuldades enfrentadas pela Classe Hospitalar, ao tentar estabelecer o diálogo com a Escola Regular e vice-versa. Estas vão de questões ideológicas (concepção tradicional do papel da escola) a problemas estruturais, que dificultam a comunicação entre eles.

Com o intuito de contextualizarmos estes dois espaços e, em sequência, analisarmos a percepção da Escola Regular acerca do processo de escolarização de alunos com Anemia Falciforme, questão central neste trabalho, buscamos refletir também sobre outras questões, consideradas norteadoras: O que sabem os professores sobre a Anemia Falciforme? Qual a percepção desses profissionais acerca da repercussão desta doença no processo de escolarização dos alunos com Anemia Falciforme? O que sabem os professores sobre Classe Hospitalar? Qual a percepção dos professores acerca da relação entre a Escola Regular e a Classe Hospitalar?

3 ESCOLA REGULAR E CLASSE HOSPITALAR: FIOS DE UM MESMO TECIDO