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O “anel da razão” de Angélica (e de Ariosto)

4.3 SENHORES DE SEUS MUNDOS

4.3.2 O “anel da razão” de Angélica (e de Ariosto)

O anel de Angélica mostrou-se o elemento fundamental para a conquista da liberdade da princesa do Catai: foi após o episódio do ―Lamento à Fortuna‖ que a personagem o recuperou em meio a uma situação de perigo (diante da Orca), do qual o anel a salvou. Além disso, a posse do anel propiciou à Angélica uma autonomia que a levou até Medoro.

Segundo o estudo de Jin-Kyung, os elementos mágicos do Furioso têm a função de ajudar a regular o fluxo narrativo em que os personagens estão inseridos, pois, por meio deles, Ariosto consegue ―encaixar‖ uma história na outra sem perder o fio narrativo136. No caso

específico do anel, ele permite a conclusão de uma aventura ou a continuidade da narrativa: se é colocado no dedo, os encantos são desfeitos, mas, se for colocado na boca, permite que seu usuário fique invisível137. Um exemplo de ambos os casos pode ser observado no episódio do Castelo de Atlante, pois Angélica desfaz o feitiço do mago porque coloca o anel no dedo, possibilitando, assim, o fechamento do episódio, e, ao mesmo tempo, quando o coloca na boca, livra-se de seus amantes138 e pode continuar sua peregrinação rumo ao Catai.

A importância do anel da razão vai além dessas funções mostradas por Jin-Kyung: é o anel que mostra a verdade. Usando o exórdio do Canto VIII do próprio Furioso, sabemos que

Chi l‟anello d‟Angelica, o piuttosto chi avesse quel della ragion, potria verder a tutti il viso, che nascosto da finzïone e arte non saria.

Tal ci par bello e buono, che, deposto il liscio, brutto o rio forse parria.139

136 JIN-KYUNG, op. cit., p. 67. 137 Ibidem, p. 68.

138 Ibidem.

139 ARIOSTO, op. cit., VIII, 2. ―Quem de Angélica o anel houvesse posto, / Antes, o da razão, conseguiria /

Enxergar, sem rebuços, qualquer rosto, / Nem arte ou fingimento o encobriria. / Belo e bom nos parece algo que, exposto / Sem arrebiques, feio e ruim seria‖. (Tradução de Pedro Ghirardi).

O narrador refere-se à ventura de Ruggiero, uma vez que o anel lhe possibilitou conhecer a verdade sobre Alcina e seu reino, pois ambos tinham uma bela aparência que, através do anel, revelou-se pura mentira. Entretanto, na oitava anterior, Ariosto transporta a utilidade do anel ―para fora‖ do texto: os enganos situam-se também ―entre nós‖, ou seja, na sociedade cortesã:

Oh quante sono incantatrici, o quanti incantator tra noi non si sanno, che con lor arti uomini e donne amanti di sé, cangiando i visi lor, fatto hanno! Non com spirti costretti tali incanti, né con osservazion di stelle fanno; ma con simulazion, menzogne e frodi legano i cor d‟indissolubil nodi.140

O anel da razão, assim, tornar-se-ia um instrumento eficaz na corte, pois possibilitaria conhecer a verdade diante de um mundo baseado na aparência, no engano, e, portanto, instável.

Além disso, pudemos compreender através de algumas passagens de nosso estudo que a situação italiana durante os anos de elaboração do Orlando Furioso era também permeada de incertezas e instabilidade. A presença de estrangeiros na península gerou transformações profundas, seja em âmbito político, seja em âmbito social, pois, de um dia para outro, uma cidade voltava-se contra outra, depois se aliava à sua inimiga, desestabilizando, assim, a ―política de equilíbrio‖, que funcionou durante anos, mas que se mostrou insuficiente diante de um novo momento histórico, em que Estados como França e Espanha se unificavam, tornando-se potências político-militares, o que não ocorreu na Itália.

Assim como ocorreu com Angélica, o ―anel da razão‖ mostra-se, talvez, como a única arma diante da ação da ―fortuna‖, que se mostra imprevisível e ameaçadora. Sobre essa força já discorreu Niccolò Machiavelli no Principe e, por isso, não cremos ser conveniente analisá-la em nosso estudo; o que importa para nós é saber que Ariosto sugere um remédio para ―sobreviver‖ à imprevisibilidade da ―fortuna‖ e não para ―domá-la‖141.

140 Ibidem, VIII, 1. ―Oh, quantas são as feiticeiras, quantos / Os feiticeiros que entre nós se ignoram! / As caras

mudam, a poder de encantos, / E homens, mulheres deles se enamoram! / Do conjuro de espíritos seus quebrantos / Prescindem, e as estrelas não exploram; / O cego nó que nos corações enlaça / Todo é simulação, fraude, trapaça‖. (Tradução de Pedro Ghirardi).

141 No Príncipe, Machiavelli utiliza a metáfora da força da água em um rio para representar a ―fortuna‖,

considerada a ―ação das forças externas‖, ou seja, o que não depende do homem. O bom governante, através da ―virtù‖, seria capaz de moldar o curso do rio nos tempos de quietude, impedindo um potencial desastre que a água pudesse provocar. Cf. XXV. In: _______. Il Principe. Milano: Garzanti, 1976. Em Português: _______. O

Se considerarmos a história de Angélica, poderemos compreender como o anel da razão pode ser ―utilizado‖ fora da obra. Foi por meio dele que a personagem adquiriu uma consciência das circunstâncias em que se encontrava e de si mesma, conseguindo, assim, aquilo que desejava: sua liberdade e independência. É nesse sentido que, por meio do anel

[...] l‟uomo ha la possibilità di acquistare la coscienza del proprio destino, della propria condizione, dei propri limiti, di riconoscere, al di là di fallaci simulacri, la provvisorietà e la labilità di beni quali il potere, le ricchezze, la gloria, di mantenere um rapporto razionale, pur sempre difficile e rischioso, con la realtà (con la realtà esterna e con quella, molto più insidiosa, degli impulsi e delle passioni), di discernere, nelle scelte e nella condotta del vivere, il carattere caduco e provvisorio dei beni esterni e il carattere autonomo e fermo dei beni inalienabili della dimora interiore.142

O trecho acima mostra que a razão sugerida por Ariosto é aquela do ―discernimento‖, da ―tomada de consciência‖ diante das incertezas da vida. Como Pedro Ghirardi afirma em seu ensaio ―Razão e Loucura‖, essa razão se opõe ao racionalismo absoluto: ―Ariosto assim expressa a direção constante da cultura do Renascimento, que busca ―la verità effettuale‖, como diria Maquiavel, isto é, a verdade da experiência‖143. Por isso, no Furioso, Angélica é

mais feliz em sua ação do que Orlando144: retomando a oposição entre ―opinião‖ e

―experiência‖ do Canto XXVIII, as atitudes da personagem não são baseadas em ―achismos‖, pois esse ―giudizio umano‖ que ―spesso erra!‖145 é baseado em uma opinião e não na

experiência individual, como ocorreu com a princesa do Catai. Foi esse processo de tomada

de consciência, racional, que fez Angélica triunfar.

142 SANTORO, op. cit., p. 43. ―[...] o homem tem a possibilidade de adquirir a consciência do próprio destino, da

própria condição, dos próprios limites, de reconhecer, mais além de simulacros enganosos, o caráter provisório e a instabilidade de bens como o poder, as riquezas, a glória, de manter uma relação racional, mesmo que difícil e arriscado, com a realidade (com a realidade externa e com aquela, muito mais traiçoeira, dos impulsos e das paixões), de discernir, nas escolhas e no modo de viver, o caráter efêmero e provisório dos bens externos e o caráter autônomo e estável dos bens incorruptíveis que residem no interior do homem‖. (Tradução nossa).

143 GHIRARDI, op. cit., p. 18. Em seu ensaio, o crítico afirma existir uma semelhança considerável entre as

concepções de Machiavelli e Ariosto sobre ―la verità effettuale‖, a ―virtù‖ e a ―fortuna‖. Essa semelhança, no nosso entendimento, poderia ser o motivo de o poeta ter excluído, ironicamente, o secretário florentino do elenco dos humanistas ilustres no exórdio do Canto XLVI.

144 Doris Cavallari, referindo-se a Bakhtin, afirma que ―O herói épico, ‗desesperadamente pronto‘, não questiona

a autoridade, antes, reforça a ideologia do mundo oficial, retratado como modelo perfeito cuja ordem, perturbada de alguma forma, deve ser restabelecida pelo herói‖. CAVALLARI, D. N. Bakhtin e as formas do discurso narrativo. In: MICHELETTI, Guaraciaba; ANDRADE, Carlos Augusto B. de. (Org.). Discursos: olhares múltiplos. São Paulo: Andross, 2005, p. 15-29. Em suma, o herói épico age e restabelece a ordem que foi perturbada, pois acredita naquela sociedade ―ideal‖ em que vive. Já no caso do Furioso, os ―heróis‖ correm atrás de seus desejos, mas não conseguem alcançá-los. Além disso, seus desejos entram em contraste, muitas vezes, com suas crenças e seus valores fixos, cristalizados no mundo antigo, mas retratados pela visão de um humanista que vive numa sociedade em que o homem culto começa a ter diferentes interesses e crises, daí esse ir e vir inútil, essa não ação, essa ―inettitudine‖ que torna extremamente paródicos os heróis ariostescos.