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1.3 LUDOVICO ARIOSTO: UM HOMEM DE CORTE

1.4.1 Origens: as novelas de cavalaria italianas

Como uma obra renascentista escrita por um poeta conhecedor de latim e grego, é certo que o Orlando Furioso possui inúmeras fontes clássicas, como também outras fontes de importantes escritores italianos modernos, como Dante, Petrarca e Boccaccio, considerados os fundadores da tradição literária italiana. Isso pode ser comprovado pela obra monumental de Pio Rajna66, que documentou as ―fontes do Furioso‖, em dois volumes. Entretanto, consideramos importante compreender a existência e sucesso de histórias de cavalaria em pleno século XVI, com o objetivo de esclarecer a escolha de Ariosto por esse gênero literário.

As novelas de cavalaria italianas derivam de dois ―tipos‖ de histórias de cavalaria francesas: o ciclo carolíngio e o ciclo bretão (ou arturiano). O primeiro comporta as histórias provenientes dos tempos do imperador francês Carlos Magno, o qual, em 778, teria tentado invadir Saragossa, mas fora logo obrigado a se retirar; enquanto voltava, o exército foi atacado em Roncisvalle por uma população basca que habitava nas montanhas. Essas histórias teriam sido conhecidas a partir da Chanson de Roland (―Canção de Rolando‖), um poema épico de autor desconhecido67, considerado a primeira canção de gesta68 da literatura francesa;

porém, como nos lembra Ítalo Calvino, na sua Introdução a uma edição do Furioso

65 CARETTI, op. cit., p. 118.

66 A obra de Pio Rajna data 1876 e combateu a afirmação do crítico Francesco De Sanctis de que o Furioso era

desprovido de conteúdo histórico. Rajna situou essa obra de Ariosto na cultura de seu tempo, mas, ainda assim, como o outro crítico, considerou o poeta pouco original na temática e no desenvolvimento de sua principal obra (cf. JOSSA, p. 133-134).

67 JONIN, Pierre. Introdução. In: A Canção de Rolando. Tradução para o francês moderno de Pierre Jonin;

tradução para o português de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. viii. A ―Canção de Rolando‖ não possui autor certo. Acredita-se que tenha sido um Turold, que assinou nos últimos versos, mas não se sabe se ele foi mesmo o autor, ou tradutor, transcritor etc.

organizada por Lanfranco Caretti, tal poema fora escrito somente três séculos depois da batalha em Roncisvalle. A contradição não advém somente desse anacronismo: as histórias narradas em verso simples na Chanson de Roland pouco têm a ver com os fatos históricos, pois Roland aparece como sobrinho de Carlos Magno, o qual teria conquistado toda a Espanha, menos Saragossa, e a derrota em Roncisvalle teria acontecido pela traição de Guenes, que entregou o próprio exército nas mãos do rei Marsílio. Roland, que estava à frente da retaguarda francesa, foi o último a morrer: antes disso, lutara bravamente com sua espada Durendal, que lhe fora dada por um anjo69. Os cavaleiros foram considerados mártires cristãos.

Portanto, não se pode afirmar que as histórias contadas na Chanson de Roland são verdadeiras. Ao contrário, as incoerências históricas acabam conferindo ao gênero um tom fabular. Embora haja registro de um ―Orlando‖ na época das Cruzadas, Ugo Foscolo, na

Storia della Letteratura Italiana, também lembra que essas histórias foram divulgadas

oralmente, por pessoas que acreditavam nas vitórias dos cavaleiros cristãos como milagres, e essa convicção espalhou-se, segundo o crítico, pela incapacidade de leitura do povo (que não podia ler os esclarecimentos dados pelos literatos), auxiliada pela própria Igreja Católica, pois ela mesma dizia que o exército francês era guiado por anjos. Tal instituição acabou autorizando essas histórias, e aqueles que sabiam escrever registravam-nas, até que o Papa Calisto II legitimou a existência do livro de Turpino, possível testemunha ocular que teria acompanhado o exército de Carlos Magno e registrado os fatos70.

Por sua vez, as histórias bretãs começaram a ser mais difundidas a partir do século XII. Esse segundo ciclo também tem origem francesa, e já em 1876, Pio Rajna observa que as histórias, embora já tomadas pelo ―sentimento da nação que lhes dava forma‖ (ou seja, já refletiam o modo de ser elegante da sociedade francesa e anglo-germânica de então), possuem traços da cultura celta como a magia, seres encantados etc71. Tal ciclo conta as histórias escritas por Chétrien de Troyes sobre os cavaleiros do Rei Artur, os quais eram movidos pelo gosto da aventura, não combatiam em guerras santas; além disso, o amor e a magia figuram como os fios condutores dessas histórias72.

69 CALVINO, Italo. Presentazione. In: ARIOSTO, Ludovico. Orlando Furioso. A cura di Lanfranco Caretti.

Torino: Einaudi, 1992, p. xxv-xxvi.

70 FOSCOLO, Ugo. Storia della Letteratura Italiana. Torino: Einaudi, 1979. p. 203-204. Foscolo viveu entre o

final do século XVIII e o início do século XIX e escreveu sobre vários aspectos da literaura italiana, inclusive sobre os romances de cavalaria da Renascença.

71 RAJNA, Pio. Le fonti dell’Orlando Furioso. Disponível em: http://www.liberliber.it>. Acesso em 04 ago. de

2012. p.11-12.

Ao contrário do ciclo bretão, o ciclo carolíngio possui uma seriedade singular: seus personagens são corajosos, armados, conhecidos por todos e não demonstram outro sentimento, além da coragem e da fidelidade à Igreja; o sentimento religioso tem muita importância e, por isso, quando aparecem mulheres, essas não despertam a atenção de ninguém73. Rajna destaca que essas características provinham de um sentimento nacionalista, enquanto o segundo ciclo despertava curiosidade e paixão por tudo o que houvesse de aventuroso74.

Os romances franceses chegaram à Itália de forma natural, visto que essas histórias eram muito conhecidas na França e não demoravam a atravessar os Alpes. Em terras italianas, logo passaram a fazer parte do imaginário popular, e suas personagens tornaram-se bastante conhecidas, mas não se pode dizer que a difusão dos dois ciclos foi homogênea: desde o princípio, a literatura de cavalaria estava ligada à sociedade em que era concebida, e muitas das modificações que sofreu já em terras italianas são devidas a isso.

Em Florença, por exemplo, o ciclo carolíngio predominou sobre o arturiano devido à sua ligação com os pensamentos católicos. As personagens desses romances já eram muito respeitadas e consideradas ―heróis da fé‖, os miles Christi. Petrarca condenava o ciclo arturiano, considerando-o ―sogni d‟infermi e folla di romanzi‖75, um ataque à moralidade;

Dante, por sua vez, usou esses romances de forma funcional na sua obra: no episódio de Paolo e Francesca, essa diz que estava lendo as histórias de Lancelot quando ela e Paolo se beijam, ocorrendo aí a traição, o amor proibido, a paixão que condena suas almas ao desespero eterno76.

Entretanto, observou-se que, no século XV, sobretudo em Ferrara e Mântua, os ―romances de Artur‖ eram muito apreciados pelo público da corte: os leitores admiravam a

cortesia, as aventuras individuais, as histórias de amor presentes nessas histórias, pois viam

nelas um espelho daquela sociedade e de si mesmos ou, ao menos, do que pensavam ser. Ou seja: para os ferrareses, a cortesia estava atrelada ao ciclo bretão, e não ao ciclo carolíngio77.

De fato, Peter Burke observa que

Os heróis das chansons de geste [canções de gesta] eram notáveis pela coragem, mas não pelo autocontrole e pelo refinamento. Eles lembravam

73 Ibidem. 74 Ibidem.

75 VILLORESI, Marco. La letteratura cavalleresca. Roma: Carocci editore, 2002. p. 23. 76 Ibidem, p. 20.

leões, ou a imagem medieval dos leões, fáceis de serem irritados mas difíceis de serem acalmados.78

Foi em função disso que, entre os séculos XI e XII, começaram a aparecer manuais de comportamento destinados aos cavaleiros, ―um código de conduta que lhes dizia como se comportar dentro e fora do campo de batalha e aconselhava a demonstrar clemência a um inimigo derrotado, e a tratar as mulheres com respeito‖79. Para algumas cortes, portanto,

cavalaria tinha a ver com cortesia.

Modificações importantes do romance de cavalaria começaram a ocorrer no século XIII: os romances franceses eram declamados em praça pública pelos ―cantastorie‖, difusores da literatura ―canterina‖, sobretudo em Florença, os quais tinham por objetivo divertir o público heterogêneo que ali estava. Os ―cantastorie‖ davam uma roupagem popular para a literatura considerada culta e de qualidade, simplificando a trama, anulando detalhes psicológicos das personagens (que eram tipificadas, tornando-se somente ―boas‖ ou ―más‖), reduziam descrições e incrementavam as histórias com episódios eróticos e engraçados, a fim de chamar a atenção do público80. Por isso, sem perceber, os cantores de praça estavam contribuindo para a modificação desse gênero literário, o qual acabaria por adquirir uma roupagem tipicamente italiana. Outra modificação fundamental foi a transposição gradual dos romances franceses para a língua corrente. No norte da Itália, o processo teve mais etapas: primeiramente foram escritos em ―lingua d‟oïl‖ (língua dos trovadores provençais) e posteriormente em língua franco-vêneta (uma mistura do francês com o dialeto vêneto). Na primeira, o texto não era somente traduzido, mas transformado de acordo com o gosto popular, já possuindo certa independência artística; entretanto, o romance em língua franco- vêneta marcou definitivamente o fim da importação francesa, pois, além das traduções, apareceram os primeiros romances de cavalaria compostos por italianos. Esses romances tinham como base o ciclo carolíngio, mas já invadido por empresas individuais e amorosas, mais ao gosto do ciclo bretão81.

Dentre eles, importa para nós destacar o Entrée d‟Espagne, de Padovano,

provavelmente entre 1320 e 1340. O autor afirmou que versificara a crônica de Turpino, destinando-a a um público popular; entretanto, Villoresi observa que o texto é refinado e

78 BURKE, Peter. As Fortunas d’O Cortesão. Tradução de Álvaro Hattnher. São Paulo: Editora Unesp, 1997.

p. 26.

79 Ibidem.

80 FOSCOLO, op. cit., p. 208. 81 VILLORESI, op. cit., p. 28, 47-48.

destinado a um público específico, a alta burguesia padana, e fora escrito para ser lido no interior das casas, não mais em praça pública. Mais importante ainda é considerar que esse romance marca o início das transformações ideológicas de Orlando, o qual se depara com Dionés, uma maga sarracena, considerada pelo crítico a primeira grande personagem feminina da épica italiana82.

Na sequência de Padovano, encontram-se dois romances destinados à família Este:

Guerra d‟Attila, do bolonhês Nicola da Cassola, e L‟Aquilon da Bavière, de Raffaelle da

Verona. O primeiro foi escrito entre 1358 e 1368, com motivo propriamente encomiástico, contendo inclusive personagens fantasiosas para homenagear os estenses; o segundo, escrito entre 1379-1407, tinha como público-alvo a alta burguesia, visto que foi escrito em francês em uma época tardia83. Essas obras destacam-se pelas figuras femininas fortes, que possuem

um papel importante na trama, antecipando, assim, a Angélica de Boiardo.

Finalmente, em 1462, o florentino Luigi Pulci escreveu o Morgante, que tem como personagens principais o cavaleiro Orlando, que abandona a corte de Carlo Magno cheio de desdém, e o gigante Morgante, cavaleiro convertido e trapalhão que o acompanha como escudeiro. O Morgante também é abrigo de magia, passagens cômicas e mulheres, sendo que Orlando, mais uma vez, se apaixona por uma rival. Diferentemente dos outros que o precederam, Pulci conseguiu juntar a linguagem literária ao gosto popular, além de fazer uso da paródia para desmistificar o mundo da cavalaria, não só pela paixão de Orlando, mas também por fazer de um trapalhão um ―cavaleiro‖.