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1.3 LUDOVICO ARIOSTO: UM HOMEM DE CORTE

1.4.3 O Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto

O grande sucesso do Orlando Innamorato, bem como sua grande difusão não somente no meio elitizado, devido à sua produção em larga escala, fez que a obra suscitasse uma continuação. Já dissemos que a obra não fora concluída pelo autor, e isso fez com que muitos autores quisessem ―contribuir‖ com a continuação do texto boiardesco, e, por isso, no início do século XVI, apareceram cinco continuações famosas89. Porém, mais do que elencá- las de forma exaustiva, é importante compreendermos que essas continuações desempenharam um papel fundamental na ―preparação‖ do Furioso, pois permitiram que

87 BOLOGNA, Corrado. Orlando Furioso, di Ludovico Ariosto. In: Letteratura Italiana Einaudi. A cura di

Alberto Asor Rosa. Torino: Einaudi, 1993. v. 2. p. 11. Os cantos eram destinados aos saraus e ao final de cada um percebe-se o tom folhetinesco que incita o público a voltar para escutar o resto da história.

88 Ibidem, p. 12.

houvesse não somente a continuidade da história, mas, sobretudo, proporcionaram a permanência da fábula na mente dos leitores: a cada continuação, as histórias anteriormente narradas vinham à tona, consolidando, pouco a pouco, todo o universo ficcional que as continha: microtextos no interior de um megatexto, em que uma infinita rede de relações é formada e se torna uma característica fundamental da narrativa cavaleiresca italiana90.

As primeiras notícias de que o Furioso estaria em fase de elaboração foram encontradas em uma carta da marquesa Isabella de Mântua ao irmão, o cardeal Ippolito d‘Este, do dia 3 de fevereiro de 1507. Nessa carta, Isabella agradecia a visita que Ariosto lhe havia feito por conta do nascimento de seu filho e dizia que Ludovico lhe havia lido um trecho de sua obra em fase de elaboração, a qual proporcionara à marquesa ―un piacere

grandissimo‖91.

O aparecimento de tal obra completa dar-se-ia somente em 22 de abril de 1516, no ―lançamento‖ do Orlando Furioso, com quarenta cantos, em cerca de duas mil cópias, as quais circularam rapidamente pelas cortes de Ferrara e Mântua, dado o sucesso da ―novidade‖ e a beleza‖ da obra92. Das doze edições que chegaram aos nossos dias, uma, em particular,

mostra o cuidado de Ariosto com sua obra e o seu intuito de enviá-la aos destinatários mais prestigiosos da época: o exemplar enviado ao rei francês, Francisco I, possuía ornamentação feita com papel especial e com folha de ouro. Em Mântua, Ariosto entregou pessoalmente exemplares ao marquês Francesco, à marquesa Isabella e ao cardeal Gonzaga, levando ainda outras cópias a fim de que fossem vendidas93.

A história pretendia-se uma ―gionta‖ (―adição‖) ao texto incompleto de Boiardo. De fato, do ponto de vista da trama, o romance ariostesco ainda mantém os três fios condutores da obra anterior: a guerra entre pagãos e cristãos em Paris e as histórias amorosas de Orlando e Angelica e Ruggiero e Bradamante, esses últimos os supostos ―ancestrais‖ da família Este; além disso, o motivo encomiástico da obra também foi mantido.

Entretanto, a inovação suprema do Furioso foi a inserção da loucura no código cavaleiresco, e isso causou uma ruptura na continuidade, pois, como observa Corrado Bologna, fazer de um cavaleiro um ―foribondo‖ (furioso) gerou uma nova obra fundadora, um novo protótipo, que só ironicamente pode ser tido como continuação do Innamorato94. Além dessa diferença fundamental, o papel do narrador destaca-se pela sua dupla participação no

90 Ibidem, p. 14.

91 JOSSA, op. cit., p. 30. 92 BOLOGNA, op cit., p. 18. 93 FERRONI, op. cit., p. 123. 94 BOLOGNA, op. cit., p. 16.

poema, pois participa, com frequência, como personagem e faz intervenções de juízo, dando seu parecer, muitas vezes de forma irônica, sobre o que acontece na narrativa. O poema ariostesco é considerado o poema do espaço devido à sua elasticidade geográfica, com vários ―centros móveis‖ (o poema medieval era estático, com um só centro95) onde os cavaleiros

andam em movimentos de ―zig-zag‖ à procura de seus objetos perdidos. Para dar fluidez ao texto, Ariosto utiliza a oitava rima, e a técnica do ―intreccio‖ – narração intercalada de várias histórias, de forma que são interrompidas e retomadas posteriormente à critério do narrador – confere ao poema momentos de suspense. Tudo isso, segundo Caretti, dá ao poema um andamento romanesco e, à diferença das obras anteriores, confere-lhe características modernas96.

Diante do sucesso da primeira edição, Ariosto começou a trabalhar uma segunda, a qual teria algumas modificações na trama (adição e retirada de alguns episódios) e uma revisão linguística, pois os debates sobre a instauração de uma ―língua italiana‖ literária já ocorriam no meio dos intelectuais (por exemplo, Pietro Bembo, um dos principais articuladores dos debates e responsável pela redação da obra Prose della Volgar Lingua, de 1525, era amigo de Ariosto). A primeira edição fora escrita em língua corrente padana, mas o autor, que já a considerava provisória97, estava atento a essas questões e interessado na difusão de sua obra. Então, começou a reelaborar seu texto.

A segunda edição do Orlando Furioso é de 1521, escrita no período de cinco anos anteriores a essa data. Tal período fora turbulento para Ariosto: como já dissemos, foram anos em que o autor teve problemas com os duques de Ferrara devido a questões profissionais e familiares. Por isso, essa edição surgiu com poucas modificações (adição e eliminação de alguns versos). Entretanto, Corrado Bologna afirma que o segundo Furioso não apresenta tantos traços padanos: o crítico observa que a edição de 1521 já se impõe como livro ‗italiano‘, não se restringindo nem à cultura padana, nem mesmo àquela toscana. Apesar dessas questões universais, o crítico reforça que o Orlando Furioso é um ―romanzo tanto

legato alle esperienze e alle situazioni ferraresi‖98.

Em 1525, com o surgimento da obra de Bembo Prose della Volgar Lingua, a língua toscana estabeleceu-se como a língua literária italiana. Com isso, Ariosto fez uma revisão completa do seu Furioso, passando-o integralmente para a língua de Petrarca. O autor

95 CARETTI, op. cit., p. 100. 96 Ibidem, p. 102-103.

97 BORSELLINO, op. cit., p. 53.

98 BOLOGNA, op. cit., p. 26. ―romance ligado tanto às experiências quanto às situações ferraresas‖. (Tradução

trabalhava sempre em sua obra e fazia alterações no texto constantemente. Tais modificações eram tanto estilísticas quanto narrativas99, mas Ariosto também revisou o conteúdo histórico do poema, atualizando-o conforme a nova situação político-econômica enfrentada pela Itália com a chegada do Imperador Carlos V.

Do ponto de vista da trama, o poeta inseriu alguns episódios que foram importantes porque resolviam algumas questões que surgiram nas duas primeiras edições, como a questão feminina, considerada por alguns como uma possível misoginia do autor100.

A nova e última edição do Furioso saiu em outubro de 1532, com uma tiragem de três mil cópias e quarenta e seis cantos (seis a mais do que as duas primeiras). Da mesma forma que fez com as outras edições, os primeiros exemplares foram presenteados aos duques e duquesas de Ferrara e Mântua, bem como a outros importantes leitores, que seriam os responsáveis pela divulgação da obra. O novo romance, em língua toscana, foi usado para sancionar a ―nova língua‖ nacional ao lado de dois outros romances que, como o Furioso, não provinham de Florença101.

Outra famosa ―possível adição‖, os Cinque Canti, foi encontrada somente após a morte de Ariosto e continha cinco novos cantos, os quais apresentam um universo tomado pela violência, ódio e inveja, desprovido de racionalidade, diferentemente do restante do

Furioso. Talvez esse tenha sido o motivo pelo qual o poeta decidiu não os inserir, já que

poderiam romper a unidade do poema102. Existem discussões acerca da data de composição desses cantos, mas provavelmente foram escritos durante o período que Ariosto passou na Garfagnana, entre 1520 e 1525. O filho Virgílio acabou publicando-os, após a morte do pai.

Vemos, então, que o Orlando Furioso é fruto de uma longa tradição literária que passou por modificações significativas até chegar à última delas: a loucura do cavaleiro cortês. Esse último ―golpe‖, dado por Ariosto, fechou o ciclo da literatura de cavalaria medieval, para inspirar o primeiro romance considerado moderno, o Don Quixote de la

Mancha, do espanhol Miguel de Cervantes.

99 JOSSA, op. cit., p. 104. 100 VILLORESI, op. cit., p. 193. 101 BOLOGNA, op. cit., p. 28. 102 CARETTI, op. cit., p. 129.

2 ANGÉLICA