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O atendimento das famílias das adolescentes privadas de liberdade

4. SISTEMA SOCIOEDUCATIVO NO ESTADO DO PARÁ

4.19. O atendimento das famílias das adolescentes privadas de liberdade

Foi possível identificar a efetiva realização do atendimento das famílias, através do registro desses momentos nos registros históricos institucionais do processo de atendimento localizado. Muitos registros das características familiares e atendimento das famílias das adolescentes podem ser facilmente localizados nos prontuários, devido à quantidade de práticas e informações ligadas com as famílias das adolescentes.

As primeiras entrevistas e intervenções com a família acontecem somente após o atendimento prioritário e individual das jovens privadas de liberdade. As práticas de atendimento com as famílias usualmente ocorrem quinzenalmente, enquanto as com as adolescentes se dão semanalmente. Os registros nos documentos dos prontuários referem que esses atendimentos mensais com as famílias se dão sempre no fim de cada mês e são caracterizados por atividades grupais, nas quais “[a] temática de cada grupo é definida pela responsável de acordo com as demandas advinda do grupo” (DOC. 01).

No dia 15 de janeiro de 2010 (sexta-feira), por exemplo, houve um grupo com famílias. Uma assistente social, duas pedagogas – uma alocada no CESEF e outra convocada da Secretaria Estadual de Educação (SEDUC) – e uma enfermeira foram responsáveis pela coordenação do grupo, que aconteceu às 15h, com a temática “Normas e limites”, de acordo com o que foi possível identificar em um dos prontuários analisados.

Em situações em que se avalia a necessidade de visitas domiciliares, a leitura de inúmeros documentos demonstra que essas visitas domiciliares são realizadas

efetivamente pelo corpo técnico da unidade, tal como pode ser identificado na seguinte passagem, retirada de um registro de atividades presentes no PIA de uma adolescente, no ano de 2010:

Em visita domiciliar e atendimentos, foi possível verificar que os pais são separados, a mãe prefere não falar nos motivos que levaram a separação, porém observa-se que o Sr. M, pai da adolescente, mantém os recursos financeiros para prover as necessidades básica da família, inclusive adquirindo uma casa própria para o grupo familiar, porém quanto a participação na educação das filhas este nos parece bastante omisso, aliado ao fato que o seu trabalho lhe faz passar maior parte do tempo viajando, segundo relato dos mesmos não constituíram novas famílias. (DOC. 2).

Existem também situações em que a família é convocada pelo CESEF para se fazer presente na unidade. Essas situações podem ser desde a necessidade de comunicação de má conduta, o próprio desejo da adolescente em ver determinada pessoa da sua família, como estratégia para aproximar famílias/responsáveis que estão sendo identificados como sujeitos significativos para as adolescentes e importantes para o sucesso da trajetória de cumprimento da medida socioeducativa, mas que vêm se apresentando como ausentes nas atividades destinadas às famílias e nas visitas periódicas.

Esses conjuntos de práticas direcionadas às famílias realizadas pelos técnicos do CESEF estão em consonância com o exposto sobre o poder biopolítico. A família passa a ser elemento fundamental e estratégico nas práticas de normalização da população, por intermédio das estratégias de saber-poder que possibilitaram a medicalização da família e sua consequente subjetivação, através das normas impostas pela Medicina e demais saberes como a Psicologia, a Pedagogia etc. Dessa forma, atores centrais nas famílias, como as mães, passaram por processos massivos educacionais para sua subjetivação e ocuparam lugares estratégicos para as práticas biopolíticas de qualificar formas de vida de estabelecer o como se deve viver, para a manutenção das relações de poder, normatizando-as.

As práticas descritas apontam para a atualidade das práticas biopolíticas de governo da população, por meio da família. A presença de uma preocupação constante com a família se faz extremamente forte e acentuada, na grande maioria dos documentos analisados. Elas são convocadas constantemente para contribuir ativamente no controle e transformação das condutas, como podemos ver nos documentos encaminhados a elas, solicitando sua presença no espaço institucional, em que se diz, no

final do documento “Sua participação é importante para o progresso da adolescente no cumprimento da medida sócio-educativa.”, localizado na parte final do documento (vide Anexo).

Todavia, se elas são constantemente incentivadas e instigadas pela responsabilização do controle normativo de seus membros, também podemos identificar práticas contínuas destinadas ao seu constante assujeitamento, através de práticas educacionais como são os grupos para familiares que acontecem quinzenalmente sobre temas com significativos elementos medicalizantes e normativos, conforme sugere o tema “Normas e limites”, coordenado por especialistas da Enfermagem da Pedagogia e da Assistência Social.

O conteúdo evidenciado no documento confeccionado a partir da visita domiciliar revela um discurso de responsabilização do pai pelo provento da família e uma preocupação com sua “omissão”, no processo educativo de sua filha.

É interessante refletir que é uma prática comum, tal como pondera Donzelot (1986), as famílias serem geridas durante anos pelos trabalhadores sociais, através de suas investidas normalizadoras antes de serem encaminhadas para o Poder Judiciário, no sentido da efetivação de uma penalização como a perda da liberdade, pois vivemos em uma sociedade onde moralizar e normalizar são os primeiros recursos, antes da punição da infração de uma lei.

No caso das famílias atendidas no CESEF, estas, pela responsabilização penal de um dos seus membros, já romperam com as tentativas primeiras de seu controle pela normalização e se encontram já em situação de punição normativa. No entanto, mesmo nessa situação, os trabalhadores sociais não deixam de produzir práticas de captura e enquadramento normalizador dessas famílias, durante todo o processo de penalização.

Como Foucault (1989) assinalou, a lei não deixa de ser uma estratégia importante para as formas de controle social, porém, ela passa a funcionar em apoio com a normalização. São usadas tanto táticas de subjetivação como as leis, na atualidade.

Tal situação também nos remete à possibilidade de uma leitura dessas estratégias, dessas táticas, em termos da analítica do poder, em sua positividade: o poder possui um caráter positivo, uma vez que

[...] é falso definir o poder como algo que diz “não”, impõe limites, castiga. Há uma concepção negativa que identifica o poder com o Estado e o considera essencialmente como aparelho repressivo, no sentido de que seu

modo básico de intervenção sobre os cidadãos se daria de forma de violência, coerção, opressão, Foucault opões uma concepção positiva, que pretende dissociar os termos dominação e repressão. A dominação capitalista não conseguiria se manter se fosse exclusivamente baseada na repressão. (MACHADO, 2003, p.171-72).

Por conseguinte, por mais que nas situações descritas acima estejam evidentemente elementos repressivos de poder e punição, são acompanhados concomitantemente por outras relações de poder positivas, na tentativa de promover nessas famílias e nas socioeducandas formas mais sutis de controle. Quando ao caráter positivo do poder, Focault questiona:

Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir. Em Vigiar e Punir o que eu quis mostrar foi como, a partir dos séculos XVII e XVIII, houve verdadeiramente um desbloqueio tecnológico da produtividade do poder. As monarquias da Época Clássica não só desenvolveram grandes aparelhos de Estado − exército, polícia, administração local − mas instauraram o que se poderia chamar uma nova "economia" do poder, isto é, procedimentos que permitem fazer circular os efeitos de poder de forma ao mesmo tempo continua, ininterrupta, adaptada e "individualizada" em todo o corpo social. Estas novas técnicas são ao mesmo tempo muito mais eficazes e muito menos dispendiosas (menos caras economicamente, menos aleatórias em seu resultado, menos suscetíveis de escapatórias ou de resistências) do que as técnicas até então usadas e que repousavam sobre uma mistura de tolerâncias mais ou menos forçadas (desde o privilégio reconhecido até a criminalidade endêmica) e de cara ostentação (intervenções espetaculares e descontínuas do poder cuja forma mais violenta era o castigo "exemplar", pelo fato de ser excepcional). (FOUCAULT, 1979, p. 08).