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CAPITULO I – O RIO COMO OBSTÁCULO DO PODER PÚBLICO

1.3. P ORTAS PARA A C APITAL : T ENTATIVAS DE CONEXÃO DE N ATAL COM O RIO

1.3.2. O Aterro do Salgado (Comércio de Exportação da Ribeira)

Na política de estradas gerais do Império, havia a preocupação de integrar o Rio Grande do Norte às províncias vizinhas. Em 1847, é feita uma estrada – a estrada geral do sul – cujo intuito era alcançar a província da Paraíba, passando por São José e Goianinha (Correspondencia dos Negocios da Provincia, 13 de Fevereiro de 1847). Já aparece no pla- no hydro-topografico de 1847 o aterro que seria o início da estrada geral do Norte, forma- da por dois ramais que deveriam alcançar a cidade do Príncipe, e a cidade do Assu, respectivamente. Planejava-se estender-se o ramal do Assu até a cidade de Mossoró, de onde a estrada prosseguiria até Aracaty na província do Ceará.

O início dessa estrada, freqüentemente aludido como o Aterro do Salgado, fazia parte de um plano de integração regional entre o Rio Grande do Norte e o Ceará, por isso a abundância dos recursos, vindos exclusivamente do Governo Geral, já que a administra- ção local não tinha recursos para bancar esse investimento.

Durante a maior parte do século XIX, o aterro do Salgado será a principal - e em alguns momentos a única - via de acesso à capital de quem vinha vender ou comprar nessa praça comercial. Na verdade era um substituto da tão desejada ponte que venceria o rio Potengi. A primeira referência aparece nos Relatórios de presidente de província e data de 1839, embora provavelmente sua existência seja bem mais remota. (Fig. 11) Foram aplica-

dos investimentos para melhoria do aterro desde 1845, até a chegada da ferrovia na década de 1880. Sua importância como única estrada de acesso à capital pode ser atestada pelo discurso do Presidente Assis Mascarenhas: “... No Municipio da Capital apparece como obra de maior necessidade o concerto do atterro da - Corôa, - que serve de embarque, e desembarque a tudo quanto atravessa o Rio Salgado...” (Relatorio do Presidente Assis Mas- carenhas de 07 de setembro de 1839, p.21-24.)

Em 1841, uma lei provincial autorizava a contratação de um empreiteiro para dar início às obras de melhoria do Aterro do Salgado. No entanto, até 1845 nenhum candidato havia se habilitado, já que o contrato não oferecia grande vantagem ao possível contratado. Nesse mesmo ano é alterado o edital de licitação, prometendo ao empreiteiro a concessão dos numerários provenientes da Passagem do Salgado durante alguns anos. Em 1846 é então firmado o contrato com Joaquim Ignacio Pereira, tendo ficado as obras sob adminis- tração da província. O empreiteiro continuaria recebendo o dinheiro proveniente da Passa- gem do rio Salgado até 1858, quando a presidência rescindiu o contrato, pois os serviços já não eram prestados com a devida funcionalidade.

Eram evidentes as ligações políticas e comerciais do empreiteiro com o governo lo- cal. Joaquim Ignacio Pereira, que deteve os rendimentos da “Passagem do Salgado” por quase dez anos, teria prestado serviços à Província ao distribuir por conta própria os socor- ros do Governo Geral para as vítimas da seca:

He hum dos primeiros negociantes e propri- etarios da Capital da provincia, tem prestado relevantes serviços ao estado, não só pelos seus capitais,como por outros meios, encar- regado da distribuição dos socorros para esta Provincia na crise da sêca, em já comis- são desempenhou gratuitamente, prestando sua caza e caixeiros tambem gratuitamente para o mesmo serviço; tem occupado os empregos electivos da capital; gosa de toda a reputação, e trata se com decencia. (Corres- pondencia da Provincia do Rio Grande do Norte, 15 de dezembro de 1848. Arquivo Nacional)

O Comerciante, já completamen- te inserido na rede de distribuição de socorros - que de certa forma também era sua rede de distribuição comercial - pôde lucrar sensivelmente não só com suas atividades comerciais, mas também Fig. 11 – Plano Hidro-Topográfico de 1847 (Detalhe)

“Caminho novo da passagem da coroa para a Cidade” O aterro aparece no mapa como um acesso estratégico para a Capital. (Fonte: Fundação Biblioteca Nacional)

com os recursos destinados ao combate às secas.

O investimento inicial do Governo Geral na estrada foi de 9:000$000 réis (Corres- pondência da Província do Rio Grande do Norte, 31 de dezembro de 1850). Em 1849, já havia sido feito um cais de pedra lavrada mais o telheiro, além de levantadas muralhas late- rais para o início do aterro. Em 1850 são destinados 1:200$000 réis para continuação das obras, que substituiriam a estacada de madeira dos taludes por paredes de pedra. Logo cedo o mar e as chuvas torrenciais se encarregariam de destruir os reparos, levando-se em conta que o aterro ocupava uma zona de mangue, invadida diariamente, pelos menos duas vezes, pelas águas da maré-cheia. Os reparos seriam constantes, e os numerários, destinados para tal, consideráveis. O tamanho da obra exigia muito dos cofres da província, já que se trata- va de mais de 4 quilômetros de estrada em um terreno instável, longe de terra que se pres- tasse para aterro, o que dificultava bastante o andamento dos trabalhos. Além disso, ele deveria ter 13,2 metros de largura e de 3,3 a 4,4 metros de altura, de modo que ficasse 1,1 metros acima da maré mais alta. Estariam prontos 1,1 quilômetros em 1851 e apenas 440 metros em estado de trânsito pleno.

Em 1853, a cota destinada ao aterro esgota-se, o Governo Geral envia 6:000$000 réis para prosseguimento das obras. Dessa vez a presidência altera alguns pontos da obra, diminuindo a altura do aterro e aumentando a largura dos muros de contenção, o que de- monstra a falta de pessoal especializado para o andamento do serviço. Os planos e plantas levantados pelo Tenente de Engenheiros Manoel da Silva Pereira em 1846 não seriam revi- sados durante essas alterações.

A obra continua por arrematação. As 360 braças (792m) além do “grande arromba- do” deveriam ser construídas de modo que excedessem em dois palmos e meio (55cm) a maior maré. As rampas laterais deveriam ser guarnecidas de grama. O Presidente altera o contrato, pois antes era exigido que o aterro ficasse cinco palmos (1,10m) acima da maré alta, mas ele julga suficientes 2 palmos e meio (55cm). Também manda fazer duas valas paralelas ao aterro para que as águas não o derrubem. Aumenta a largura das bases das rampas de contenção do aterro de meia braça (1,10m) para uma braça (2,2m), para diminuir o ângulo das rampas.

Em 1855, a obra é arrematada em duas partes. A primeira, medindo 1210 braças (2,7km), tinha nesse trecho 850 braças (1,8km) de aterro em toda a largura da estrada, mas ainda sem a altura conveniente; 110 braças (242m) já estariam concluídas, dos serviços feitos pela administração da província. O arrematante dessa seção encarregou-se de conclu- ir os serviços propostos, além de reparar os estragos provocados pela maré e aterrar mais

88 braças (193m). A segunda parte, medindo 410 braças (902m) de aterro, é contratada pelo valor de 4:700$000 réis, e deveria ficar pronta até maio de 1856. Destas 410 braças, 200 (440m) já estariam aterradas e a maior parte de seus taludes já guarnecidos por grama.

Os trabalhos da primeira parte da estrada seriam aceitos pela presidência da provín- cia em 1857, os da segunda parte em 1858. Segundo Relatório do Presidente Costa Doria, a decisão por dividir a obra em duas partes não foi atitude lúcida, já que “sendo entregue por lanços, na conclusa'o do ultimo estava quase perdido o serviço dos primeiros.” (Relatorio do Presidente Costa Doria de 19 de maio de 1858, p.12)

Em 1859, a obra encontrava-se em mal estado. Tinha um grande número de esca- vações em toda a superfície por efeito das marés e chuvas. Em um dos pontos, sofreu um arrombamento de 65 palmos de comprimento e 18 de profundidade, com a água passando de um lado para o outro. No ano seguinte, são liberados 4:500$000 réis para contratação de arrematante. Este deveria fazer os reparos necessários e construir uma ponte no local ar- rombado. Devido aos recursos escassos da província, decide-se substituir provisoriamente os muros de pedra por estacas de madeira para conservação da terra do aterro.

Em 1865, é chamado novo arrematante para consertos no aterro, dessa vez é des- pendida a quantia de 5:763$934 réis. O novo empreiteiro não concluiria as obras, deixando feitos apenas a casa da Corôa, os reparos da ponte e uma pequena parte do aterro, da ponte para Aldeia Velha, segundo parecer do Engenheiro da Província “soffrivelmente feita.” O fiador do arrematante até 1867 não daria início às obras, devido ao início da estação chuvo- sa. Em 1870, o aterro precisaria de novos reparos. Um novo arrematante é contratado, sendo destinados para a obra 5:064$000 réis.

Vê-se, pelas quantias destinadas ao aterro e reparos feitos nele durante mais de três décadas ao aterro, que este era a única saída viável para ligar a capital com o interior, pois uma ponte de frente para a capital era um projeto totalmente fora da realidade dos cofres provinciais. Apesar da historiografia sobre o Rio Grande do Norte falar dessa área apenas com a chegada da Estrada de Ferro Central no início do século XX, ela estava em plena ebulição comercial desde os primórdios do século XIX. Inicialmente ligando os municípios de Extremoz e São Gonçalo, essa estrada estender-se-ia para todo o interior da província, sendo a única via terrestre de ligação do norte com a capital:

...esta é uma das primeiras obras da Provincia reclamada pela commodi- dade dos povos, pela conservação e o augmento de seu commercio. He uma porção de estrada [o aterro do salgado], que abrange a maxima par- te de suas communicações: as Villas de São Gonçalo, Extremoz, Tou- ros, Apodi, e Port'alegre, e as Cidades do Assú, e Maioridade, por ella mandam os generos de sua producção, para serem vendidos no merca-

do desta Capital. (Falla do Presidente Joaquim Siqueira de 07 de setem- bro de 1848, p. 11.)

O aterro não era a saída esperada para resolução do problema do isolamento da ca- pital, tanto que várias vezes cogitou-se a construção de uma ponte que atravessasse o rio. A luta da técnica e da razão contra a natureza do terreno, influenciada pelo regime das marés do rio será constante, sendo visível no local o contraste violento entre esses princípios, um aterro reto, linear e pretensamente estável no meio de um terreno naturalmente instável e dominado pela força destruidora das águas do rio. (Figs. 12, 13 e 14).

Fig. 12 – Aterro do Salgado, com vista para o sul da cidade. Foto: Leandro Reno- vato.

Fig. 13 – Taludes do Aterro. A inclinação da estrutura, para uma contenção mais eficien- te da terra, é de cerca de 30 º. Foto: Leandro Renovato.

Fig. 14 – Trecho do aterro arrebentado, mos- trando o perfil da estrutu- ra. Há sobreposições de diferentes tipos de terra, sustentadas pelos muros de pedra. Foto: Leandro Renovato.

O porto do Passo da Pátria, juntamente com a manutenção do Aterro do Salgado contava com o rio como um aliado no processo de fortalecimento comercial da cidade do Natal. Ao mesmo tempo que era um obstáculo, servia também, e contraditoriamente, como um elo de ligação com o restante da província. Até então o papel de Natal como capital não é questionado, mas sim reforçado através do comércio via rio.

Entretanto, um novo personagem surgiria para utilizar a seu favor as possibilidades que os meios naturais ofereciam. Outro comerciante, com interesses muito particulares, atrairia boa parte dos fluxos para dois novos pontos comerciais na região, estruturados a partir do transporte fluvial: A cidade de Macaíba e o porto de Guarapes.

Capítulo 2 – o rio como aliado do comér-